SENHOR, SOCORRE-ME (Mt 15, 21-28)
“21 Jesus, partindo dali, retirou-se para a região de Tiro e de Sidônia. 22 E eis que uma mulher Cananéia, daquela região, veio gritando: ‘Senhor, filho de Davi, tem compaixão de mim: a minha filha está horrivelmente endemoninhada’. 23 Ele, porém, nada lhe respondeu. Então os seus discípulos se chegaram a ele e pediram-lhe: ‘Despede-a, porque vem gritando atrás de nós’. 24 Jesus respondeu: ‘Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel’. 25 Mas ela, aproximando-se, prostrou-se diante dele e pôs-se a rogar: ‘Senhor, socorre-me!’ 26 Ele tornou a responder: ‘Não fica bem tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos’. 27 Ela insistiu: ‘Isso é verdade, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos!’ 28 Diante disso, Jesus lhe disse: ‘Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como queres!’ E a partir daquele momento sua filha ficou curada”.
Em Mt 15, 21 diz: “Jesus, partindo dali, retirou-se para a região de Tiro e de Sidônia”.
As regiões de Tiro e Sidônia eram marítimas e de povos gentios avizinhando-se com a Galiléia. Embora os comentaristas interpretem que Jesus entrou naquela região dos gentios, não está claro se essa interpretação é verdadeira ou se Ele somente se acercou às fronteiras da Galiléia pelas bandas de Tiro e Sidônia. Não parece verossímil que Cristo fizesse algo que Ele havia proibido aos seus apóstolos: “Não tomeis o caminho dos gentios” (Mt 10,5), embora, Ele em sua ação pessoal, tivesse vindo somente para os judeus, e, depois, seus apóstolos, devessem pregar ao mundo (judeus e gentios). Por outro lado, para Marcos (7,24) parece que Cristo, realmente, entrou naquela região; pois diz: “Se levantou e foi aos rincões de Tiro e Sidônia, entrou em uma casa e não quis que ninguém o soubesse; entretanto, não pode ocultar-se”. Assim, parece que o mais verdadeiro seja que Ele não entrou na terra dos gentios. Então, por que chegou até ali? Marcos parece insinuar que Ele veio para esconder-se; queria que ninguém descobrisse, mas, não pode consegui-lo (7, 24). Daí se vê com clareza que, quando chegou ali, quis esconder-se; porém, que tivesse ido ali precisamente para esconder-se é um pouco duvidoso. São João Crisóstomo pensa que Cristo se retirou àquelas regiões porque, como tinha revogado as cerimônias da lei, pretendia acercar-se aos gentios querendo demonstrar que já não existia judeu nem gentio para Ele. Outros afirmam que, precisamente, Ele se refugiou ali porque os judeus não queriam receber sua doutrina. Assim como disseram Paulo e Barnabé (At 13, 46): “Convinha que a vós se pregasse primeiro o reino de Deus; porém, já que o recusais e vos julgais indignos do reino de Deus, nos dirigimos aos gentios”. Assim também pensavam São Jerônimo e São Beda. Para Teófilo, Ele não vinha para ensinar e sim para esconder-se e descansar. O Pe. Juan Leal comenta: “A região de Tiro e Sidônia, parte norte da Galiléia superior, não era domínio de Herodes. O contexto da narração transmite a ideia de que Jesus, ao retirar-se a essa localidade, pretendia passar despercebido. Um dos seus objetivos, ali, parecia ser o de procurar um lugar de descanso aos seus discípulos e, na intimidade com eles, ampliar-lhes os conhecimentos sobre a doutrina. Também, parecia acreditar que se distanciando a um território estranho estaria livre da perseguição dos fariseus e haveria assim tempo de acalmar-se o entusiasmo daquela multidão que, depois da primeira multiplicação dos pães, queria proclamá-lo rei. Eis, então que, repentinamente, surge daqueles arredores uma mulher cananéia que se põe a gritar: ‘Tem piedade de mim, Senhor, Filho de Davi: minha filha está atormentada por um demônio’. Jesus