SEXTA-FEIRA SANTA
Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz
1.° Ignomínia do patíbulo em que Jesus expira
A cruz era o suplício dos escravos, isto é, daqueles a quem a antiguidade negava a dignidade e os direitos do homem, e que eram nivelados de certo modo aos irracionais. Nunca se ouviu dizer que um homem livre passasse por essa desonra, considerada como um opróbrio pelo mundo inteiro. Entre os judeus, a própria Escritura parecia ter esse mesmo sentimento, lançando a maldição sobre o infeliz levantado na cruz. Maldito o que pende no madeiro (Dt 21, 23). Na Judéia afastavam-se todos com horror do homem suspenso no madeiro da cruz; pois nele só se pregavam os maiores criminosos, os seres mais vis e degradados. Jesus, santidade incriada e grandeza infinita, por que quereis que assim vos tratem tão indignamente? Ides ainda além dessa humilhação predita pelos profetas e pareceis gloriar-vos disso, oferecendo-vos aos inimigos e deixando-vos pregar e levantar nesse patíbulo infamante, onde vos tornais espetáculo de ignomínia para o céu e a terra! A vossa humilhação dá o golpe decisivo no nosso orgulho. Como? Um Deus, o Rei imortal, o Criador do universo é saturado de opróbrios e vilanias, e nós nos queixamos quando ignorados, esquecidos e ofendidos? E queremos ainda ocupar o primeiro lugar na estima e afeição das criaturas! Ah! Deixemos de ser tão pretensiosos e presumidos ao vermos o nosso Redentor descer ao último degrau da abjeção para curar o nosso orgulho. Esse vício, que nasceu ao pé da árvore da ciência do bem e do mal, Jesus o destruiu na árvore da cruz. Ele nos declara, com seu exemplo, que a humildade é a base do seu reino; que ele quer reinar, não sobre os soberbos, partidários de Lúcifer, mas sobre os pequenos e os humildes que obedecem à Igreja e se tornam assim verdadeiros discípulos. Sois do número desses corações dóceis, sempre prontos a submeter-se aos ensinamentos da fé e a crer nas promessas divinas?
2.° Jesus morre entre dois ladrões
Tendo o Redentor tomado sobre si os crimes do gênero humano, tornou-se de certo modo o pecador universal, levando o opróbrio de todos os pecados do mundo. Assumiu, pois, todas as consequências. Não só foi crucificado como o último dos escravos, mas morreu entre dois criminosos e dois criminosos crucificados, isto é, suspensos no patíbulo, entre a maldição do céu e da terra. Eis o Deus que São Paulo chama inocente, impoluto, segregado do pecado e mais elevado do que os céus (Hb 7, 26), ei-Lo entre dois facínoras detestados, como se lhes fora igual e considerando-os como irmãos, dando assim a entender que não viera para os justos, mas para os pecadores (Lc 5, 32). Ó humildade de um Deus! Ó caridade do Redentor! Para facilitar-nos a confissão dos nossos pecados, Ele se fez de certo modo pecador conosco e parece declarar-se de fato o último e o mais criminoso de todos. Bem-aventurados os que, como o bom ladrão, confessam humildemente as suas iniqüidades e pedem perdão ao Salvador! Ai, porém, dos orgulhosos, que, semelhantes ao ladrão impenitente, recusam confessar as faltas e se irritam contra Deus a quem ofenderam, porque os aflige para curar e salvar. Já no Calvário começa o julgamento a que Jesus submeterá todos os filhos de Adão. Colocado entre dois sentenciados, parece fazer a separação dos justos e dos pecadores. Dirige-se ao bom ladrão como aos eleitos no fim dos séculos: “Vem, bendito do meu Pai, possui o reino que te está preparado desde o princípio do mundo, pois que hoje mesmo estarás comigo no paraíso”. Ao outro, colocado à sua esquerda, dá a sentença reservada aos réprobos: “Retira-te, maldito, para o fogo eterno”. A humildade arrependida é, pois, o caráter dos eleitos, e o orgulho obstinado é o dos escravos de Satanás. Se queres pertencer ao Salvador e partilhar a sorte do ladrão penitente, humilha-te como ele. Jesus prefere a humildade dum pecador ao orgulho dum inocente.
