Do sermão sobre os pastores
- Santo Agostinho |
I –
Somos cristãos e pastores
Não
é de agora que vossa caridade sabe que nossa esperança está toda
em Cristo e que nossa verdadeira glória é Ele. Sois do rebanho
daquele que guarda e apascenta Israel. Mas por haver pastores
que apreciam esse nome, porém, não querem exercer seu ofício,
vejamos o que a seu respeito diz o Profeta. Escutai vós com
atenção; escutemos nós com temor. “Foi-me dirigida a palavra do
Senhor que dizia: ‘Filho do homem, profetiza contra os pastores
de Israel e dize-lhes”. Acabamos de ouvir a leitura desse
trecho; resolvemos então falar-vos algo. O Senhor nos ajudará a
dizer a verdade, se não dissermos o que vem de nós. Pois se
disséssemos o que vem de nós, seríamos pastores a nos apascentar
a nós, não às ovelhas; se, ao contrário, falarmos sobre ele, é
ele que vos apascenta por intermédio de quem quer que seja.
Assim diz o Senhor Deus: “Ó pastores de Israel, que se
apascentam a si mesmos! Acaso não são as ovelhas que os pastores
têm de apascentar?” Quer dizer, os pastores apascentam ovelhas,
não a si mesmos. É este o primeiro motivo de repreensão a tais
pastores, que apascentam a si e não às ovelhas. Quem são estes
que se apascentam? O apóstolo diz: “Todos procuram seu
interesse, não o de Jesus Cristo”.
Quanto a nós, a quem o Senhor, por sua benevolência e não por
mérito nosso, estabeleceu neste cargo de que teremos difíceis
contas a dar, devemos distinguir bem duas coisas: a primeira,
somos cristãos; a outra, somos bispos, pela vossa. Como
cristãos, atendemos a nosso proveito; como bispos, somente ao
vosso.
E
são muitos os cristãos não bispos que vão a Deus por caminho
mais fácil talvez, e andam com tanto mais desembaraço quanto
menos peso carregam. Nós, porém, além de cristãos, tendo de
prestar contas a Deus de nossa vida, somos também bispos e
teremos de responder a Deus por nossa administração.
II- Pastores que
se apascentam a si mesmos
Vejamos, portanto, o que aos pastores que se apascentam a si
mesmos, não às ovelhas, diz a palavra divina que não adula a
ninguém: “Eis que bebeis o leite e vos cobris com a lã. Matais
as mais gordas e não apascentais minhas ovelhas. Não
fortalecestes a fraca; não curastes a doente; não pensastes a
ferida, não reconduzistes a desgarrada e não fostes em busca da
que se perdera; tratastes com dureza a forte. E minhas ovelhas
se dispersaram, por não haver pastor”. Começa por dizer que é
que apreciam e que descuidam aqueles pastores que se apascentam
a si, não às ovelhas. Que apreciam? “Bebeis o leite, cobri-vos
com a lã”. Diz o apóstolo: quem planta uma vinha e não se
alimenta do seu fruto? Quem apascenta um rebanho e não se serve
do leite?” Entendemos por leite do rebanho tudo quanto o povo de
Deus dá ao bispo para sustento da vida terrena. Era o que queria
dizer o Apóstolo com as palavras citadas.
Embora preferisse viver do trabalho de suas mãos, sem esperar,
nem mesmo o leite das ovelhas, o Apóstolo, no entanto, declarou
ter o direito de recebê-lo e ter o Senhor determinado que vivam
do Evangelho aqueles que anunciam o Evangelho. E acrescentou que
os outros apóstolos usavam desse direito, não usurpado, mas
concedido. Mas foi ele, por não querer receber o que lhe era
devido. Dispensou a dívida, mas não era indevido aquilo que
outros aceitaram; Ele fez mais. Talvez o prefigurasse aquele
que, ao levar o ferido à estalagem, dissera: “Se gastares mais,
pagar-te-ei ao voltar”.
Daqueles, pois, que não precisam do leite das ovelhas, que
diremos ainda? São misericordiosos, ou antes, por maior
liberdade cumprem seu ofício de misericórdia. Têm a
possibilidade e o que podem fazer. Elogiemos a estes sem
condenar os outros. Este mesmo apóstolo não procurava presentes.
Desejava com ardor que fossem fecundas as ovelhas, não estéreis,
sem a riqueza do leite.