não lhe respondeu. E os discípulos suplicam-lhe que atenda a mulher que grita desesperadamente. E Jesus responde que foi enviado só às ovelhas perdidas da casa de Israel”. O Pe. Manuel de Tuya escreve: “Ao produzir seu texto sobre a cura da filha de uma mulher cananéia por Jesus, Mateus (Mt) comenta a narração do fato utilizando a expressão que para ele transmitiria a ideia de transição, dizendo que Jesus ‘partiu dali’. Jesus deixa a Galiléia para dirigir-se à região de Tiro e Sidônia.Porém, alguns autores pensaram que Jesus Cristo poderia não ter entrado no território sírio e sim ter permanecido próximo aos seus limites, mas ainda em território judeu. Eles baseavam-se no vago sentido da expressão. Entretanto, a expressão pode indicar ingresso ao território a que se referem e nesse sentido aparece utilizada com frequência. Em Mateus (Mt 15, 22) parece sugerir isso: ‘Saindo daqueles domínios’, a mulher cananéia vai ver a Cristo. O mesmo ocorre em: Jesus dirigindo-se a esses territórios ‘entrou em uma casa’ (Mc). Pois, para o autor, seria mais compreensível que Jesus tivesse conhecidos no norte da Galiléia do que numa região pagã. Jesus Cristo ao retirar-se às extremidades da Galiléia, devia estar procurando descanso para seus apóstolos, já que não pode encontrá-lo pela região desértica de Betsaida (Mc 6,31), mas também aqui não o conseguiu. Tiro limitava com a Galiléia e o povo dos arredores de Tiro e Sidônia tinha ido escutar a Jesus na Galiléia junto ao lago. Era parte de uma multidão que havia presenciado muitas curas (Mc 3, 8-11) e Mateus já havia falado que pela atividade de Jesus na Galiléia a sua fama se havia estendido por toda a Síria”.
Em Mt 15, 22 diz: “E eis que uma mulher Cananéia, daquela região, veio gritando: ‘Senhor, filho de Davi, tem compaixão de mim: a minha filha está horrivelmente endemoninhada”.
Eis aqui uma mulher cananéia. – Marcos (7,26) a chama de siro-fenícia. Nisso não contradiz a Mateus, pois, os de Tiro e Sidônia eram siro-fenícios. Uma das partes da Síria era a Fenícia e na sua costa localizava-se Tiro e Sidônia. E se chamavam siro-fenícios àqueles habitantes porque os Sírios tinham ocupado a Fenícia como muitos acreditavam; também havia fenícios que habitavam a África e se chamavam libio-fenícios ou fenícios da Líbia e, ainda, púnicos, como se fossem fenícios; pois, os ocidentais e meridionais costumavam trocar o “f”, apreciado pelos orientais, em “p”, e assim se diz “palestinos” por “filistinos” como testemunharam Santo Agostinho e São Jerônimo, a língua púnica é parente da hebréia. Entretanto, é difícil de explicar por que Mateus chama cananéia aquela mulher. Alguns pensam que, por ser habitantes de Caná, a maior cidade da Fenícia, que limita com a tribo de Aser. Alguns outros discordam sob a alegação de que o nome dessa cidade se escreve com “C” e, em Mateus com “Ch”; contudo, se discute a validade da contestação, pois os evangelistas, muitas vezes trocam as letras hebréias umas por outras. Além disso, Caná se localizava nos arrabaldes da Fenícia e Galícia, região de onde procedia aquela mulher. Também se afirma que a mulher é chamada cananéia, porque a Fenícia procedia da terra de Canaã de onde fora retirados seus antepassados na invasão hebraica; ou como dizem outros: porque era descendente de Cam, cujo primogênito se chamava Sidon, considerado fundador da cidade do seu nome, mas escritores profanos negam essa razão. São João Crisóstomo observou que o evangelista diz que aquela mulher era cananéia para que parecesse mais admirável sua fé; pois, na opinião dos judeus, os cananeus eram os mais ímpios entre os gentios. Por isso também, Marcos, a chamou grega, significando mulher gentia e pagã. Nas