CÉSAR E DEUS

(Mt 22, 15-22)

 

"15 Quando eles partiram, os fariseus fizeram um conselho para tramar como apanhá-lo por alguma palavra. 16 E lhe enviaram os seus discípulos, juntamente com os herodianos, e para lhe dizerem: 'Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não dás preferência a ninguém, pois não consideras um homem pelas aparências. 17 Dize-nos, pois, que te parece: é lícito pagar imposto a César, ou não?' 18 Jesus, porém, percebendo a sua malícia, disse: 'Hipócritas! Por que me pondes à prova? 19 Mostrai-me a moeda do imposto'. Apresentaram-lhe um denário. 20 Disse ele: 'De quem é esta imagem e a inscrição?' 21 Responderam: 'De César'. Então lhes disse: 'Devolvei, pois, o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus'. 22 Ao ouvirem isso, ficaram maravilhados e, deixando-o, foram-se embora".

 

1. CÉSAR E DEUS

 

Durante a última semana da sua vida mortal, Jesus foi assaltado pelos seus inimigos com uma exasperação encarniçada e velada. Eles queriam a todo custo matá-lo, salvando, porém, as aparências legais: "Fariseus e herodianos unem-se para conspirar contra Jesus. Os herodianos eram os partidários da política de Herodes e da sua dinastia: viam de bom grado a dominação romana e, em matéria religiosa, compartilhavam as idéias materialistas dos saduceus. Os fariseus eram zelosos cumpridores da Lei, anti-romanos e consideravam o regime de Herodes e dos seus sucessores como uma usurpação. Não se pode imaginar diferença mais radical. Esta união tão surpreendente indica até que ponto odiavam o Senhor" (Edições Theologica).

Vão, pois ter com Ele, e ardilosamente lhe dizem: "Mestre, nós sabemos que és sincero e não olhas em rosto a ninguém, e não cedes minimamente quando se trata da verdade. Dize-nos, pois: é lícito, ou não, pagar o tributo a César? Devemos ou não devemos pagá-lo?"

Pseudo-Crisóstomo escreve: "Assim como sucede quando alguém quer deter o curso da água que corre, chegando a saltar a represa, busca seu curso por outro lado; assim a malícia dos judeus, quando se viu confundida por uma parte, buscou saída por outra. Por isso disse: 'Então os fariseus se foram', etc. Foram buscar os herodianos. Tal foi o conselho, como tais eram os que o deram. Por isso segue: 'E o enviaram seus discípulos juntamente com os herodianos dizendo: Mestre, sabemos que és verdadeiro e que ensinas o caminho de Deus" (Opus Imperfectum In Matthaeum, hom. 42), e: "Se valeram de pessoas desconhecidas para enganar mais facilmente a Jesus e poder-lhe apanhar por meio delas. Porque como temiam as gentes, não se atreviam a fazer por si mesmos" (Glosa), e também: "Fazia pouco que a Judéia ficara submetida aos romanos por César Augusto, quando houve o censo de todo o mundo e se estabeleceram os tributos. Por isso, havia no povo muito desejo de rebelião. Diziam uns que os romanos cuidavam da segurança e da tranquilidade de todos, por cuja razão lhes devia pagar o tributo; porém, os fariseus, que se atribuíam toda justiça, apoiavam, pelo contrário, que o povo de Deus (que já pagava o dízimo, dava as primícias, e tudo mais que estava prescrito na lei) não devia estar sujeito a leis humanas. Porém, César Augusto havia colocado Herodes, estrangeiro e prosélito, como rei dos judeus; o qual devia ordenar os tributos e obedecer ao Império Romano. Portanto, os fariseus enviam a seus discípulos com os herodianos, isto é, ou com os soldados de Herodes ou com aqueles a quem davam o apelido irônico de herodianos e não tratavam com afeto ao culto divino, porque pagavam seus tributos aos romanos" (São Jerônimo), e ainda: "Por isso, pois, enviam a seus discípulos junto com os soldados de Herodes, para que pudessem censurar qualquer coisa que dissesse o Salvador. Desejavam, pois, que o Senhor dissesse algo contra os herodianos, porque como temiam prendê-Lo por temor da multidão, queriam pô-Lo em perigo e fazê-Lo aparecer como inimigo dos tributos públicos" (São João Crisóstomo, Homilia In Matthaeum, hom. 70, 1), e:"Esta é a primeira simulação dos hipócritas, elogiar aos que querem destruir; e, portanto, começam os elogios dizendo: 'Mestre, sabemos que és muito verdadeiro, etc.' Lhe chamam Mestre, para que vendo-se honrado e louvado, lhes manifeste simplesmente os segredos de seu coração, como desejando ter-lhes por discípulos" (Pseudo-Crisóstomo, Opus Imperfectum In Matthaeum, hom. 42).

Nestes termos, a questão era terrivelmente insidiosa. Para as autoridades romanas, a recusa do tributo era um ato de rebelião tal, que fazia ir à morte; mas, aos olhos do povo, pagar o tributo era o sinal mais odioso de submissão à tirania prepotente do estrangeiro: "Se o Senhor respondia que era lícito pagar tributo a César, os fariseus podiam desacreditá-Lo diante do povo, que pensava com mentalidade nacionalista; se respondia que não era lícito, os herodianos podiam denunciá-Lo diante da autoridade romana" (Edições Theologica).

Que responderia agora Jesus?

A resposta de Jesus foi simples e decidida. Ele pediu para ver uma moeda, e eles lhe apresentaram uma que era romana, com a sua bela efígie do imperador circundada por estas palavras: "Tibério César, filho do divino Augusto".

Então Ele perguntou:

"De quem é esta efígie, e de quem é este nome?"

"De César".

"Pois então, dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus".

Nestas palavras há uma regra divinamente equilibrada, a única que pode dar ao mundo a ordem e a paz, a única que pode ao mesmo tempo conservar aos homens a verdadeira liberdade. Aos hebreus, que, ufanos do seu antigo regime teocrático, recusavam toda autoridade de rei ou de imperador, decididos a submeter-se somente a Deus, Jesus ensina que é preciso respeitar e obedecer também às autoridades constituídas: "Dai a César o que é de César".

Edições Theologica comenta: "Jesus dá uma resposta cuja profundidade eles não atingem e que é ao mesmo tempo absolutamente fiel à pregação que tem vindo a fazer do Reino de Deus: dai a César o que é de César, mas não mais do que isso, pois, sem dúvida, há que dar a Deus o que Lhe corresponde, reverso necessário da questão, que não lhe tinham proposto. Não existe igualdade de nível, pois para um israelita Deus transcende toda a quota humana. Que é que corresponde a César? A tribulação, de que necessita para a existência do ordenamento temporal. Que é que se deve dar a Deus? Evidentemente todos os mandamentos que implicam o amor e a entrega pessoais. A resposta de Jesus supera o horizonte humano dos seus tentadores; está por cima do sim e do não que queriam arrancar-lhe. A doutrina de Jesus Cristo transcende qualquer proposição política, e se os fiéis, no exercício da sua liberdade, escolhem uma determinada solução para os assuntos de caráter temporal, recordem que em tais casos a ninguém é permitido reivindicar em exclusivo a autoridade da Igreja a favor da sua opinião. Jesus, com estas palavras, reconheceu o poder civil e os seus direitos, mas avisou claramente que se devem respeitar os direitos superiores de Deus, e indicou como parte da vontade de Deus o cumprimento fiel dos deveres cívicos".