III – O exemplo
de Paulo
Estando Paulo, certa ocasião, em grande indigência e preso pela
proclamação da verdade, alguns irmãos enviaram-lhe com que
acudir as suas necessidades. Agradecido, responde-lhes:
“Fizestes bem provendo-me do necessário. Eu, porém, aprendi a
bastar-me em qualquer situação. Sei ter muito e sei passar
privações. Tudo posso naquele que me dá forças. No entanto,
fizestes bem em enviar-me aquilo de que preciso”.
Mas
desejando mostrar o que é que lhe interessava neste gesto em seu
favor – não houvesse acaso entre eles algum dos que se
apascentaram a si e não às ovelhas – não se alegra tanto por ter
sido socorrido, porém, muito mais se felicita por vê-los ricos
em frutos. O que procurava então? Diz: “Não por esperar dádivas,
mas busco o fruto”. Não que eu me sacie, mas que vós não fiqueis
vazios.
Que
aqueles que não podem, como Paulo, sustentar-se com o trabalho
de suas mãos, aceitem o leite das ovelhas, supram as suas
necessidades, mas não descuidem a fraqueza das ovelhas. Não
procurem isto para o próprio proveito, como se anunciassem o
Evangelho só para atender a sua penúria, mas tenham em mira a
luz da palavra da verdade a fim de iluminar os homens. Pois
parecem-se com lâmpadas, como foi dito: “Estejam vossos rins
cingidos e lâmpadas acesas”; e: “Ninguém acende uma lâmpada e a
põe debaixo da vasilha, mas sobre o candelabro a fim de iluminar
aqueles que estão em casa; assim brilhe vossa luz diante dos
homens pra que vejam vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai
que está nos céus”.
Se
para teu uso acendesse em casa uma lâmpada, não lhe porias mais
óleo para não se extinguir? Todavia, se mesmo com óleo a lâmpada
não brilhasse, não seria de modo algum digna de ser posta no
candelabro, mas logo quebrada. O bastante para viver, por
necessidade se aceita, por caridade se dá. Não seja o Evangelho
um objeto venal, como se fosse o preço que se recebem os que o
anunciam para terem com que viver. Se assim o vendem, por uma
ninharia vendem uma coisa preciosa. Do povo recebam o sustento;
do Senhor, a recompensa de seu ministério. Não é o povo o
indicado para dar a recompensa àqueles que servem ao Evangelho
na caridade. Estes esperam sua paga da mesma fonte de que os
outros aguardam a salvação.
Por
que então são repreendidos? Qual a censura? É, que, bebendo o
leite e cobrindo-se com a lã, descuravam as ovelhas. Procuravam
apenas seu interesse, não o de Jesus Cristo.
IV – Ninguém
busque seu interesse, mas o de Jesus Cristo
Já
dissemos o que é tomar o leite. Vejamos o que seja cobrir-se com
a lã. Quem oferece o leite, dá o alimento; e quem oferece a lã,
presta homenagens. São estas as duas coisas que esperam do povo
aqueles que se apascentam a si mesmos e não às ovelhas: o
necessário para prover as suas necessidades, honras e aplausos.
Há
motivo para se entender a veste com honra, pois cobre a nudez.
Todo homem é fraco. E quem vos governa, não é igual a vós? Tem
corpo, é mortal, come, dorme, levanta-se; nasceu, irá morrer. Se
refletes no que é em si mesmo, é homem. Tu, porém, dando-lhe
honra, cobres a fraqueza.
Vede
como o próprio Paulo aceitou uma veste do bom povo de Deus: “Vós
me recebestes como um anjo de Deus. Dou testemunho de que, se
fosse possível, teríeis arrancado os olhos para mos dar”.
Mas,
acolhido com tanta honra, teria, porventura, por causa desta
honra, poupado os transgressores para não ser rejeitado ou não
aplaudido ao censurar. Se assim tivesse agido estaria entre
aqueles que se apascentam a si e não às ovelhas. Diria talvez de
si para consigo: “Que me importa? Que façam o que quiserem; meu
sustento está garantido, minha boa fama está salva: leite e lã,
isto me basta; que cada um vá por onde puder”. Então tudo está
perfeito se cada um for por onde puder? Não te vou considerar
bispo; imagino-te como um do povo: “Se um membro padece, todos
os demais membros padecem com ele”. Por conseguinte, recordando
como se haviam comportado com ele, não parecesse esquecido de
suas atenções, o Apóstolo dá testemunho de ter sido acolhido
como um anjo de Deus e de que, se pudessem, arrancariam os olhos
para lhos dar. E, no entanto, foi à ovelha doente, à ovelha
infeccionada para cortar a ferida e não para manter a podridão.