Sagradas Escrituras, especialmente, no Novo Testamento, costuma-se chamar gregos a todos os gentios, não pela língua ou raça, mas para dizer que não são judeus. Tem piedade de mim – na interpretação do evangelista, para tocar mais a Cristo como para dizer que ela sentia as dores da filha e as suas próprias, o que fazia mais insuportável a sua dor. A expressão “Filho de Davi”, própria dos judeus, nos lábios daquela mulher cananéia, se explica pela sua vizinhança com os judeus – talvez tivesse tomado conhecimento das profecias sobre o Messias ou de que Jesus era assim chamado pelos judeus. O Pe. Juan Leal comenta: “São Mateus chama aquela mulher cananéia, em alusão, ao que parece, à referência de Gênesis (10,18-19) de que essa região foi a primeira ocupada pelos cananeus. E, São Marcos, guiando-se pela terminologia Greco-romana, a identifica como Siro-fenícia, isto é, natural daquela Fenícia que formava parte da província da Síria, para distingui-la de Libio-fenícia, localizada na parte setentrional da África. Era, também, de se supor que era pagã; pois, naquela região havia poucos judeus. Uma antiga tradição do século III dá a essa mulher o nome de Justa e à sua filha o de Berenice. Em um princípio, parece estranho que uma mulher pagã se dirigisse a Jesus como o ‘Filho de Davi’; entretanto, tomando-se em conta que o fato ocorre no terceiro ano da vida pública de Jesus Cristo, momento em que sua fama tinha ultrapassado as fronteiras da Palestina, como testemunham os evangelistas, nada há a estranhar. Apenas das palavras da mulher ‘minha filha está cruelmente atormentada pelo demônio’ não se pode, efetivamente, deduzir que se tratava de uma possessão demoníaca; pois, nessa época, costumava-se atribuir as enfermidades aos espíritos malignos; tampouco pela narração de São Mateus que só afirma que ‘Jesus curou a filha’. Entretanto, pode-se chegar a essa conclusão pela narração de São Marcos que põe na boca de Cristo as palavras: ‘Vá, o demônio saiu de tua filha’ (7,29)”. O Pe. Manuel de Tuya escreve: “A notícia da chegada de Cristo se espalhou rapidamente e, provavelmente na casa onde se encontrava, foi até Ele uma mulher que ouviu falar d’Ele e, segundo Mateus, era cananéia; Marcos a descreve como ‘grega de origem sírio-fenícia’. Mateus, chamando-a cananéia, talvez queira indicar que não era judia, mas sim, descendente dos primeiros habitantes da Fenícia que foram cananeus. Mas a denominação de Marcos parece mais precisa – para ele, a mulher era helênica, seguramente por sua língua e religião e por sua origem sírio-fenícia. E como a Fenícia, desde Pompeu, se havia convertido em província romana incorporada à Síria, ser sírio-fenícia queria dizer fenícia da província romana da Síria para distingui-la dos fenícios da Líbia (líbio-fenícios). Aquela mulher, provavelmente, entrando na casa onde Jesus se encontrava, se prostrou aos seus pés gritando e o chamou “Filho de Davi”, expressão essa reconhecidamente judia. Como aquela mulher cananéia podia tê-la usado? Pode-se admiti-la como um recurso literário do evangelista (Mt). Também, pode-se aceitar que depois de tanta comoção resultante das atividades de Cristo na Galiléia, assistidas por gente de todos os arredores de Tiro e Sidônia onde já se tinha ouvido ‘Tu és o Filho de Deus’, ainda O tivessem chamado ‘Filho de Davi’. A mãe apresenta a dor de sua filha como sua própria dor. E pede a Jesus com insistência e aos gritos (um costume oriental) que expulse o demônio de sua filha. Os judeus e outros povos admitiam a possessão diabólica; além disso, atribuíam aos espíritos as enfermidades. Só a expressão não determina tratar-se de uma “possessão diabólica” ou de crenças populares no modo de