Aos romanos, que, sustentando o preconceito oposto, faziam do Estado um poder absoluto, e davam a César um obséquio ilimitado, Jesus ensina que o poder político tem limites e não pode violentar as leis da consciência e da fé, as quais são de Deus: "Dai a Deus o que é de Deus".

A este propósito, tem-se tornado a fazer hoje no mundo muita confusão, e muitos oscilam entre dois extremos opostos: da anarquia e do individualismo exagerado que recusam a autoridade e o controle do Estado, chega-se até a certos nacionalismos absurdos, que sufocam a liberdade e a personalidade.

No meio de tanto barulho e desorientação, só o Evangelho tem uma palavra justa a pôr; tão justa que pelos exagerados de uma e da outra parte é combatida: combatida porque uns a acham demasiado servil, e outros porque a acham pouquíssimo favorável à autoridade do Estado. Sempre assaltada, extinta nunca, a palavra de Cristo permanece acesa sobre as ondulações da história como um farol de salvação para os homens de boa vontade.

 

1. Dai a César o que é de César

 

Que é que um cristão deve dar a César, isto é, à sua pátria terrena e aos que a governam?

a) Antes de tudo a oração. São Paulo, numa Epístola, escreve estas recomendações: "Como primeira coisa suplico-vos que façais súplicas e votos por todos os homens: pelos reis e por todos aqueles constituídos em altos cargos, a fim de que possamos levar vida quieta e tranquila com toda piedade e honestidade. Asseguro-vos que isto será bem feito e muito agradável na presença do Senhor nosso Deus, que quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade" (1 Tm 2, 1-4).

b) E, depois, deve amor. O nosso divino Salvador, que, no entanto, descera à terra para a salvação de todos os homens, dizia que queria evangelizar em primeiro lugar os seus compatrícios.

Estes O repudiaram, mas Ele não cessou de amar a sua pátria que O maltratava. E, pensando na ruína iminente que pesava sobre a sua capital, não pôde conter as lágrimas e chorou. Nenhum patriota derramou um pranto tão puro e tão intenso de amor como esse.

Devemos ser cristãos, isto é, imitadores de Cristo, também no amor à pátria; alegrar-nos com os seus triunfos, chorar com as suas desventuras, cooperar para a sua prosperidade. Lembremo-nos, também, de que o amor verdadeiro nunca é desacompanhado do sacrifício.

c) O cristão deve saber fazer muitos sacrifícios pela sua pátria. O sacrifício da obediência às leis: e São Paulo dá o motivo profundo
disso, observando que todo poder vem de Deus, e que quem resiste ao poder legítimo resiste a Deus.

O sacrifício do próprio dinheiro: pagando sem fraude os impostos, e persuadindo-nos de que em certos momentos de crise e de angústia mundial precisamos sujeitar-nos mesmo a pesos extraordinários, visto ser isso necessário para o bem-estar social e para a independência moral da pátria.

O sacrifício do próprio tempo e das próprias capacidades, quando a pátria nos confiasse um posto de responsabilidade e de governo. Enquanto isso, formemos para nós uma consciência reta, inflexível, religiosa, também por amor da nossa pátria. Há outra revolução a fazer, e precisamos ter a coragem de enfrentá-la: a reforma e o melhoramento interior de cada um de nós. Os cidadãos e os magistrados de consciência incorrupta e desinteressada é que fazem a prosperidade de um povo.

Também o sacrifício da vida pode ser-nos pedido pela pátria em certas horas de extrema necessidade. E o cristão não deve faltar nem mesmo à prova maior do amor: a morte.

 

2. Dai a Deus o que é de Deus

 

A pátria terrena, porém, não é o único fim, e nem tão pouco o principal. Educar gerações fisicamente fortes, adestrá-las para o perigo, fazê-las ágeis no manejo das armas, habituá-las à disciplina militar, é boa coisa, mas não é tudo.

O escopo supremo da nossa vida na terra é conhecer, amar e servir a Deus, para merecermos depois da morte vê-Lo e gozá-Lo para sempre no Paraíso. Ninguém pode tirar-nos ou diminuir-nos de qualquer modo esta liberdade de irmos a Deus e de atingirmos a nossa plena felicidade.

Em Tânger, a 21 de julho do ano 298, celebrava-se o dia natalício do imperador. Os oficiais da Legião Trajana haviam organizado uma festa patriótica com banquetes, pândegas vergonhosas, sacrifícios aos deuses e ao Gênio do divino imperador. Só o centurião Marcelo ficou à parte, estomagado. Os seus camaradas quiseram constrangê-lo a participar da festa como eles, e pela sua atitude o acusavam de escassa fidelidade ao exército e à sorte das armas imperiais.

O centurião Marcelo, convencido de que aquele festim era uma profanação indigna, lançou por terra o cinturão militar e também o bastão flexível de pau de videira que era o sinal da sua patente, e diante das insígnias da legião fez esta declaração: "Se não se pode ser soldado senão com a condição de oferecer sacrifício aos deuses e aos imperadores, e de prostituir a sua consciência, renuncio ao meu posto e saio do exército".

Ficaram estupefatos, soldados e oficiais, ao ouvirem palavras tão inesperadas; depois agarraram-no e arrastaram-no ao cárcere militar.

A 30 de outubro ele foi processado.

O oficial judiciário, de nome Agricolano, começou o interrogatório.

"Militavas como centurião regular?"

Marcelo respondeu: "Sim".

Agricolano disse:"Que loucura te deu para renegares o teu juramento e falares de tal modo?"

Marcelo respondeu:"Servir e temer a Deus, a isso chamas loucura?"

Agricolano redarguiu:"Disseste realmente todas as frases de que és acusado?"

Marcelo respondeu: "Disse-as".

"E lançaste fora as armas?"

"Lancei, porque já não me era lícito, como cristão, trazê-las".

Então Agricolano concluiu: "O caso do centurião Marcelo é tal, que deve ser punido para resguardar a disciplina militar". E pronunciou a sentença: "Ordeno que Marcelo seja decapitado, porquanto, militando como centurião regular, publicamente renegou o juramento, declarando sentir-se desonrado com ele, e, além disso, proferiu frases injuriosas".

Enquanto era levado ao suplício, Marcelo voltou-se para trás e disse a Agricolano: "Deus te recompense por não me teres mandado aplicar penas infamantes: assim, à espada, convinha que um centurião saísse deste mundo" (São Colombo, Atos dos Mártires, S. E. L, pág. 259 ss.).