Assim fala: “Logo tornei-me vosso inimigo por pregar a verdade?”
Reparai: aceitou o leite das ovelhas como lembramos acima, e
vestiu-se com a lã, mas não deixou de cuidar das ovelhas. Porque
não buscava seu interesse, mas o de Jesus Cristo.
V – Sê modelo
para os fiéis
O
Senhor mostrou o que estes pastores amam, mostrou também o que
negligenciam. Os males das ovelhas estendem-se por toda a parte.
As sadias e robustas, isto é, as fortes pelo alimento da
verdade, que se aproveitam bem das pastagens, por dom de Deus,
são pouquíssimas. Os maus pastores, porém, não as poupam. É-lhes
pouco não cuidarem das doentes, das fracas, das desgarradas e
perdidas. Tanto quanto podem, também matam as fortes e gordas.
Mas estas continuam vivas. Vivem pela misericórdia de Deus.
Contudo, no que diz respeito aos maus pastores, eles matam.
“Matam de que modo?” Perguntas. Vivendo mal, dando mau exemplo.
Foi em vão que se disse ao servo de Deus, ao colocado mais alto
entre os membros do grande Pastor: “Mostrando-te a todos” como
exemplo de boas obras e: “Sê modelo para os fiéis”.
Presenciando continuamente a má conduta de seu pastor, uma
ovelha, mesmo forte, se desviar os olhos dos preceitos do Senhor
e fixá-los no homem, começará a dizer no seu coração: “Se meu
pastor vive desse modo, quem sou eu para não fazer o mesmo?”
Matou a ovelha forte. Se matou a forte a quem não alimentou, que
fará com as outras, ele que, vivendo mal destruiu o que
encontrara forte e robusto?
Digo
a vossa caridade e repito. Mesmo que as ovelhas continuem vivas,
ainda que sejam fortes pela palavra do Senhor e guardem o que
d’Ele ouviram: “Fazei o que dizem, não o que fazem”; contudo
aquele que vive mal diante do povo, não que lhe diz respeito,
mata o que o observa. Não se iluda por que se vê que ele não
morreu. Este continua vivo, aquele é homicida. Assim como um
homem que olha para uma mulher desejando-a, embora ela permaneça
casta, ele já cometeu adultério. É verdadeira e clara a palavra
do Senhor: “Quem olhar para uma mulher com mau desejo, já
cometeu adultério em seu coração”. Não entrou em seu quarto, mas
no quarto de seu coração já a abraçou.
Assim quem vive mal diante de seus subordinados, no que lhe diz
respeito, mata até os fortes. Quem o imita, morre; quem não o
imita, vive. No entanto, quanto a ele, destrói a ambos. “E o que
é robusto matais e não apascentais minhas ovelhas”.
VI – Prepara-te
para a tentação
Já
sabeis o que amam os maus pastores. Vede o que descuidam. “Ao
enfermo não fortificastes; ao doente não curastes; o machucado”,
isto é, fraturado, “Não pensastes; ao desgarrado, não
reconduzistes; ao que se perdia não fostes procurar e ao forte
oprimistes”, matastes, destruístes. A ovelha se enfraquece, quer
dizer, tem coração débil, imprudente e desprevenido a ponto de
ceder às tentações que sobrevierem.
O
pastor negligente, quando alguém se lhe confia, não lhe diz:
“Filho, vindo para servir a Deus, mantém-te na justiça e
prepara-te para a tentação”. Quem assim fala fortifica o fraco e
de fraco faz firme, de modo que, se lhe forem confiados os bens
deste mundo, não se fiará neles. Se, contudo, houver aprendido a
fiar-se na prosperidade terrena, por esta mesma prosperidade
será corrompido; sobrevindo adversidades, ferir-se-á e talvez
pereça.