avaliar os enfermos (1 Sm 16,14-23; 18,10; 19,9)”. Santa Catarina de Sena escreve: “Faremos, pois, como a cananéia: ao ver Cristo passar pela nossa alma através do verdadeiro desejo santo, nós nos voltaremos a ele e diremos: ‘Senhor, liberta minha filha, isto é, minha alma, porque o demônio a molesta com muitas tentações e pensamentos maus’. Se perseverarmos e tivermos uma vontade firme, sem consentir ou inclinar-nos a nenhuma realidade fora de Deus; se nos humilharmos e nos considerarmos indignos do sossego e do descanso; se com fé, paciência e esperança suportarmos tudo por amor de Cristo crucificado, diremos com São Paulo: ‘Tudo posso, não por mim mesmo, mas por Cristo crucificado, que está em mim e me fortalece’. Então ouviremos aquela doce voz: ‘Seja curada a tua filha, isto é, a tua alma, conforme tu queres”. A cananéia aproximou-se do Senhor para pedir-Lhe a cura da filha; ela não pediu ajuda aos homens, mas sim, a Deus. O Senhor possui o Coração Santíssimo aberto para atender aquele que n’Ele confia... não nos intimidemos, mas peçamos com confiança a Nosso Senhor tudo o que necessitamos e Ele nos atenderá: “Ninguém esperou no Senhor que fosse confundido” (Eclo 2, 11), e: “Em vós, Senhor, esperei; não serei confundido eternamente” (Sl 30, 1), e também: “Poderá Deus enganar-nos oferecendo-se para sustentar-nos nos perigos quando a Ele recorremos, e, depois, retirando-se de nós, quando, de fato recorremos a Ele?” (Santo Agostinho), e ainda: “A divina misericórdia é uma fonte imensa; e nós apanhamos as graças com os vasos da confiança; quem vier com um vaso maior poderá tirar maior número de graças” (São Bernardo de Claraval).
Em Mt 15, 23 diz: “Ele, porém, nada lhe respondeu. Então os seus discípulos se chegaram a ele e pediram-lhe: ‘Despede-a, porque vem gritando atrás de nós”.
Ele não lhe respondeu palavra alguma. – São Jerônimo diz que, para não entrar em contradição consigo mesmo, Cristo testou a mulher, já que dissera aos discípulos: “Não tomeis o caminho dos gentios” e: “Fui enviado só às ovelhas da casa de Israel”. São João Crisóstomo crê que: 1.º Cristo quis provar a fé e a perseverança da mulher; embora sem resposta, persistiu na súplica. 2.º Quis demonstrar que, não por sua vontade, mas, pressionado pelos inoportunos rogos da mulher, concedia a graça dos milagres aos gentios. Despede-a. – Concedendo-lhe o que pedia - os apóstolos intercediam por ela, segundo Eutímio. Por que grita seguindo-nos. – São Jerônimo diz que os apóstolos pediam pela mulher para se verem livres do incômodo. Concede-lhe o que pede, pelo menos para que não nos incomode, já que tu mesmo nos ensinaste na parábola do amigo que vai altas horas da noite e pede três pães a seu amigo. Marcos (7,25) diz que a mulher entrou na casa onde estava Cristo e se prostrou aos seus pés. Parece contrário ao que se afirma nessa passagem em que se dá a entender que a mulher seguia a Cristo pela rua implorando-Lhe. Santo Agostinho diz que, primeiro, ela entrou na casa em que estava Cristo e se prostrou aos seus pés dizendo: “Tem piedade de mim” (Mc); e que Cristo, sem responder-lhe, saiu da casa e ela O seguiu rogando-lhe, como entende Mateus. Marcos (7,25) nos conta que Cristo logo que chegou àquela região se foi a uma casa onde quis se ocultar; não conseguiu porque, em seguida, veio aquela mulher siro-fenícia e se atirou aos seus pés. Temos a opinião dos que afirmam que a mulher, primeiro, encontrou Cristo pela rua e O seguiu, gritando, enquanto os discípulos diziam: “Despede-a porque vem gritando e seguindo-nos”; e que, então, entrou na casa para conceder-lhe, secretamente, o que pedia; e ela, ali se prostrou aos pés d’Ele. O Pe. Juan Leal comenta: “O Senhor se fazia