Desse comovente episódio emergem claramente dois conceitos:

a) O Catolicismo não é uma religião nacional. E, assim como outrora ele não se deixou confundir com a política do Império Romano, assim também agora não pode deixar-se confundir com a política de nenhum Estado moderno. Ele é religião do Deus verdadeiro e único, do Deus Pai de todos: por isto não é de nenhuma nação exclusivamente, mas de todas as consciências humanas, sem distinção de classe ou de país.

Em face de Deus, em face do Catolicismo, um selvagem está no mesmo plano que um "lord" inglês.

b) O martírio do centurião Marcelo ainda nos ensina que o poder do Estado tem limites.

A Religião é superior à política, a vida eterna deve sobrelevar à vida terrena; e a consciência moral e religiosa tem as suas liberdades invioláveis que nenhuma lei de homem pode sufocar.

César não deve pretender aquilo que é de Deus; e, se o pretender, todo cristão verdadeiro deve morrer antes que ceder. Por esta liberdade souberam morrer muitos cristãos em todos os séculos, e mesmo no nosso.

Maquiavel disse: "... que a religião cristã impede o heroísmo patriótico em pró da defesa e grandeza da pátria, visto como, acostumando os homens a colocarem no Paraíso as suas esperanças e desejos, os torna fracos e indiferentes para os interesses deste mundo" (Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, liv. II, cap. II).

De vez em quando há alguém que renova esta ferramenta enferrujada, e quer fazer dela uma arma de ofensiva contra a Igreja e impedi-la de educar a juventude, como se ela fosse intrinsecamente incapaz disto.

Com maior arrojo pode morrer no campo de batalha aquele que está certo de que a vida dada em favor de César lhe é restituída por Deus, maior e mais bela.

 

2. OS BENS ALHEIOS

 

Nunca vos perguntastes qual o pecado que no mundo é mais detestado? Experimentai pensar nisso e vereis que é o pecado contra o sétimo mandamento: Não furtar. Não é ao ateu, não é ao libertino, mas é à pessoa que de qualquer modo se apropria do alheio que o mundo lança em rosto o seu anátema: "És desonesto".

Honestidade e desonestidade para o mundo, estão, pois, em relação com o não furtar. Mas, se o furto é o pecado mais abominado e temido pelos homens, todavia, bem poucos podem dizer-se inocentes dele. E assim devia ser desde o tempo de São João Crisóstomo, no século IV, porque é ele quem faz esta observação.

Por isto, sobre o furto meditaremos desta vez, deduzindo alguns pensamentos do Evangelho segundo São Mateus 22, 15-22. Os fariseus maquinavam armar a Jesus uma cilada. Enviaram-lhe um grupinho de judeus com alguns herodianos para lhe dizerem: "Mestre, nós bem sabemos que és sincero, e sabes dizer a verdade sem temer a quem quer que seja, porque não fazes acepção de pessoa. Dá-nos, pois, a tua opinião: pagar o tributo ao imperador de Roma é lícito ou não?"

A questão era tão espinhosa que parecia não poder resolver-se sem se cair na armadilha. Se Ele aprovasse o tributo, teria por inimigos todos os judeus, que, como povo de Deus, sustentavam não dever pagar tributo a nenhum homem. Se, ao contrário, Ele desaprovasse o tributo, teria contra si todos os herodianos, que eram do partido do imperador e seria aprisionado como um sedicioso.

São João Crisóstomo escreve: "E como sabiam que a alguns que haviam aspirado a introduzir esta discórdia os haviam matado, queriam também fazer-lhe cair nesta suspeita por estas palavras. Prossegue: 'Porém Jesus, conhecendo a malícia deles', etc" (Homilia In Matthaeum, hom. 70, 1), e:"Não lhes responde da mesma maneira simples e pacífica, mas contesta segundo as intenções más dos que perguntam, porque Deus responde aos pensamentos e não às palavras" (Pseudo-Crisóstomo, Opus Imperfectum In Matthaeum, hom. 42), e também: "A primeira virtude do que responde consiste em conhecer as intenções dos que perguntam e não chamar-lhes seus discípulos, mas tentadores. Hipócrita é aquele que aparenta ser algo que não é" (São Jerônimo), e ainda: "Lhes chama hipócritas porque não levam até o fim o que pensavam realizar, sabendo que Ele conhece os corações dos homens e que, por isso mesmo, conhecia suas más intenções. Vê-se aqui o porquê os fariseus o bajulavam para perder-lhe. Porém Jesus os confundia para salvá-los" (Pseudo-Crisóstomo, Opus Imperfectum In Matthaeum, hom. 42).

Se aqueles cabeçudos fariseus acreditavam realmente dar o xeque-mate em Jesus, sabedoria infinita, eram bem ingênuos.

"Mostrai-me uma moeda", respondeu Jesus; e eles lhe apresentaram um dinheiro, no qual estava a imagem de Tibério César.

Disse Jesus:"De quem é esta imagem? Que nome está escrito nela?"

– De César.

"Então, dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus". Todos emudeceram.

Dar a cada um o que é seu: eis a justiça. Essa justiça os homens a violam de dois modos: ou roubando ou não restituindo coisa já roubada. E o quanto é fácil roubar, outro tanto é difícil, depois, restituir. São estes os dois pensamentos da nossa reflexão. Mas, antes, fica bem recordar a observação de Santo Tomás de Aquino: "Por que é que Jesus Cristo fala primeiro de restituir a César e depois a Deus? Não é porque o interesse do próximo prevaleça sobre o interesse de Deus, mas sim porque ninguém pode dar a Deus aquilo que lhe cabe, se antes não tiver dado ao próximo aquilo que lhe é devido".

 

1. É fácil roubar

 

O filho de Sirac, na Sagrada Escritura, procurava por toda parte um homem que tivesse as mãos limpas dos bens alheios. E, andando à procura, viu uma multidão de gente que corria atrás da injustiça; gente que enriquecia muito depressa; gente que, deslumbrada pelo luzir do ouro, não sabia mais distinguir "o teu do meu". Diz a Sagrada Escritura: "Mostrai-me um rico sem mancha, eu lhe chamarei um homem milagroso" (Eclo 31, 8).

Sim, realmente é um milagre da graça de Deus que o homem se conserve afastado de toda usurpação para com seu próximo. Duas são as causas que nos impelem a transgredir o "não furtar" do Decálogo: o apego ansioso que cada um sente aos bens do mundo e a contínua ocasião em que nos achamos de poder, facilmente e sem risco, apropriar-nos do dinheiro ou dos haveres de outrem.

Perguntemo-nos: por que é que, quando observamos um nosso vizinho mais rico do que nós, mais abençoado nos negócios do que nós, do fundo escuro da nossa natureza se eleva um sentimento de ciúme que se torna inveja, a qual, se não é reprimida, se torna raiva de não possuirmos também tanto quanto ele e mais ainda?

