GULA: QUINTO VÍCIO CAPITAL
(Fl 3, 19)

 

 “... seu deus é o ventre...”

 

 

 

Gula é a atração desordenada pela comida ou bebida. Parece o mais ignóbil dos vícios; no glutão há algo de animal. Prejudica a saúde, produz o linguajar soez e blasfemo, injustiças contra a própria família e outras pessoas, e uma legião de males demasiado evidentes para necessitarem de enumerações.

Gula é o amor desordenado do comer e do beber. Comer e beber é obrigação necessária à vida e à saúde. Deus pôs neste ato puramente animal uma sensação agradável para aceitarmos melhor a obrigação aborrecida e penosa. A gula consiste em transformar a necessidade em gozo, e é uma desordem comer e beber sem regra e sem precisão, com excesso na quantidade, muita delicadeza na qualidade, com avidez ou com muito luxo.

Gula não é senão o abuso do prazer legítimo que Deus quis que  acompanhasse o comer e o beber, tão necessários à conservação do indivíduo.

 

 

1.° Natureza. A gula é o amor desordenado dos prazeres da mesa, da bebida ou da comida. A desordem consiste em procurar o prazer do alimento, por si mesmo, considerando-o explícita ou implicitamente como um fim, a exemplo daqueles que fazem do seu ventre um deus, ou em o procurar com excesso, sem respeitar as regras que dita a sobriedade, algumas vezes até com prejuízo da saúde.

 

Os teólogos assinalam quatro maneiras diversas de faltar a essas regras:

Praepropere: Isto é, comer antes de sentir necessidade, fora das horas marcadas para as refeições, e isto sem motivo legítimo, só para satisfazer a gula.

Laute et studiose: Buscar iguarias esquisitas ou preparadas com demasiado apuro, para gozar delas mais; é o pecado dos gulosos ou gastrônomos.

Nimis:   É   ultrapassar  os   limites  do   apetite  ou  da  necessidade, enfartar-se de comida ou bebida, com risco de arruinar a saúde; é evidente que só o prazer desordenado pode explicar este excesso, que no mundo se chama glutonaria.

Ardenter: Comer com avidez, com sofreguidão, como fazem certos animais; e esta maneira de proceder é considerada no mundo como grosseria.

 

2.° A malícia da gula vem de escravizar a alma ao corpo, materializar o homem, enfraquecer a sua vida intelectual e moral, preparando-o, por um pendor insensível, ao prazer da volúpia, que, em substância, é do mesmo gênero. Para lhe determinarmos com precisão a culpabilidade, importa fazer esta distinção.

A) A gula é falta grave: a) Quando chega a excessos tais que nos torne incapazes, por tempo notável, de cumprir os nossos deveres de estado ou obedecer às leis divinas ou eclesiásticas; por exemplo, quando prejudica a saúde, quando dá origem a despesas loucas que põem em risco os interesses da família, quando leva a faltar às leis da abstinência ou do jejum, b) O mesmo se diga, quando se torna causa de faltas graves.

A vida e a saúde física são bens preciosos doados por Deus. Devemos cuidar delas com equilíbrio, levando em conta as necessidades alheias e o bem comum.

O cuidado com a saúde dos cidadãos, requer a ajuda da sociedade para obter as condições de vida que permitam crescer e atingir a maturidade: alimento, roupa, moradia, cuidado da saúde, ensino básico, emprego, assistência social.

Se a moral apela para o respeito à vida corporal, não faz desta um valor absoluto, insurgindo-se contra uma concepção neo-pagã que tende a promover o culto do corpo, a tudo sacrificar-lhe, a idolatrar a perfeição física e o êxito esportivo. Em razão da escolha seletiva que faz entre os fortes e os fracos, tal concepção pode conduzir à perversão das relações humanas.

A virtude da temperança manda evitar toda espécie de excesso, o abuso da comida, do álcool, do fumo e dos medicamentos. Aqueles que, em estado de embriaguez ou por gosto imoderado pela velocidade, põem em risco a segurança alheia e a própria, nas estradas, no mar ou no ar, tornam-se gravemente culpáveis.

 

 

Eis alguns exemplos. “Os excessos da mesa, diz o P. Janvier, dispõem à incontinência, que é filha da gula. Incontinência dos olhos e dos ouvidos, que vão buscar pasto doentio nos espetáculos e canções licenciosas; incontinência da imaginação, que se perturba; incontinência da memória que busca no passado recordações capazes de excitar a concupiscência; incontinência do pensamento que, extraviando-se, se derrama sobre os objetos ilícitos; incontinência do coração, que aspira às afeições carnais; incontinência da vontade, que abdica para se escravizar aos sentidos... A intemperança da mesa leva à intemperança da língua. Quantas faltas não comete a língua no decurso de banquetes pomposos e prolongados! Atraiçoam-se os segredos que havia promessa de guardar, segredos profissionais que são sagrados, e entrega-se à malignidade a reputação dum marido, duma esposa, duma mãe, a honra duma família, quando não é o futuro duma nação. Faltas contra a justiça e caridade! A maledicência, a calúnia, a detração, sob as suas formas mais inescusáveis, exprimem-se com uma liberdade desconcertante... Faltas contra a prudência! Tomam-se compromissos que não será possível guardar, sem ofender todas as leis da moral...”