surdo aos gritos daquela mulher, talvez para provar sua fé ou para humilhá-la, preparando-a, assim, para receber a graça que pensava conceder-lhe. Alguém que já tenha viajado ao oriente deve ter passado pela experiência de sentir-se importunado por um forasteiro decidido a segui-lo pedindo-lhe alguma ajuda. Para ver-se livre do forasteiro, presta o socorro que se lhe solicita”. O Pe. Manuel de Tuya escreve: “Apesar dos insistentes rogos da mulher, Ele não respondeu. Isso não significa falta de atenção. Jesus queria apenas que, pela insistência da mulher, ficasse demonstrada a extensão e a força de sua fé e da misericórdia de Deus. Tantas eram as súplicas, palavras e gestos daquela mulher que seguia Jesus e seus discípulos, que estes se dirigiram a Ele e disseram que a despedisse sem pedir-Lhe, claramente, que a atendesse miraculosamente, porque ela não fazia mais do que incomodar com a sua insistência e gritos e, isto, lhes impedia passarem despercebidos”. Não nos desanimemos se não formos atendidos imediatamente; mas, a exemplo da cananéia, perseveremos nos pedidos dando “gritos” de confiança no Senhor que tudo pode: “Bem-aventurado o homem que ouve e que vela diariamente à entrada da minha casa” (Pr 8, 34), e: “Deus quer que Lhe façamos violência com as nossas orações, pois tal violência não o irrita, mas o aplaca” (São Gregório Magno), e também: “Deus quer que perseveremos na oração até a importunação” (Cornélio a Lápide).
Em Mt 15, 24-25 diz: “Jesus respondeu: ‘Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel. Mas ela, aproximando-se, prostrou-se diante dele e pôs-se a rogar: ‘Senhor, socorre-me!”.
O Pe. Juan de Maldonado escreve: “Fui enviado somente para as ovelhas da casa de Israel – absurdo, inacreditável e uma ingratidão para com Cristo o erro dos calvinistas que dizem que o Salvador não veio nem morreu por todos os homens, mas somente pelos predestinados. Cristo diz que veio só pelos judeus – não todos os judeus eram predestinados; a maior parte deles era condenada. A frase: ‘só tinha vindo pelas ovelhas da casa de Israel’, é que primeiro tinha vindo para elas, e às outras pessoas enviaria os apóstolos para doutriná-las e curá-las com milagres. Por isso, chama-Lhe, São Paulo, ministro de circuncisão (Rm 15,8). E por que não quis favorecer, com, sua presença, aos gentios? – Fácil a resposta. Segundo Santo Agostinho, só aos judeus, em virtude da fé de Abraão, se teria feito a promessa da vinda do Messias. Assim, que não foi à região de Tiro e Sidônia para pregar e fazer milagres, mas para esconder-se; se, na verdade, chegou ao país dos gentios, como se tem discutido, fez esse prodígio não por obrigação e pressionado; mas sim, tocado e sensibilizado pelas preces e perseverança da mulher, ‘como pão que se caiu de entre as mãos como as migalhas da mesa”. O Pe. Juan Leal comenta: “Veio pregar o Evangelho a todos, contudo, sua ação direta e pessoal deveria limitar-se à Palestina, de onde, mais tarde, deveria expandir-se, através de seus apóstolos, a todo o mundo. Por isso, São Paulo chama a Cristo ‘ministro da circuncisão’ (Rm 15,8) ou dos circuncisos porque somente a eles pregou por si próprio. Também a seus discípulos, quando os mandou pregar pela primeira vez, impôs a mesma limitação (Mt 10,5). Pela narração de São Marcos (7, 24) se conclui que esse último momento ocorreu em uma casa. Tem-se uma imagem de que a mulher cananéia saiu ao encontro de Jesus quando Ele estava a caminho. Seguiu-O, gritando; e, os apóstolos, incomodados pela insistente gritaria, pedem a Jesus que a despede. Então, Jesus lhes responde que sua ação pessoal deve ser limitada. Instantes depois eles se dirigem a uma casa, possivelmente para