É a avidez dos bens terrenos que nos assalta; é a avareza que nunca diz basta; é um dos sete vícios capitais que tem raiz em todo coração de homem. Foi esta cupidez que ensinou as vias mais tortuosas do enriquecer: a usura, o contrato falso, a falência dolosa e o furto descarado.

Se a esta mal nascida tendência, juntardes as miúdas ocasiões que todo dia se nos oferecem de roubar bastante honradamente, compreende-se por que razão o filho de Sirac procurou em vão o homem de mãos limpas do bem alheio.

Um servo tem sempre nas mãos os bens do patrão: se não tem a consciência mais do que timorata, um pouco hoje e um pouco amanhã, saberíeis vós calcular o quanto ela rouba num ano?

Um negociante vende e compra continuamente: um decímetro a mais quando compra, um decímetro a menos quando vende, dois pesos e duas medidas, e ele acredita saber desempenhar o seu ofício, mas faz o ofício de ladrão.

Um chefe que defraude, mesmo em pequenina quantia por dia os seus operários, sabe ele a quanto monta o seu furto cada mês?

O assalariado que à tarde, debaixo das roupas, carrega com um ferro, um pau, um artigo do seu trabalho... acaso não se iludirá de ter uma consciência limpa? E todos aqueles que, depois de contraírem uma dívida, se recusam a pagar e, espera um mês e pacienta outro mês, fazem os credores blasfemarem, acaso não roubam?

Para roubar não é necessário forçar uma fechadura, ou pular para dentro, de noite, por uma janela; mas basta ajudar, aconselhar de qualquer modo outro a roubar; basta comprar a coisa roubada, basta reter a coisa achada.

 

2. É difícil restituir

 

Escreve Santo Agostinho no seu livro das cinquenta homilias: "Quero, ó irmãos, contar-vos o que vi, o que tanto me comoveu, para que excite em vós também um forte sentimento de religião. Vivia em Milão um homem, pobre de bens terrenos, mas rico de bens celestes. Um dia, por uma rua, ele achou uma bolsinha, abriu-a e viu luzir-lhe dentro duzentas moedas de ouro. Para ele, que vivia em quente e em gelo nas estreitezas de uma trapeira, aquilo representava um patrimônio mais do que discreto. Ilumina-o um sorriso de alegria, mas só por um instante; depois o rosto torna-se sombrio e triste: coisa achada não se pode reter. E afligia-se mais, ele, de possuir – embora inocentemente – o dinheiro não seu, do que o outro de o haver perdido. E ele não tem paz: aquela bolsa lhe arde nas mãos, sufoca-o no peito, em casa lhe queima. Informa-se, procura, e finalmente acha: soltou um grito de alegria. 'Ah! És tu! Toma, é teu!' E botou-lhe nas mãos a bolsa, e, levantando os olhos ao céu, suspirou como se tivesse tirado uma pedra de cima do peito. Por uma justa recompensa, o outro oferece-lhe vinte daquelas moedas de ouro; mas o pobre esconde as mãos por trás das costas e mostra-se ofendido. O outro insiste: 'Tome, é justo: tocam-lhe'. 'Não quero, não me tocam, leve-as'. O dono do dinheiro, comovido, olhava-o: olhava para aquelas vestes humildes e gastas, para aquelas mãos calejadas no trabalho opressivo, olhava impressos naquele rosto honesto os sinais da miséria. Possuído, então, de um vivo sentimento de admiração pela nobreza daquela alma, abandonou-lhe a bolsa nas mãos, gritando: 'Tudo é seu: não pretendo mais nada!' 'E eu ainda pretendo menos que o senhor; nada é meu', redarguiu o pobre, e, abrindo as mãos, deixou que a bolsa caísse por terra, fazendo tilintar as duzentas moedas de ouro".

– Exemplo memorável, – conclui Santo Agostinho – nobre porfia de duas almas honestas verdadeiramente! – Mas onde estão agora os imitadores dessa lealdade? Onde estão as almas tão delicadas, no tocante ao bem dos outros, a ponto de não poderem reter consigo um objeto achado? Não é mais assim: a muitas consciências não somente já não pesa mais a coisa achada, porém nem mesmo a coisa roubada.

"Mas eu não posso mais restituir!" Eis o gemido de desculpa de muitos que não sabem decidir-se ao cumprimento do dever.

"Não posso restituir, porque arruinaria a família; arruinaria meus filhos, que, inocentes da minha injustiça, não suportariam a pena se eu os privasse de uma herança, que eles já esperam".

A esta desculpa eu respondo com a austera palavra de São João Crisóstomo: "E não é melhor arruinar a família nos bens passageiros deste mundo do que fazê-la arder no inferno por toda a eternidade? Quando teus filhos tiverem essa substância que tu roubaste, acreditas que nas mãos deles ela cessará de ser coisa roubada? E acaso pensas que Deus quererá abençoá-la e fazê-la prosperar? Não! As coisas de má origem têm um péssimo fim".

Há outros que dizem: "Não posso restituir, do contrário teria de perder a minha condição na sociedade, trabalhar também em alguma oficina".

Lembrai-vos de que no Paraíso se pode entrar vivendo em qualquer condição na sociedade, mas não se pode entrar sem restituição do bem alheio.

– Outros, ainda, replicam: "Não posso restituir porque me faltaria o necessário para a vida". A estes pode-se responder que há uma Providência em que eles são obrigados a confiar, a qual certamente não os deixará morrer de fome quando tiverem cumprido todo o seu dever.

– Uma última desculpa, a mais fútil, é a dos que dizem: "Não posso restituir, porque me faria conhecer pelo que sou: por um ladrão". Mas então estes não sabem por quantas vias ocultas se pode fazer a restituição sem perder a própria honra?

E, se aqueles a quem se roubou não mais existissem ou não pudessem mais ser localizados, há sempre os pobres, as igrejas, as obras pias... Mas a coisa roubada é restituída, "porque nenhum ladrão, nenhum avarento, nenhum ganancioso entrará no Paraíso" (1 Cor 4, 10).

Se, ao voltardes de noite para casa, por uma senda expressamente arborizada, uma sombra vos agarrasse pelo peito e sibilasse: "Ou a bolsa ou a vida", e, enquanto isso, sentísseis na garganta a lâmina fria de um punhal, que faríeis? Deixar-vos-íeis matar? Não creio; mas, sim, lhe atiraríeis a carteira e fugiríeis.

Pois bem: não é um assassino, mas é a justiça de Deus que nos clama: "Ou a bolsa roubada ou a vida eterna! Ou restituição ou condenação".

Percamos o dinheiro ou o bem que não é nosso, mas salvemos a alma.

Um alfaiate, trabalhando no seu ofício, pusera de parte alguns retalhos de alguma costura. É muito fácil deixar-se vencer pelas pequenas coisas: o alfaiate começa com os retalhos, o ferreiro com as sobras de ferro e o carpinteiro com as de madeira.