Quem
assim edifica não constrói sobre a pedra, mas sobre a areia. “A
pedra era Cristo”. Os cristãos têm de imitar os sofrimentos de
Cristo e não, ir atrás de prazeres. O fraco se fortifica, quando
lhe dizem: “Espera, sim, provações neste mundo, mas de todas
elas te livrará o Senhor, se teu coração não voltar atrás. Pois
para fortalecer teu coração veio padecer, veio morrer, veio ser
coberto de escarros, veio ser coroado de espinhos, veio ouvir
insultos, veio ser pregado na cruz. Tudo isso por tua causa, e
tu, nada: não para ele, mas em teu favor”.
Quais são estes que, por temerem ofender os ouvintes, não apenas
não os preparam para as inevitáveis provações, mas prometem a
felicidade neste mundo, que o Deus deste mundo não prometeu? Ele
predisse a este mundo labutas e mais labutas até o fim; e tu
queres que o cristão esteja isento a estas labutas? Justamente
por ser cristão, sofrerá algo mais neste mundo.
Com
efeito disse o Apóstolo: “Todos aqueles que querem viver
sinceramente em Cristo, sofrerão perseguições”. Agora, se te
parece bem, diga ele: Pastor, que procuras teu interesse e não o
de Jesus Cristo: “Todos aqueles que querem viver sinceramente em
Cristo, sofrerão perseguições”; e tu dizes: “Se em Cristo
viveres piedosamente, terás abundância de todos os bens. Se não
tens filhos, tê-los-á e os criarás, e nenhum morrerá”. É esta
tua construção? Olha o que fazes, onde a colocas. Sobre a areia
a constróis. Virá a chuva, o rio transbordará, soprará o vento,
baterão contra esta casa; ela cairá e será grande sua ruína.
Tira-a da areia, põe-na sobre a pedra: esteja em Cristo aquele a
quem desejas ver cristão. Observe os injustos sofrimentos de
Cristo, observe-o sem pecado, pagando o que não devia, observe a
Escritura a lhe dizer: “Castiga o filho que reconhece como seu”
aceite o castigo ou não procure ser reconhecido.
VII – Oferece a
atadura do estímulo
Diz-se na Escritura que Deus “castiga todo filho que reconhece
como seu”. E tu dizes: “Quem sabe ficarás de fora?” Se ficares
de fora dos sofrimentos do castigo ficarás de fora do número dos
filhos. “Quer dizer então, perguntas, que castiga todo filho?”
Castiga sem exceção todo o filho, como também o Único. O
Unigênito, nascido da substância do Pai, igual ao Pai “na forma
de Deus”, o Verbo por quem tudo foi feito, este não tinha por
onde ser castigado. Para isto revestiu-se de carne, de modo a
não ficar sem castigo. Aquele, pois, que castiga o Único sem
pecado, irá poupar o adotado pecador? Fomos chamados para a
adoção, assegura o Apóstolo. Recebemos a adoção de filhos, para
sermos co-herdeiros do Único, sermos também sua herança:
“Pede-me e eu te darei as nações por herança”. Deu-nos o exemplo
em seus sofrimentos.
Todavia para que o enfermo não desanime totalmente ante as
provações futuras, nem se iluda com falsa esperança nem se deixe
abater pelo medo, dize-lhe: “Prepara-te para a provação”. Talvez
comece a afastar-se, a tremer, a não querer aproximar-se. Lês em
outro lugar: “Fiel é Deus que não permitirá serdes tentados além
do que podeis suportar”. Afirmar e anunciar futuros sofrimentos
é fortalecer o enfermo. Ao prometeres a quem está acovardado e
por isso relutante, que não virão provações, mas a misericórdia
de Deus que não permite ser tentado acima de suas forças, com
isso medica a fratura. Há alguns que, ouvindo falar de futuras
tribulações, se armam ainda mais e têm sede delas como de
bebida. Julgam fraco o remédio dos fiéis e buscam a glória dos
mártires. Há outros, porém, que com o anúncio, das futuras e
necessárias provações, peculiares ao cristão e sofridas por quem
o quer ser de verdade, ficam alquebrados e vacilam.
Oferece-lhe a atadura do estímulo, pensa o que está fraturado.