comer. Seguidamente entra, atrás deles, a mulher e se prostra aos pés de Jesus insistindo em seu pedido”. O Pe. Manuel de Tuya escreve: “Mas voltando-se àquela mulher disse-lhe que não devia escutá-la porque Ele tinha sido enviado para atender pessoalmente às ovelhas perdidas de Israel. Marcos omite seguramente isso porque escrevia para um público cristão de etnias variadas, portanto, era pouco político destacar tal privilégio judeu. De fato, no plano de Deus, os judeus tinham, inclusive, prioridade geográfica (At 1,8) e ainda por terem sido descendentes dos ‘pais’ e por terem tido a ‘revelação’ (Rm 3,1.2; 9,4-6). Jesus faria a evangelização de Israel e depois os apóstolos a levariam até as extremidades da terra (At 1,8). O plano de Deus não poderia ser abandonado. Mas a mulher cananéia não desanimou e rogava ainda mais a Jesus e prostrando-se diante d’Ele, disse com voz calma e depositando toda sua confiança: ‘De qualquer maneira, Senhor, socorre-me”. Não sejamos arrogantes nem atrevidos nos nossos pedidos; mas peçamos ao Senhor com humildade e respeito: “Deus ouve a oração dos humildes e repele a dos orgulhosos” (Santo Afonso Maria de Ligório), e: “O Senhor atendeu a oração dos humildes” (Sl 101, 18).
Em Mt 15, 26 diz: “Ele tornou a responder: ‘Não fica bem tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos”.
O pão. – Chama, assim, a graça de fazer milagres e, geralmente, a graça do evangelho que somente aos judeus era devida em virtude da promessa feita, por pacto, a Abraão. Dos filhos. – Chama filhos aos judeus porque Ele era para eles o pai como em Ex 4,22 chama seu primogênito a Israel. E atirá-lo. – Significa que não seria delicado utilizar mal o pão dos filhos. Os cães têm seu pão, menos delicado que o dos filhos. As coisas naturais como o sol, a lua, a chuva e coisas semelhantes que são dos cães, isto é, dos gentios; é certo que, por providência de Deus, é em geral dispensado a todos e em comum. A graça do Evangelho é o pão sobrenatural, é o pão dos filhos e não se deve atirar com descuido e sim reparti-lo com cuidado e cautela. Aos cães. – Se contrapõe os cães aos filhos, embora o pai tenha cuidado de ambos; dos filhos muito mais. É acreditável que os judeus tivessem por costume chamar cães a todos os gentios, assim como os gregos os chamavam bárbaros. Deles, se acredita, aprenderam os espanhóis a chamar assim aos mouros e aos negros. Aos homens desprezíveis se costumava denominá-los dessa maneira (Mc 7,27). Diz-se que Cristo acrescentou: Deixa que, primeiro se saciem os filhos; dando, dessa maneira, alguma esperança à mulher de que, algum dia, se poderia conceder o que suplicava. E ela sabia que os filhos rechaçariam o pão celestial que lhes seria oferecido; entretanto, o mistério está naquilo que pelo pacto feito com Abraão deveria acontecer. O Pe. Juan Leal comenta: “No Antigo Testamento, os israelitas são considerados filhos de Deus. Assim também os chama São Paulo (Rom 9,5). Os judeus costumavam chamar cães aos gentios pela idolatria e corrupção de seus costumes. Assim, embora à primeira vista, a resposta de Cristo à mulher cananéia pudesse ter parecido muito dura, pela expressão ‘cachorrinho’, não significou ofensa alguma – era um costume nas conversações”. O Pe. Manuel de Tuya escreve: “Para que o plano de Deus fosse alterado, teria que ser merecido por uma fé excepcional. Dessa maneira, olhando àquela mulher cheia de confiança e amor familiar, Jesus disse-lhe: ‘Deixa que primeiro se satisfaçam os filhos’. Nessa frase o termo ‘filhos’ refere-se a Israel, aos judeus (Ex 4,23; Is 1,2; Jr 31,20; Os 11,1). Jesus Cristo não a rejeitou. O termo ‘primeiro’ sugere que depois dos judeus os demais poderiam ser atendidos. Mas completou: ‘Porque não está bem tirar o pão dos filhos e dá-lo aos cães’. Mateus recorre à segunda parte, enquanto que Marcos utiliza as duas para dar suavidade à mensagem que seria ouvida e lida pelas várias etnias cristãs às quais se destinava o seu evangelho”.