Mas o coitado desse alfaiate achou-se em artigo de morte, e viu chegar ao seu leito o diabo, em atitude de alferes que carrega bandeira: uma estranha bandeira feita de retalhos diversos, costurados juntos. Ele, com olhos arregalados, via-os todos; distinguia-os! Lá estava aquele retalho de veludo subtraído a um vestido de senhora; aquele outro era um pedaço de "orléans" feito sobrar do corte de um "manteau"; lá estava aquele tafetá, aquele crepe, e também o tule, e também a cambraia, até aquela sarja grossa... todos, todos... E o diabo, rindo ao pé do leito, fazia-lhe vento com aquele estandarte, e fazia silvar no ar e ondular sobre o rosto. A cada contato o moribundo estrebuchava como se fosse abrasado por uma chama.

Por essa vez Deus ainda foi bom para com ele, e ele sarou. O alfaiate quis então emendar-se, e ordenou à mulher, aos filhos, aos empregados que, a cada fazenda que o vissem cortar, lhe dissessem: "Lembra-te da bandeira". E eles não sabiam por que, mas bem o sabia ele, o alfaiate.

Desta bandeira recordemos também nós, sempre que algum pouco de coisa alheia nos fizer gula; e temamos que o diabo não no-la traga, rindo-se, ao nosso leito de agonia, para nos atormentar naquele instante supremo.

 

3. A CADA UM O QUE É SEU

 

Sabe-se como nos tempos de Nosso Senhor a Palestina se tornara uma província de Roma, e o próprio Herodes não passava de um vassalo do imperador romano. Daí os partidos políticos: alguns mordiam em segredo o jugo das águias imperiais suspirando pela antiga liberdade da pátria, e eram os fariseus; outros, como sob o novo governo tinham achado com que engordar, eram partidários do poder de Roma: e eram os herodianos.

Ora, um grupo desses politiqueiros apresentou-se a Jesus para enredá-lo. Disseram eles: "Mestre, viemos a ti porque tens coragem de dizer a verdade sem olhar em rosto a ninguém. É lícito, ou não, pagar o tributo ao imperador de Roma? Que pensas a este respeito?"

É fácil compreender toda a maldade oculta nesta pergunta. Se Jesus respondesse afirmativamente, eles O declarariam inimigo do povo, que ansiava por sacudir a tirania do estrangeiro. Se Jesus respondesse negativamente, eles O acusariam como inimigo de Herodes e rebelde a Roma. Mas Jesus não se perturbou, e logo respondeu: "Mostrai-me a moeda do censo". E eles lha mostraram: então, sem tocá-la, Ele perguntou ainda: "De quem é esta efígie impressa?"

De Tibério César.

"E o nome que a circunda, de quem é?"

De Tibério César.

Então o Mestre invencível levantou os olhos divinos contra eles, e lançou em rosto àqueles malignos a palavra que os encheu de admiração e de vergonha:

"Dai a César o que é de César, e dai a Deus o que é de Deus".

O Pe. Francisco Fernández Carvajal escreve: "O Senhor distinguiu os deveres relacionados com a sociedade dos deveres que se referem a Deus, mas não quis, de forma alguma, impor aos seus discípulos como que uma dupla existência... O cristão escolhe as suas opções políticas, sociais, profissionais, de acordo com as suas convicções mais íntimas. E o que oferece à sociedade em que vive é uma visão reta do homem e da sociedade, porque só a doutrina cristã oferece a verdade completa sobre o homem, sobre a sua dignidade e o destino eterno para o qual foi criado. São muitos, no entanto, os que quereriam que os cristãos tivessem uma vida dupla: uma nas suas atuações temporais e públicas, outra na sua vida de fé. Afirmam até, com palavras ou fatos sectários e discriminatórios, a incompatibilidade entre os deveres civis e as obrigações que o seguimento de Cristo traz consigo", e: "Não é verdade que haja oposição entre ser bom católico e servir fielmente a sociedade civil. Assim como não há razão para que a Igreja e o Estado entrem em choque, no exercício legítimo da sua autoridade respectiva, voltados para a missão que Deus lhes confiou. Mentem isso mesmo: mentem! os que afirmam o contrário” (São Josemaría Escrivá, Sulco, n° 301).

"... dai a Deus o que é de Deus".

O Pe. Francisco Fernández Carvajal comenta: "De Deus são toda a nossa vida, os nossos trabalhos, as nossas preocupações, as nossas alegrias... Tudo o que é nosso é d'Ele, particularmente esses momentos que lhe dedicamos exclusivamente, como este tempo de oração ou uns minutos diários de uma leitura espiritual. Se formos bons cristãos, isso representará um acicate para sermos bons cidadãos, pois a nossa fé nos move constantemente a ser bons estudantes, mães de família abnegadas que tiram forças da sua fé para levar avante a sua família, empresários justos, trabalhadores capazes e pontuais, etc.; o exemplo de Cristo leva-nos a todos a ser laboriosos, cordiais, alegres, otimistas, a exceder-nos nas nossas obrigações, a ser leais com a empresa, na vida conjugal, com o partido ou associação a que pertencemos. O amor a Deus, se for verdadeiro, é garantia de amor aos homens, e manifesta-se por meio de atos".

Nesta resposta há todo o código que deve reger as nossas ações. Entre os antigos, violar os direitos do próximo nem sempre era delito; antes, entre alguns povos o roubar, quando a pessoa não se deixava colher em flagrante, não era punido pela lei. Para Jesus Cristo, não: a cada um deve-se dar o que é seu. Lesar os direitos do próximo é um pecado como lesar os direitos de Deus.

Os verdadeiros cristãos sempre ouviram esta palavra de justiça.

No ano 921, quando Roberto, duque de Normandia, com o seu exemplo, induziu seu povo a abraçar a religião de Cristo e a receber o Batismo, não mais se ouviu falar de furto ou de violência no seio daquela gente, que até então vivera de rapina. Antes, era tal o respeito que ali se tinha ao bem alheio, que o duque Roberto, havendo, num dia de caça, esquecido a sua capa numa árvore, três anos depois, tornando a passar por ali achou-a pendurada como a deixara.

Talvez não seja com esta delicadeza de consciência que nós convivemos. E, no entanto, dizemo-nos cristãos. E, no entanto, cada um professa grande horror ao pecado de furto; e, se perguntásseis a um homem qualquer se alguma vez se apoderou de coisa alheia, vê-lo-íeis recuar e exclamar: "Isto nunca! Serei um blasfemador, um bebedor, mas ladrão não!" Porém, se ninguém rouba, como então sucede tão frequentemente ouvirmos gente violada nos seus direitos?

Examinemos a nossa consciência, sobre se acaso não tem remorsos de alguma coisinha, a propósito. De dois modos viola-se a justiça: tomando aquilo que se deveria deixar, e conservando aquilo que se deveria entregar.