 

B) A gula não passa de falta venial, quando alguém cede aos prazeres da mesa imoderadamente, mas sem cair em excessos graves, sem se expor a infringir qualquer preceito importante. Assim, por exemplo, seria pecado venial comer ou beber mais que de costume, por prazer, para fazer honra a um lauto banquete ou agradar a um amigo, sem cometer excesso notável.

 

C) Sob o aspecto da perfeição, é a gula um obstáculo sério: l) Alimenta a falta de mortificação, que enfraquece a vontade e desenvolve o amor do prazer sensual que prepara a alma para capitulações perigosas; 2) É fonte de muitas faltas, produzindo uma alegria excessiva, que leva à dissipação, à loquacidade, aos gracejos de gosto duvidoso, à falta de recato e modéstia, e abre assim a alma aos assaltos do demônio. Importa, pois, combatê-la.

 

3.° Remédios. O princípio que nos deve dirigir na luta contra a gula, é que o prazer não é fim, senão meio, e que, por conseguinte, deve ser subordinado à reta razão iluminada pela fé. Ora, a fé diz-nos que é necessário santificar os prazeres da mesa com pureza de intenção, sobriedade e mortificação.

l) Antes de tudo, é preciso tomar as refeições com intenção reta e sobrenatural, não como o animal que não busca mais que o prazer, não como o filósofo que se limita a uma intenção honesta, senão como cristão, para melhor trabalhar na glória de Deus: com espírito de reconhecimento para com a bondade de Deus que se digna conceder-nos o pão de cada dia; com espírito de humildade, dizendo-nos a nós mesmos, com São Vicente de Paulo, que não merecemos o pão que comemos; com espírito de amor, empregando as forças, que recuperamos, no serviço de Deus e das almas. Assim cumprimos a recomendação feita por São Paulo aos primeiros cristãos, que em muitas comunidades se recorda ao princípio das refeições: “Quer comais, quer bebais, fazei tudo para glória de Deus” (1 Cor 10, 31).

 

2) Esta pureza de intenção nos fará guardar a sobriedade ou a justa medida: e na verdade, se queremos comer para adquirir as forças necessárias ao cumprimento dos nossos deveres de estado, evitaremos todos os excessos que poderiam comprometer-nos a saúde. Ora, dizem-nos os higienistas, a “sobriedade (ou frugalidade) é a condição essencial do vigor físico e moral”. Já que comemos para viver, devemos comer sadiamente para sadiamente viver. Fujamos, pois, de comer ou beber demais... Devemos levantar-nos da mesa com uma sensação de leveza e vigor, ficar um pouco aquém do apetite, e evitar ficar entorpecidos com os excessos da lauta mesa.

 

É bom, contudo, observar que a medida não é a mesma para todos. Há temperamentos que, para se preservarem da tuberculose, têm necessidade de mais copiosa alimentação; outros há, pelo contrário, que, para combaterem o artritismo, precisam moderar o apetite. Sigam, pois, neste ponto os conselhos dum médico experimentado.

               

À sobriedade junta o cristão a prática de algumas mortificações. A) Como é fácil escorregar por esta ladeira e conceder demais à sensualidade, convém privar-nos, de vez em quando, de alguns acepipes de que gostamos, úteis até, mas não necessários. Desse modo se adquire domínio sobre a sensualidade, privando-a de algumas satisfações legítimas; desembaraça-se o espírito da servidão dos sentidos, dá-se mais liberdade para a oração e para o estudo e evitam muitas tentações perigosas.

B) É uma excelente prática habituar-se a não tomar refeição alguma, sem nela fazer qualquer mortificação. Essas pequenas mortificações têm a vantagem de fortificar a vontade sem dano para a saúde, e é por isso que são geralmente preferíveis às mortificações mais importantes que só raramente se praticam. As almas boas animam essas mortificações com um motivo de caridade; deixam um bocadinho para os pobres; e, como faz notar São Vicente Ferrer , o que se deixa não deve ser o pior senão o mais escolhido, por pouquinho que seja. É também excelente prática habituar-se a comer um pouco do que não agrada.

 

 

 

Pe. Divino Antônio Lopes FP.

Anápolis, 03 de março de 2008

 

Bibliografia

 

Escritura Sagrada

Adolfo Tanquerey, Compêndio de Teologia Ascética e Mística

Pe. Leo J. Trese, A Fé Explicada

Mnr Cauly, Curso de Instrução Religiosa – O Catecismo Explicado

Ricardo Sada e Alfonso Monroy, Curso de Teologia Moral

  

 

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Pe. Divino Antônio Lopes FP. “Gula: Quinto vício capital”

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