Dize: “Não tenhas medo. Não te abandonará nas provações aquele
em que creste”. Fiel é Deus que não permitirá seres tentados
acima do que podes suportar. Não sou eu que digo isto, mas o
Apóstolo: “Quereis conhecer por experiência que Cristo fala em
mim?” portanto, ouvindo estas palavras, ouves a Cristo, ouves
aquele pastor que lhe apascenta Israel. A ele disseram: “tu nos
darás a beber lágrimas, com medida”. O apóstolo diz: “não
permitirá serdes tentados além do que podeis suportar”. É a
mesma coisa que dissera o Profeta: “Com medida”. Somente não
despeças aquele que corrige e exorta, amedronta e consola, fere
e cura.
VIII – Os
cristãos enfermos
“Ao
enfermo”, diz o Senhor, “não fortificastes”. Diz aos maus
pastores, aos pastores falsos, que buscam seu interesse, não o
de Jesus Cristo; aos que se alegram com as dádivas do leite e da
lã, mas descuram totalmente as ovelhas e não cuidam das doentes.
Parece-me haver diferença entre enfermo e doente – pois
costuma-se chamar de enfermo os doentes; enfermo quer dizer não
firme, e doente o que se sente mal.
Na
verdade, irmãos, esforçamo-nos de algum modo por distinguir
essas coisas, mas talvez com maior aplicação poderíamos nós ou
outro mais entendido e com coração mais cheio de luz discernir
melhor; à espera disto, para que não sejais privados em relação
às palavras da Escritura, falo o que penso. É de se temer
sobrevenha uma tentação ao enfermo que o debilite. O doente, ao
contrário, adoece por alguma ambição e por esta ambição se vê
impedido de entrar no caminho de Deus, de submeter-se ao julgo
de Cristo.
Observai estes homens que desejam viver bem, já decididos a
viver bem; são, no entanto, menos capazes de suportar os males
do que fazer o bem. Pertence à firmeza do cristão não apenas
fazer o bem, mas também tolerar os males. Aqueles, pois, que
parecem ardentes nas boas obras, mas não querem ou não podem
suportar as provações iminentes, estes são enfermos.
Por
outro lado, aqueles que amam o mundo e por qualquer desejo mal
se afastam até das obras boas, jazem gravemente doentes, visto
que pela doença, sem forças, nada de bom podem realizar.
O
paralítico era um destes na alma; os que o carregavam, não
podendo levá-lo até junto do Senhor, descobriram o teto e
fizeram-no descer. É isto o que terias de fazer: descobrir o
teto e colocar junto do Senhor a alma paralítica, com todos os
membros frouxos, e vazia de obras boas, curvada sobre o peso dos
pecados e doente com o mal de sua cobiça. Portanto, se todos os
seus membros estão frouxos e há paralisia interior que te impede
de levá-la ao médico – talvez esteja escondido e no interior:
ele, que é a verdadeira compreensão das Escrituras, está oculto
- descobre o teto e faze descer o paralítico pela explicação do
sentido secreto.
A
quem assim não procede e desdenha fazê-lo, ouvistes o que lhe
dizem: “Aos doentes não fortalecestes; ao fraturado não
pensastes”; já explicamos esta passagem. Estava alquebrado pelo
terror das provações. Mas surge algo que trata da fratura e o
conforta: “Fiel é Deus que não permitirá serdes tentados além do
que podeis suportar, mas com a tentação vos dará o meio de sair
dela para que a possais agüentar”.
IX – Insiste a
tempo e fora de tempo
“À
desgarrada não reconduzistes; e à que se perdia não fostes
procurar”. Aqui às vezes caímos em mãos dos ladrões e nos dentes
dos lobos rapaces; rogamos, pois, que oreis por estes nossos
perigos. Também as ovelhas são rebeldes. Quando procuramos a
erradias, declaram não serem nossas, para seu erro e perdição.
“Que quereis de nós? Por que nos procurais?”. Como se não fosse
o mesmo motivo que nos faz querê-las e procurá-las; porque se
desviam e se perdem. “Se estou no erro, diz, se na morte, que
queres de mim? Por que me procuras?” Justamente porque estás no
erro, quero reconduzir-te; porque te perdeste, quero
encontrar-te “Quero ficar assim no erro, quero perder-me assim”.