 

1. Tomando

 

Se alguém se põe numa estrada e de noite assalta os viandantes e os despoja; se alguém entra às escondidas na casa de outro e procura carregar com haveres ou dinheiro, este é um ladrão. Toda gente se levanta para condená-lo, para lançá-lo em prisão e para o pôr sob guarda! Seria preciso ter a mente estragada ou o coração degenerado para chegar até ao fundo deste abismo de miséria.

Há, porém, outros modos mais educados e galantes de tomar a substância dos outros; contra esta espécie de furto o mundo não clama, porque nela está imerso até o pescoço, e cada um procura enganar a própria consciência, dizendo: "Eu cuido do meu interesse". Mas diante de Deus assim não é: a sua lei fala pouco, mas claro: dai a César o que é de César.

Começarei a me explicar com um exemplo da História Sagrada. O velho Tobias era muito pobre, e, ainda por cima, lhe sucedera a desgraça de perder também a vista. Ana, sua mulher, era forçada a ir todo dia trabalhar no tear, e do trabalho de suas mãos trazia para casa o pouco que era necessário para viverem. Sucedeu que, uma tarde, ela voltou com um cabrito. Tobias ouviu o balido deste, e uma suspeita angustiou-o. Ele bem sabia que sua mulher num dia não podia tê-lo ganho, e receou que a necessidade em que eles viviam a houvesse induzido a roubá-lo. "Olha bem, disse o santo velho que este cabrito não tenha vindo por maus meios; e, se assim fosse, restitui-o aos seus donos, porque a nós não é lícito nem comer nem tocar coisa alheia".

Na realidade, aquele cabrito fora dado a Ana; porém ela, indignada, respondeu a seu marido: "Sim! Faze escrúpulo destas tolices; entretanto, olha a que miséria estás reduzido. Os outros, que são mais sabidos do que tu, sabem viver bem" (Tb 2, 19-23).

Como é cheio de verdade e de ensinamento este episódio! Parece tirado da vida dos nossos dias. Mas nem todos têm a delicadeza de Tobias, e muitos raciocinam com a consciência de Ana.

a) Muitos pais vêem que os filhos, voltando do trabalho, trazem para casa algum objeto, mesmo de pouco valor, mas sem direito: contudo, calam-se, se não é que aprovam. Se fazem alguma censura, exprimem-se assim: "Olha que o patrão pode pegar-te e te despedir com grande vergonha para ti". E não dizem que Deus, o verdadeiro patrão, já os pegou desde a primeira vez.

b) Além da rapina e do furto, há outros modos e mais honrados ainda de violar a justiça. Acaso não mancha a própria consciência aquele que aconselha o furto ou ajuda a esconder e a vender o bem mal adquirido? E não digais que isto é saber fazer bons negócios: isto é roubar.

c) Depois há a fraude: olhai as transações comerciais dos homens e as achareis cheias dela. Um vende uma mercadoria por outra, outro falsifica pesos, outro engana nas medidas, outro não cumpre os pactos estabelecidos. E todos estes estão convencidos de que não roubam. Serei um blasfemador, serei o que quiserdes, porém ladrão nunca!

d) Há a usura: gente que se aproveita da necessidade alheia para emprestar dinheiro a juros superiores aos que se costumam cobrar, e depois se gaba de ajudar o próximo.

e) Há também os processos injustos. – Sucede, e não raro, especialmente nas questões de herança, recorrer-se aos tribunais para defender dinheiro que em consciência se conhece não se poder haver. E, depois, se a sentença resulta favorável, acredita-se estar em paz mesmo perante Deus.

Mas assim não é. Diante de Deus nunca se poderá estar em paz se antes não se restitui ao seu dono a coisa roubada. E, se não se possui mais a coisa, está obrigado a restituir um equivalente em dinheiro. E, se o dono é morto, deve-se restituir aos seus herdeiros; e, se ele não tem herdeiros, deve-se dá-la de esmola aos pobres.

Só depois disto a consciência pode ficar em paz e dizer: "Dei a César o que era de César e a Deus o que era de Deus".

 

2. Conservando

 

São Francisco de Paulo, antes de empreender uma longa viagem pela França, foi visitar o rei de Nápoles. Este apresentou-se com uma bacia cheia de moedas de ouro para que tirasse delas para a construção de novos conventos.

O santo olhou-as um momento, e, depois, com a mão fez sinal de recusá-las. "Tire quantas quiser! Tire!", insistia o rei de Nápoles. Então o santo disse: "Não desejo o suor e o sangue dos súditos". E, assim dizendo, pegou uma moeda, quebrou-a, e eis que ela destilava sangue vivo. O rei de Nápoles viu, e não sem terror.

Dizei, católicos: se um santo ou um anjo, passando por nossa casa, quebrasse o dinheiro que nós possuímos, nenhuma moeda pingaria suor ou sangue? Suor de operários que labutaram na oficina por semanas inteiras; suor de viúvas que costuram o dia todo para ganharem a vida; suor de honestos pais de família que têm numerosos filhos a quem preparar o futuro; suor de órfãos a quem foi disputada uma justa herança.

Enquanto se retiver dinheiro ou haveres tirados injustamente ao próximo, pinga suor e sangue.

Também pinga suor e sangue a coisa achada cujo dono se conhece, mas que não se quer restituir. Quando se acha um objeto de valor, tem-se obrigação grave de fazer anunciar isso para que o proprietário venha apanhá-lo. E, se, não obstante a boa diligência empregada, o proprietário não aparece, embora não se tenha mais nenhuma obrigação é bom empregá-lo em caridade em boas obras.

Contra a justiça vão também aqueles que, podendo-o, não pagam as dívidas em tempo oportuno. O credor tem direito de ser satisfeito, pois ele também tem compromissos a cumprir. É verdade que às vezes se está na impossibilidade de pagar, mas então se tem a obrigação de fazer economias mais rigorosas, de cercear tudo o que é supérfluo, para se ficar, o mais depressa possível, em condições de cumprir o próprio dever. Em vez disso, há dos que têm dívidas e, sem se preocuparem com elas, não as pagam nunca, e vivem sem se impor restrições, agravando dia a dia a sua situação financeira. Isto não é segundo a nossa religião.

Ouvi como é significativa a lenda de São Medardo.

Nos pastos da Picardia, o rapazinho guardava as manadas de seu pai. Uma tarde, enquanto ele dormia, por ali passou um ladrão e levou um tourinho que tinha no pescoço uma sineta que servia de chamada a toda a manada.

Com a sua presa, o ladrão fugiu para bem longe, e, confundido entre os seus animais no seu estábulo, amarrou o tourinho roubado. Porém, mesmo quando o animal ruminava sonolento, mesmo de noite em repouso, a sineta soava, soava.

Assustado com o prodígio, o ladrão tirou-lhe a sineta do pescoço e escondeu-a debaixo de muitas coisas, numa caixa: porém, como antes, a sineta tocava, tocava. Então ele cavou um buraco profundo no solo e ali sepultou-a com pedras e com terra, e depois ficou à escuta: a sineta soava ainda.