3.° Jesus venceu a morte e o pecado
Como Davi pediu espontaneamente para combater a Golias e o provocou indo ao seu encontro, assim Jesus passou sua vida inteira num vivo desejo de forçar a morte para a grande luta que a Sexta-feira Santa comemora. “Devo ser batizado, dizia ele, por um batismo de sangue; e quanto desejo que ele se realize” (Lc 12, 50). Fez ainda mais: provocou de certo modo a morte para o combate, adiantando-se àqueles que o deveriam matar. Davi depôs as armas de que Saul o revestira, e avançou contra o adversário com a sua funda e cajado de pastor; Jesus, para vencer a morte, terrível inimiga do gênero humano, depôs por assim dizer a sua glória e poder, e não quis outra arma senão a cruz. A morte, porém, não se atreveu aproximar-se dele, para cortar-lhe o fio da vida. Que fez Jesus? Exclamou: “Meu Pai, em vossas mãos encomendo o meu espírito”, depois inclinou a cabeça como para dar à morte o sinal que esta esperava com hesitação. Ela fez então o seu ofício, mas quebrou-lhe o aguilhão. O aguilhão da morte, diz o apóstolo, é o pecado, por cuja causa ele podia levar-nos desta vida miserável para a morte eterna. Ora, o triunfo de Jesus liberta-nos desta morte. Morremos quanto ao corpo, mas as nossas almas estão ao abrigo da morte do pecado e da morte eterna, que é a sua consequência. Essa é a grande vitória conquistada por Jesus crucificado! Passemos o dia de hoje a saborear esses mistérios; agradeçamos a bondade infinita de Deus que nos resgatou por tão alto preço; choremos as dores de Jesus; regozijemo-nos com sua vitória e com as graças que nos mereceu. Antes de expirar, Ele nos dissera haver consumado a obra da nossa Redenção ou de nossa salvação. Resta-nos apenas o trabalho de aplicar-nos os seus méritos, rezando com frequência e seguindo as suas pegadas. É assim que fazemos?
4.° Frutos da vitória de Jesus
Jesus, que nada tinha a ver com a morte, dela triunfou em proveito nosso; tornou-a doce, transformando-a em passagem para uma vida melhor. Antes da vinda do Redentor, era duro deixar a terra, até para os justos, pois que o céu lhes estava fechado. Por sua morte, diz o apóstolo, o Cristo libertou os que a morte conservara presos durante toda a sua vida. A confissão, a eucaristia, a extrema-unção, as indulgências, frutos preciosos da morte do Salvador, desfazem todo o amargor de nossa última hora. De fato, Jesus foi o primeiro a beber o cálice que nos amedrontava; e no-lo apresenta para que o bebamos também. Mas a nossa parte é bem mais doce do que a Sua. Sobre a cruz em que agonizava, não tinha Ele repouso. Todas as ondas da cólera divina pareciam descarregar sobre Ele: expirou de dores, saturado de opróbrios por suas criaturas. Um tal espetáculo não é porventura capaz de adoçar a amargura da nossa última agonia e de tornar-nos consoladora a morte? Habituemo-nos a meditar em Jesus crucificado, para que no momento supremo a vista do crucifixo nos anime e nos dê a paz com a esperança da salvação. Recordemos que a morte nos tornou doce pela vitória de Jesus sobre o pecado. Participaremos dos frutos dessa vitória se triunfarmos do pecado e das inclinações que a eles conduzem. Reprimamos o orgulho, que resiste à autoridade legítima e recusa obedecer-lhe; a sensualidade, que só pensa no prazer dos sentidos e se quer satisfazer apesar dos gritos e remorsos da consciência; a avareza insaciável, que se apega aos bens passageiros sem cuidar das riquezas eternas.
“Salve, cabeça ensangüentada, coroada de espinhos, ferida, rasgada, batida pela cana, coberta de escarros! Salve! Em vossa face tão suave vemos os sinais da morte; perdeu a cor, mas sob aquela espantosa palidez adora-vos a corte celeste. Ó Jesus, tão ferido, tão esmagado e condenado pelos nossos pecados! Ó Santa Face, fazei que aos olhos deste indigno pecador resplandeça um sinal de vosso amor! Pequei, perdoai-me! Não me rejeiteis para longe de vós. Enquanto a morte se aproxima de vós, inclinai um pouco para mim vossa cabeça e deixai que repouse entre meus braços... E quando também eu tiver de morrer, vinde logo, ó Jesus, sede meu socorro. Protegei-me e libertai-me! Partirei quando quiserdes, meu querido Jesus, mas ficai então junto de mim! Apertar-vos-ei ao peito, porque me amais, mas então, mostrai-vos a mim naquela cruz que me salvou!” (São Bernardo de Claraval, PL 184).
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