Em Mt 15, 27 diz: “Ela insistiu: ‘Isso é verdade, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos!”
É verdade Senhor. – Todos os intérpretes observam que essa palavra não é de contradição e sim de aprovação; mas não aparece com clareza o modo de perguntar da mulher. Se aceita a verdade do que Cristo diz: não está bem tomar o pão dos filhos e atirá-lo aos cães; não se pode deduzir que os cãezinhos também comem as migalhas que se caem das mesas dos senhores, mas, na verdade, comem. Isto é, embora não seja bom tomar o pão dos filhos e dá-lo aos cães, permitem os senhores que eles comam as migalhas que caem da mesa de seus donos. Os que, verdadeiramente, acertam nessa interpretação dizem: “Tem razão, Senhor, pois os cães não comem o pão dos filhos; mas, as migalhas”. Entretanto, por inúmeras razões, não é bem aceita; primeiro, poderia dizer-se mais simplesmente: Sim Senhor, os cachorros comem as migalhas; segundo, assim desaparece a cerimônia e sutileza da disputa. Afinal, Cristo pode dizer: mulher, grande é a tua fé! Cristo tinha chamado cão à cananéia. E afinal, a mulher sutilmente argumenta, concorda e consegue a decisão favorável. Tem razão, Senhor, sou cão, mas, também, os cães comem as migalhas que caem da mesa dos senhores. Logo, se sou cão, devo comer das migalhas dos filhos. A força da verdade em nossas disputas: o adversário diz algo que parece contra nós, mas vemos que nos favorece e dizemos: É verdade! Santo Hilário crê que se deu especial ênfase à palavra “cão”, como se a mulher humilhada por ser chamada assim, humilha-se mais, denominando-se cãozinho – os cachorros comem as migalhas, se sou cachorro, tenho direito. As migalhas. – Migalhas são os milagres menores e menos frequentes – Teófilo diz que é como se ela argumentasse: não lhe peço que a cada passo faça um milagre: cure aos cegos e ressuscite aos mortos; mas, somente um milagre nada difícil: retire o demônio de minha filha. Que caem. – É a contraposição da palavra “atirar” que diz Jesus; como se Lhe caísse, se escapara das mãos. Da mesa. – Assim se chama ao acúmulo de graças que se dá em Jesus Cristo; como as mesas dos ricos sempre cheias de todas as coisas. Em Cristo habita a plenitude da divindade, corporalmente. De seus senhores. – Chama senhores aos judeus a quem Cristo chamara filhos (São João Crisóstomo). Possivelmente, é a Cristo a quem chama dessa maneira; no plural, porque a palavra está no plural; e, cada cão tem seu dono. O Pe. Juan Leal comenta: “A cananéia responde reconhecendo sua miséria e a superioridade do povo judeu. Entretanto, segue confiando na misericórdia de Cristo para quem, ela acredita, que a concessão dessa graça seria como permitir que um cachorrinho comesse das migalhas de sua mesa”. O Pe. Manuel de Tuya escreve: “A literatura judaica utilizava a expressão anterior para denominar algumas vezes aos deuses pagãos e aos povos não judeus. Mas, emitida por Jesus, não teria um sentido tão forte porque Ele, com isso, queria elogiar a fé daquela mulher e curar a sua filha. Com fé e insistência e lembrando o que ocorre dentro dos lares, disse que não era preciso que se tirasse o pão da boca dos filhos, mas sim, que daquele mesmo alimento, também os cães poderiam comer as migalhas que caíssem da mesa dos senhores. Deus que melhor pode fazer do que o pai dentro do lar, abriu uma exceção para aquela mulher pagã, porque o seu coração criava uma dialética de fé e de confiança excepcionais”.