Tremendo e chorando, aquele homem pegou o tourinho e restituiu-o a São Medardo que nos pastos da Picardia guardava as manadas paternas.

E a sineta parou de tocar.

Detende-vos um momento, ó católicos, e prestai ouvido no silêncio da vossa consciência. Não ouvis uma sineta simbólica tocar? Aquele que tomou ou retém bem ou dinheiro do próximo tem no seu coração um repique contínuo que diz:

"Se não restituíres, estás condenado".

Aceitai um conselho salutar: se as reflexões que tiramos do Santo Evangelho vos despertaram algum remorso, exponde-o sem receio a um bom confessor, e ele vos ensinará a maneira fácil de readquirirdes a paz com Deus, com o próximo e com o vosso coração.

E também para vós a sineta deixará de tocar.

Pe. J. Bujanda escreve: "Ninguém, senão o dono, tem direito a desfrutar do que a ele pertence, e ninguém pode sem razão privá-lo dos seus bens; logo, é evidente que se lhe deve restituir o roubado", e: "Restituir é reparar a injustiça causada, e pode compreender tanto a devolução do objeto roubado como a reparação ou compensação do prejuízo injustamente causado... todo aquele que tem algo que lhe não pertence, ou que causou dano injusto, deve restituir. A obrigação de o fazer, em caso de matéria grave, é absolutamente necessária para obter o perdão dos pecados" (Ricardo Sada e Alfonso Monroy), e também: "Se o ímpio fizer penitência e restituir o roubado, terá a vida verdadeira" (Ez 33, 14-15).

 

O Pe. Juan Leal comenta Mt 22, 16-21.

 

Mt 22, 16-17. Alguns de seus discípulos: provavelmente, alguns daqueles jovens que vinham a Jerusalém para instruir-se aos pés dos grandes rabinos e iniciar-se no ofício de escribas e mestres do povo. Uniram-se a eles alguns herodianos, membros de um partido favorável à política da dinastia de Herodes e a suas tendências helenistas. Eram também, por conseguinte, partidários do poder romano. Em matéria religiosa aceitavam de bom grado as idéias materialistas dos saduceus. Por conseguinte, tanto política como religiosamente, eram de todo opostos aos fariseus. A razão de unir-se nesta ocasião com eles parece insinuá-la São Lucas 20, 20, quando disse que o que pretendiam era pegá-lo em suas palavras, para poder desta maneira, entregar-lhe ao poder e jurisdição do governador, o qual poderia executar com maior probabilidade de êxito por meio dos herodianos, seus partidários (Citando H. Liese, Numisma census: VD 12 (1932) 289-294).

A questão que o propõe era comprometedora. Recordemos que então toda Palestina era tributária de Roma. O César equivale aqui ao imperador romano, que naquela ocasião era Tibério. Se trata neste caso da contribuição pessoal que depois da deposição de Arquelau se havia imposto a todos os judeus, excetuando unicamente os meninos antes de cumprir os quatorze anos e aos anciãos depois dos setenta e cinco (Citando U. Holzmeister, Hist. aet. N. T. n. 102s. 113s.). Isto parece indicar a palavra latina usada por São Mateus e São Marcos. São Lucas, todavia, emprega a фópos, que mais bem se refere aos tributos impostos sobre as mercadorias e os campos, ainda que pode também interpretar-se dos tributos pessoais. Nas escolas rabínicas se discutia se era lícito aos judeus pagar os impostos a um usurpador pagão. Fazê-lo, parecia ser uma aprovação tácita do domínio estrangeiro sobre o povo de Deus, e, consequentemente, renunciar às esperanças messiânicas. Eram, pois, muitos os judeus que pelo menos levavam a mal pagar estes impostos ao fisco romano. Por outra parte, a autoridade romana era nesta parte, intransigente e zelosa de seus direitos.

Mt 22, 18-21. Jesus começa por descobrir o ânimo hipócrita e malicioso com que lhe faziam esta pergunta. Podia descartar, por esta razão, a resposta, mas quis aproveitar a ocasião para dar-lhes, e a todos, uma lição importante sobre a obediência e submissão devidas às autoridades civis constituídas. Pede que lhe apresentem um dinheiro que era a moeda romana com que se devia pagar o tributo. Em uma de suas caras levava a efígie do imperador, e em torno dela a inscrição "Augustus Tib. Caesar", se é que se tratava de um dinheiro cunhado já em tempo de Tibério, ainda que é provável que na Palestina corressem, todavia, os dinheiros do tempo de Augusto. Os judeus, incluso os mesmos fariseus, não tinham escrúpulo algum em servir-se do dinheiro romano, que era o que se usava no mercado comum. Os inimigos de Cristo, seguramente, que nem suspeitaram que a resposta ia servir para dar-lhes uma solução à consulta que lhes havia de deixar maravilhados. O direito de cunhar moeda pertence a quem tem o poder supremo sobre o povo. Por conseguinte, os judeus, que admitiam as moedas romanas e as usavam, reconheciam de fato que o imperador romano era o soberano de sua nação. Devem, pois, como os demais súditos, contribuir com seus tributos para levantar os impostos do governo.

Acrescenta Jesus que a obediência e sujeição ao imperador não é nem deve ser obstáculo para submeter-se a tudo quanto Deus manda. Semelhante atitude é perfeitamente compatível com os direitos de Deus. Existem dois poderes: um imediato e diretamente divino que está sobre todas as contingências humanas, se estende a todos os países e tempos, e tem por objetivo direto o culto e obediência a Deus e os interesses eternos do homem; o outro vem também de Deus, porém seu exercício imediato está nas mãos das autoridades civis e tem por fim os interesses temporais da vida presente. Os deveres que o homem tem para com Deus e para com as autoridades civis não são incompatíveis se cada um se mantém na esfera que lhe corresponde. Mais tarde, os dois príncipes dos apóstolos, São Pedro em sua primeira carta (2, 13ss) e São Paulo na carta aos Romanos (13, 1ss), recomendaram esta mesma doutrina às primeiras comunidades cristãs. E os sumos pontífices Pio IX em sua encíclica Qui pluribus (9 noviembre 1846) e na Nostis et Nobiscum (8 diciembre 1849) e León XIII na encíclica Immortale Dei (1 noviembre 1885) insistiram nestes princípios ante as aberrações de alguns autores daquela época.

 

O Pe. Manuel de Tuya comenta Mt 22, 15-22.

 

As maquinações para perder a Cristo continuavam. Os fariseus decidiram como pegá-lo em alguma palavra e entregá-lo ao poder e jurisdição do governador (Lc) romano que era Pilatos.

Porém, a traição está mais preparada do que parece. Não são os mesmos fariseus que vão fazer-lhe a proposta, mas enviam "a seus discípulos" (Mt), os estudantes já estudiosos da Lei, a Thorah, mas ainda não haviam recebido o título oficial de rabi. Chamava-lhes talmidé hakhamín. Assim, estes jovens, que podiam aparentar mais candidez, eram "os espiões" que enviaram.