Queres vaguear assim, queres perder-te assim? Muito bem, mas eu
não quero. Ouso dizer isto mesmo: sou importuno. Escuto o
Apóstolo que diz: “Prega a palavra, insiste a tempo e fora de
tempo”. Com quem, a tempo? Com quem, fora de tempo? A tempo com
os desejosos, fora de tempo com os que não querem ouvir. Sou
inteiramente importuno, ouso dizer: “Tu queres errar, tu queres
perecer; eu não quero”. E afinal não quer aquele que me
amedronta. Se eu o quisesse, vê o que me dirá, vê o que
repreenderá: “Ao desgarrado não reconduzistes, ao que se perdera
não fostes procurar”. Temerei mais a ti do que ele? “Teremos
todos de nos apresentar ao tribunal de Cristo”.
Reconduzirei a desgarrada, procurarei a perdida. Quer queiras
quer não, assim farei. E se, em minha busca, os espinhos dos
bosques me rasgarem, eu me obrigarei a ir por todos os atalhos
difíceis; baterei todos os cercados; enquanto me der forças o
Senhor que me ameaça, percorrerei tudo sem descanso.
Reconduzirei a desgarrada, procurarei a perdida. Se não me
queres atrás de ti, não te desgarres, não te percas. É pouco
dizer que tenho pena de ti, desgarrada e perdida. Tenho medo de
que, se te abandonar, venha a matar o que é forte. Escuta o que
se segue. “E ao que era forte, matastes”. Se eu abandonar a
desgarrada e perdida, o que é forte terá gosto em desgarrar-se e
perder-se.
X – A Igreja,
qual videira, ao crescer estende-se por todos os lados
“Por
todo monte, por toda colina e por toda a face da terra se
dispersaram”. Que significa: “Por toda a face da terra se
dispersaram?” Entregando-se a tudo que é terreno, amam o que
brilha na face da terra, preferem isto. Não querem morrer para
que sua vida fique escondida em Cristo. “Por toda a face da
terra”, pelo amor às coisas terrenas; ou porque há ovelhas
desgarradas por toda a face da terra. Estão em diversos lugares;
uma só mãe, a soberba, as deu à luz, como uma só, a nossa mãe
católica, gerou a todos os fiéis cristãos dispersos por todo o
mundo. Não é de admirar se a soberba gera a separação; a
caridade, a unidade. Contudo essa mãe católica, este pastor
procura por toda parte os desgarrados, fortifica os enfermos,
cura os doentes, pensa os fraturados; a uns por meio destes, a
outros por meio daqueles, sem se conhecerem mutuamente. No
entanto ela a todos conhece porque por todos se estende. Ela se
assemelha à videira que, ao crescer, se estende por todos os
lados; junto dela há ramos inúteis, cortados pela foice do
agricultor por causa de sua esterilidade, de sorte que a videira
é podada, não amputada. Estes ramos, onde foram cortados, aí
ficaram. A videira, porém, crescendo por todos os lados, não só
conhece os ramos presos a ela, mas ainda os que foram cortados.
Todavia aí vai buscar os erradios porque a respeito dos ramos
partidos diz o Apóstolo: “Deus é poderoso para enxertá-los de
novo”. Quer compares a ovelhas desgarradas do rebanho, quer a
ramos cortados da videira, não é menos poderoso Deus para
reconduzir as ovelhas do que é para enxertar os ramos, pois é o
grande pastor, o agricultor verdadeiro. “E por toda a face da
terra se dispersaram; e não houve quem as buscasse, quem as
reconduzisse”; entre os maus pastores, porém, “não houve”, um
homem “que as procurasse”.
“Por
isso ouvi, pastores, a palavra do Senhor: por minha vida, diz o
Senhor Deus”. Vede por onde começa. Como por um juramento de
Deus, um testemunho de sua vida: “Por minha vida diz o senhor”.
Os pastores morreram, mas as ovelhas estão em segurança; o
Senhor vive. “Por minha vida, diz o Senhor Deus”. Por que
morreram os pastores? Por procurarem seu interesse, não o de
Jesus Cristo. Haverá então e se poderão encontrar pastores que
não busquem o que é seu, mas o que pertence a Jesus Cristo? Sem
dúvida alguma, haverá e decerto se encontrarão; não faltam nem
faltarão jamais.