Em Mt 15, 28 diz: “Diante disso, Jesus lhe disse: ‘Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como queres!’ E a partir daquele momento sua filha ficou curada”.
Mulher, grande é a tua fé. – Admiração. Observa-se que Jesus não demonstra admiração pela fé de ninguém, além da dos gentios, como essa mulher e aquele centurião. Maior é a fé dos gentios que a dos judeus. “Seja feito como queres!” Santa Catarina de Sena comenta esse trecho: “Aqui a imensa bondade divina revela o tesouro dado à alma humana, ou seja, o livre-arbítrio, pelo qual, demônio e criatura alguma podem obrigar a alma ao pecado mortal. Ó filho caríssimo em Jesus Cristo. Vede, com fé e perseverança, que estas palavras são ditas a nós até o dia da morte. Tendo o homem sido criado por Deus, a ele é dito: ‘Seja feito como tu queres’. Isto é: ‘Eu te faço livre, para que a ninguém estejas sujeito, senão a mim’. Ó inestimável e doce fogo de amor, tu mostras e manifestas a grandeza humana: tudo foi criado para servir ao homem, e o homem para servir a ti”.
O Pe. Juan Leal comenta: “O coração de Cristo não pode resistir. A fé, a perseverança na oração e a humildade daquela mulher lhe arrancaram a graça solicitada”. O Pe. Manuel de Tuya escreve: “Jesus, então, elogiou a fé daquela mulher e disse que sua ação contrastava com o que acontecia com muitos em Israel e até na sua própria Nazaré. E, naquele mesmo instante, o milagre acorreu. Foi um milagre a distância. A mulher foi embora cheia de fé na palavra de Jesus. Chegou à sua casa, encontrou a menina no leito; e o demônio, talvez uma doença epilética, já tinha saído. Esse milagre mostra uma cena cheia de ternura, porque se refere ao coração de Jesus, aos planos do Pai e de suas exceções, à confiança de uma mulher pagã. Ainda, é exposto um milagre a distância, uma cura instantânea; na ordem do plano de Deus, fala-se do privilégio dos judeus e também da vocação das pessoas”. Santa Catarina de Sena escreve: “Aquela mulher cananéia possuía uma fé tão forte, que mereceu a expulsão do demônio de sua filha. Mais ainda. Querendo Deus revelar quanto lhe agradava sua fé, deixou a ela a decisão: ‘Seja feito para a tua filha como tu queres’ (Mt 15, 28)”.
Pe. Divino Antônio Lopes FP. Anápolis, 09 de agosto de 2011
Bibliografia
Sagrada Escritura Santa Catarina de Sena, Carta 69, 2 Santo Agostinho, Escritos São Bernardo de Claraval, Escritos São Gregório Magno, Escritos Santo Afonso Maria de Ligório, A oração Pe. Juan de Maldonado, Comentário de São Mateus Pe. Juan Leal, A Sagrada Escritura, Texto e comentário Pe. Manuel de Tuya, Bíblia comentada
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