Com eles enviaram também uma representação de herodianos. Estes eram os partidários da dinastia de Herodes, por oposição aos partidários de Antígono (Citando Josefo, De bello iud. I 16, 6), o mesmo que gentes palacianas desta dinastia (Citando Holzmeister, Hist. Aetatis N. T. (1938) p. 264-265), e que estavam em boas relações com a autoridade romana.

Sua união com os fariseus para perder a Jesus se explica pelo ambiente popular messiânico que Cristo tinha em relação com o Batista, a quem Antipas decapitou, e seu possível desejo de pôr nas mãos da autoridade romana alguma resposta de Cristo que pudesse comprometê-Lo.

Herodianos e discípulos dos fariseus se aproximam de Cristo, e, em uma fingida atitude de reconhecimento da sua retidão e de um bom desejo de saber a quem aderir-se, vão lhe propor uma questão comprometida. Recorrem a Ele "fingindo-se justos" (Lc). E assim, fingindo um grande zelo pela Lei judaica, lhe perguntam se é lícito pagar o censo a César ou não.

A pergunta podia encerrar um problema moral para algum judeu de consciência reta. O Senhor de Israel era Deus. Pagar um tributo a outro que não fora o representante de Deus não era renunciar à teocracia sobre Israel? Até houve um levantamento por este motivo.

A pergunta está bem ambientada naquela época de "zelotes". Se entendia pelo imposto do "censo" todos os impostos que haviam de pagar-se, em contraposição aos impostos de alfândega. Poderia referir-se à "capitação", que era o tributo pessoal que deviam pagar a César todas as pessoas, incluídos os servos; os homens desde os catorze anos e as mulheres desde os doze, até a idade de sessenta e cinco anos para todos (Citando Schurer, Geschichte des judischen Volkes in Zeilater J. - Ch. (1901) I p. 513). Porém, seria muito provável que pela palavra "imposto" se referisse aqui a todos os impostos que os judeus tinham que pagar, direta ou indiretamente, a Roma.

A pergunta que se fazia a Cristo era de gravidade extrema. Pois se tratava de um dilema do qual acreditavam que não podia sair, ficando assim comprometido.

Se dissesse que não havia de pagar o imposto a César, o acusaria como revolta contra o poder de Roma.

Se dissesse que devia pagar, autorizava aos publicanos, as pessoas mais odiadas e arrecadadoras destas contribuições; ia contra o sentido teocrático e nacional, pois submetia a teocracia ao César e a Roma; e ia contra si mesmo, pois o proclamar-se Messias e aprovar a hierarquia estrangeira em seu reino era destruir sua mesma obra. Era uma contradição.

Porém, a resposta de Cristo foi inesperada e os deixou desconcertados, e foi ao mesmo tempo uma lição sobre moral aos poderes constituídos.

O que primeiro faz é acusá-los de sua contrária intenção: "Por que me tentais, hipócritas?" (Mc). E logo lhes disse: "Mostrai-me a moeda do censo" (Mt). Mt, provavelmente, reflete melhor as palavras de Cristo. Mc e Lc parecem supor uma interpretação posterior: "Trazei-me um dinheiro para vê-lo". Lagrange qualificou bem toda esta estratégia pedagógica como uma "parábola em ação".

Trazem-lhe uma moeda; era "um denário". E, antes Ele lhes pergunta de quem é a imagem e a inscrição. Respondem-lhe que é de César.

O denário apresentado podia ter a imagem de Augusto ou de Tibério, já que as moedas do antecessor podiam misturar-se em curso legal com as do César reinante. Se era a de Tibério a inscrição, era a seguinte: TI [berius] CAESAR DIVI AUG [usti] F [ilius] AUG [ustus] PONT [ifex] MAX [imus].

Com a imagem de Augusto ou de Tibério, o que interessava era que pertencia a César e em sua inscrição levava ofensivamente o título de "divus". A resposta de Cristo foi de uma sinceridade e doutrina notáveis: "Pois dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus".

Os judeus usavam as moedas romanas em sua nação, pelo que reconheciam de fato o domínio de César sobre eles. A moeda estrangeira tinha-se por sinal de sujeição a um poder estrangeiro. Precisamente, para indicar sua independência, os Macabeus criaram um tipo próprio de moeda, e logo, no levantamento final, fez o mesmo ao falso messias Bar Khokhebas. Por isso, se eles reconheciam este domínio de fato, por ser súditos de um poder e governo, estavam obrigados às relações que este governo lhes impunha. Não seria isso para a nação teocrática o ideal, porém, se era uma situação de fato, e de fato havia que cumprir com ele as obrigações exigidas pelo bem comum (Citando Kennard, Render to God! A study of the Tribute Passage (1950). A Igreja primitiva insistirá sobre estas obrigações (Rm 13, 7; 1 Pe 2, 13-14) ao poder constituído.

E não só de fato. Os dirigentes da nação preferiam esta situação e viam nela um bem defensivo contra a tirania dos Herodes (Citando Lagrange, Le Messianisme... (1900) p. 17ss.). Eles mesmos repeliram a realeza messiânica de Cristo, dizendo a Pilatos: "Não temos outro rei a não ser César" (Jo 19, 15). Era o claro reconhecimento da soberania que César tinha neles, e de que eles se consideravam de fato seus súditos.

Porém, se, portanto, havia que dar "a César o que é de César", havia outra obrigação também nos súditos. Há também que "dar a Deus o que é de Deus". Na realidade, este preceito abrange o outro, de submissão ao poder constituído, e neste cobra sua força aquele. Que dêem, pois, a Deus o que é de Deus, não só na ordem moral pessoal, mas no coletivo da nação, enquanto as exigências teocráticas sejam compatíveis, em aspectos não essenciais, com as determinações do poder que os tem submetidos. As obrigações para com César são temporais; as obrigações para com Deus são transcendentais.

A pergunta capciosa apresentada a propósito da incompatibilidade de pagar o tributo a César e reconhecer o supremo domínio de Deus sobre Israel caiu desvanecida.

"Se maravilharam". Ficaram "calados" (Lc), "e não puderam lhe acusar por suas palavras ante o povo" (Lc) nem, como antes disse o mesmo evangelista, tão pouco ante "o governador" Pôncio Pilatos.

 

Pe. Divino Antônio Lopes FP.

Anápolis, 02 de julho de 2008

 

Bibliografia

 

Bíblia Sagrada

Catena Aurea

Pe. J. Bujanda, Teologia Moral para os fiéis

Pe. João Colombo, Pensamentos sobre os Evangelhos e sobre as Festas do Senhor e dos Santos

Ricardo Sada e Alfonso Monroy, Curso de Teologia Moral

São Josemaría Escrivá, Sulco

Pe. Francisco Fernández Carvajal, Falar com Deus

 

 

 

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Pe. Divino Antônio Lopes FP. "César e Deus"

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