XI – Fazei o que
dizem, não o que fazem
“Por
esta razão ouvi, pastores, a palavra do Senhor”. Mas, pastores,
ouvi o quê? “Isto diz o Senhor Deus: vou intimar os pastores e
reclamarei de suas mãos as minhas ovelhas”. Ouvi e ficais
sabendo, ovelhas de Deus: Ele reclama dos maus pastores as suas
ovelhas e pede-lhes contas das que morreram. Em outro lugar diz
pelo mesmo Profeta: “Filho do homem, eu te constituí sentinela
na casa de Israel. Ouvirás uma palavra da minha boca e
alertá-los-ás de minha parte. Se eu disse ao pecador: ‘Morrerás
por certo’ e tu não a repetires para que o ímpio abandone seus
caminhos, ele, pecador, morrerá com seu pecado, mas exigirei de
tua mão seu sangue. Se, ao contrário, advertires o pecador que
deixe seu caminho e ele não quiser dele se afastar, morrerá por
seu pecado, mas tu livrarás tua alma”.
Que
quer isto dizer, irmãos? Vedes como é perigoso calar? Morre o
ímpio e morre justamente; morre em sua impiedade e em seu
pecado; sua indiferença o matou. Pois poderia encontrar o pastor
interessado que diz: “Por minha vida diz o Senhor”. Mas por ser
indiferente e não advertido por aquele que é guarda e sentinela,
é justo que morra aquele e que este seja condenado. “Se, porém,
disseres ao ímpio a quem ameacei com a espada: ‘Morrerás por
certo’ e ele nada fizer para evitar a espada, esta virá e o
matará. Morrerá por seu pecado; tu, porém, livraste tua alma”.
Por isto, a nós, cabe-nos calar; a vós, mesmo se calarmos, cabe
ouvir pela Sagrada Escritura as palavras do Pastor.
Vejamos, portanto, assim me havia proposto, se retira as ovelhas
dos maus pastores e as dá aos bons. Vejo-o tirando as ovelhas
dos maus pastores. Assim diz: “Vou intimar os pastores e
reclamarei de suas mãos as minhas ovelhas e os afastarei de modo
que não mais apascentem minhas ovelhas; e os pastores não mais
se apascentem”.
Como
é que afastará, a fim de que não mais apascentem suas ovelhas?
“Fazei o que dizem, não o que fazem”. Como se dissesse: “Dizem o
que é meu, fazem o que é seu”. Quando deixais de fazer aquilo
que os maus pastores fazem, estes não vos apascentam; quando
fazeis o que dizem, sou eu que vos apascento.
XII – Em boas
pastagens apascentarei minhas ovelhas
“E
as retirarei dentre as nações, reuni-las-ei de todos os lugares
e as conduzirei para sua terra e as apascentarei sobre os montes
de Israel”. Ele criou os montes de Israel; são os autores das
divinas Escrituras. Alimentai-vos ali onde com segurança
encontrareis alimento. Que vos cause gosto tudo quanto dali
ouvirdes; aquilo que lhe é estranho, rejeitai. Não vagueeis no
meio do nevoeiro; ouvi a voz do pastor. Reuni-vos nos montes da
Sagrada Escritura. Aí se acham as delícias de vosso coração; aí,
nada de venenoso, nada de contrário; são pastagens
fertilíssimas. Vinde somente vós, sadias, nutri-vos dos montes
de Israel. “E às nascentes e à todo lugar habitado da terra”.
Dos
montes a que nos referimos, brotaram as nascentes da pregação
evangélica, quando “por toda a terra se difundiu sua voz”; e
toda a terra habitada se tornou amena e fecunda para alimento
das ovelhas. “Em boas pastagens e nos altos montes de Israel as
apascentarei. E ali estarão colocados seus redis”, quer dizer,
onde irão descansar, onde dirão: “Como é bom aqui”, onde dirão:
“É verdade, está tudo claro, não fomos enganadas”. Repousarão na
glória de Deus, como em seu redil. E “dormirão”, isto é,
“repousarão, em grandes delícias”. “Em férteis campos serão
apascentadas sobre os montes de Israel”. Já falei dos montes de
Israel, dos bons montes para onde erguemos os olhos à espera de
auxílio. Mas nosso auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a
terra. Por isso, para que nem mesmo nos bons montes esteja nossa
esperança, tendo dito: “Apascentarei” minhas ovelhas “sobre os
montes de Israel”, e para que tu não te fixes nos montes,
acrescenta logo: “Eu apascentarei minhas ovelhas”. Ergue os
olhos para os montes, donde te virá auxílio, mas presta atenção
ao que te diz: “Eu apascentarei”. Pois teu auxílio vem do
“Senhor que fez o céu e a terra”.
Termina assim: “E as apascentarei com justiça”. Reparai que só
Ele apascenta desse modo, aquele que apascenta com justiça. Que
pode um homem julgar a cerca de outro homem? Tudo está repleto
de juízos temerários. Aquele de quem desesperávamos, de repente
se converte e se torna ótimo. De quem muito esperávamos,
subitamente fraqueja e se faz péssimo. Nem nosso temor é seguro,
nem certo o nosso amor.
Aquilo que cada homem é hoje, mal sabe ele próprio. No entanto,
é alguma coisa hoje. O que será amanhã, nem ele o sabe. Portanto
é só aquele o que apascenta com justiça restituindo a cada um o
que é seu: a estas, umas coisas: àquelas, outras; dando o devido
a cada uma, isto ou aquilo. Pois sabe o que faz. Apascenta com
justiça aqueles que redimiu ao ser justiçado. Apascenta,
portanto, com justiça.
XIII – Os
pastores bons estão todos no Único pastor
Cristo te apascenta com justiça; distingue suas ovelhas das que
não o são. “Minhas ovelhas ouvem minha voz e me seguem”.
Encontro aqui todos os pastores bons no Único pastor. Os
pastores bons não faltam, mas estão no Único. Os que estão
divididos são muitos. Aqui se fala de um só porque se quer
valorizar a unidade. Na verdade não se diz agora os pastores se
calarão e será um só o pastor porque o Senhor não encontra a
quem confiar suas ovelhas. Ele as confiou porque encontrou a
Pedro. Mais ainda, no próprio Pedro, ele confiou a unidade. Eram
muitos os apóstolos, mas a um só disse: “Apascenta minhas
ovelhas”. Deus nos livre de que não haja agora bons pastores, de
que nos venham a faltar; esteja longe de sua misericórdia não
criá-los nem formá-los!
Na
realidade, se houver boas ovelhas, haverá também bons pastores,
pois é delas que vêm os bons pastores. Mas os bons pastores
estão todos no Único, são um só. Se ele apascenta, é Cristo que
apascenta. Os amigos do esposo não dizem ser sua a voz; mas com
imensa alegria se rejubilam com a voz do esposo. Por
conseguinte, é ele que apascenta quando aqueles apascentam. E
diz: Eu apascento, porque sua voz está neles, sua caridade neles
se encontra. Ao próprio Pedro, a quem entregava suas ovelhas
como a outra pessoa, queria torná-lo um só consigo, e fosse a
cabeça, fosse a personificação do corpo, isto é, da Igreja, e à
semelhança do esposo com a esposa, fossem dois em uma só carne.
Querendo, pois, entregar as ovelhas, mas não como se as
confiasse a outro, que lhe diz antes? “Pedro, tu me amas?
Respondeu ele: ‘Eu te amo’. De novo: Tu me amas? Respondeu:
‘Amo’. Confirma a caridade para consolidar a unidade: ‘é ele,
portanto, que apascenta, um só neles e eles no Único’ ”.
Cala-se a respeito dos pastores, mas não se cala. Gloriam-se os
pastores, “mas quem se gloria, no Senhor se glorie”. É isto
apascentar o Cristo, é isto apascentar por Cristo, é isto
apascentar em Cristo; não se apascenta fora de Cristo! Não foi,
na verdade, por falta de pastores, como se o Profeta houvesse
predito estes maus tempos futuros, que disse: “Eu apascentarei
minhas ovelhas”, não tenho a quem confiá-las. Assim Pedro estava
nesse corpo e nessa vida terrena e também os Apóstolos, quando
aquele Único, em quem todos são um, disse: “Tenho outras ovelhas
que não são desse redil. Preciso buscá-las para que haja um só
rebanho e um só pastor”. Estejam então todos no Único pastor e
façam ouvir a única voz do pastor, aquele que as ovelhas escutam
e possam seguir seu pastor; não a este ou àquele, mas ao Único.
E todos nele falem com uma só voz, não tenham vozes diferentes.
“Rogo-vos, irmãos, dizei todos a mesma palavra e não haja
divisão entre vós”. A esta voz, lavada de toda divisão,
purificada de toda heresia, ouçam-na as ovelhas e sigam seu
pastor, aquele que diz: “As ovelhas que são minhas escutam minha
voz e me seguem”.
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