O POVO DE DEUS DEVE FUGIR (Ap 18, 4-8)
“Ouvi então uma outra voz do céu que dizia: ‘Saí dela, ó meu povo, para que não sejais cúmplices dos seus pecados e atingidos pelas suas pragas; porque seus pecados se amontoaram até ao céu, e Deus se lembrou das suas iniquidades. Devolvei-lhe o mesmo que ela pagou, pagai-lhe o dobro, conforme suas obras; no cálice em que ela misturou misturai para ela o dobro. O tanto que ela se concedia em glória e luxo devolvei-lhe em tormento e luto, porque, em seu coração, ela dizia: Estou sentada como rainha, não sou viúva e nunca experimentarei luto... Por isso as suas pragas virão num só dia: morte, luto e fome, e pelo fogo será devorada, porque o Senhor Deus que a julgou é forte”.
Segue-se uma voz que exorta o povo de Deus a sair da cidade, com uma expressão que faz lembrar o aviso de Jesus Cristo (Lc 21, 21), mas que aqui é melhor que seja entendida, com Santo Agostinho, como um aviso em sentido figurado: sair do contato com pessoas e com um ambiente que corrompa (2 Cor 6, 14-16). Não se trata propriamente de sair do mundo, mas de evitar participar do seu estilo de vida mundano e pecaminoso (1 Cor 5, 9-11). Pagai-lhe como ela paga (v. 6), com o dobro das suas obras, não é um apelo à vingança com a lei do talião agravada, mas revela um desejo de que se faça justiça numa devida proporção, adotando-se os modos de falar dos profetas contra Babilônia (Jr 50, 29; Sl 137, 8). A linguagem aqui empregada deve ser entendida, pois não é a ruína da Cidade de Roma que se procura, mas o restabelecimento da justiça divina. Contempla-se a queda e ruína de Roma, segundo o uso profético de vaticinar um acontecimento futuro como se tivesse acontecido. Em primeiro lugar anuncia-se a sua queda (VV. 1-3). Depois exorta o povo de Deus para que saia da cidade e assim se livre dos terríveis castigos que se avizinham (VV. 4-8). Seguem-se as lamentações dos reis que se aliaram com Roma (VV. 9-10), o pranto dos comerciantes que se enriqueceram à sua custa (VV. 11-17a) e o assombro dos marinheiros (17b-19). Por último, manifesta-se o gozo de quantos sofreram sob o jugo e agora contemplam a justiça de Deus. Com palavras que recordam as profecias do Antigo Testamento quando vaticinavam o fim das cidades inimigas (Is 13, 21-22; 21, 9; Jr 50, 30), São João descreve a situação final de Roma como um lugar inabitável. Entre os pecados, causa da sua ruína, que se atribuem à grande cidade, figura o luxo desenfreado. Uma situação assim conduz à degradação e autodestruição de uma sociedade, como pode observar-se na história das civilizações e em nossos dias. O desejo de consumismo e de possuir é, sem dúvida, uma das marcas da nossa época. Já o denunciava Pio XI ao dizer que “a grande enfermidade da Idade Moderna, fonte principal dos males que todos deploramos, é a falta de reflexão, aquela efusão contínua e verdadeiramente febril pelas coisas externas, essa imoderada ânsia de riquezas e prazeres, que pouco a pouco debilita nos ânimos os mais nobres ideais e os submerge nas coisas terrenas e transitórias e não lhes permite levantar-se para as considerações das coisas eternas”. Do versículo 4 ao 8, São João translada a cena em que Jeremias profetiza o castigo de Babilônia, e o cuidado de Deus pelo seu povo, ao ordenar-lhe que abandone a cidade que vai ser destruída (Jr 51, 6. 45).O tema recorda também a fuga de Ló de Sodoma (Gn 19, 12ss.), e a recomendação de Jesus cristo aos seus diante da futura queda de Jerusalém (Mt 24, 16ss.). A imagem do amontoamento dos pecados até ao Céu recorda a Torre de Babel (Gn 11, 1ss.). É um modo de assinalar a gravidade do pecado, que é, sobretudo, uma ofensa à divindade, e por isso “está unido ao sentido de Deus, já que deriva da relação consciente que o homem tem com Deus como seu criador, Senhor e Pai” (Bem-aventurado João Paulo II). Em consequência, ao obscurecer-se a percepção da grandeza de Deus, perde-se o sentido do pecado: como acrescenta João Paulo II, “o meu Predecessor Pio XII, com uma frase que chegou a ser quase proverbial, pode declarar numa ocasião que ‘o pecado do século é a perda do sentido do pecado’”. O castigo ordenado por Deus e executado por mediadores, é proporcionado à gravidade do pecado cometido: a expressão “o dobro” não indica uma quantidade determinada, mas a dureza do castigo, como em Is 40, 2; Jr 16, 18, etc. São João de Ávila, apoiando-se neste passo, ensina que para vencer uma tentação forte é muito proveitoso pensar no amor que temos de ter a Deus, mas “se com isto não se tira, baixai ao inferno com o pensamento, e contemplai aquele fogo vivo que terrivelmente queima”. Outra explicação mais profunda: São João ouve outra voz distinta da voz do Anjo que acabava de falar. Vem do céu e é dirigida aos cristãos que vivem dentro de Roma, no momento imediato que precede à destruição. Provavelmente é a voz de Jesus Cristo que avisa aos seus, porque lhes chama “povo meu” (v. 4). Diz aos cristãos que saiam, para que não sejam cúmplices com o mau exemplo dos pecados do mundo pagão, ou simplesmente para que não fiquem materialmente envoltos nas más obras do paganismo e recebam com os infiéis pecadores os duríssimos castigos. Esta mentalidade da co-participação dos bons no castigo dos maus e, sobretudo, o aviso precedente divino para que os seus fujam antes do perigo é bíblico e se deu repetidas vezes na história da salvação. Ló é avisado por Deus para que saia de Sodoma e Gomorra antes do castigo (Gn 19, 12ss.). Jeremias avisa aos judeus que saiam de Babilônia se não querem sofrer com o seu castigo (Jr 50, 8; 51, 6. 9. 45). Os pecados da Roma pagã tem sido tantos e tão grandes, que, colocando os pecados um sobre o outro, alcançaram a altura do céu. Com uma metáfora de gosto oriental mostra-se a gravidade das culpas. Fala a voz do céu e dá ordem aos ministros de destruição, possivelmente aos Anjos ou aos reis contrários, não aos cristãos. Suas palavras não estão movidas de espírito de vingança, mas pela justiça e retidão, para exaltação da obra divina e dos atributos de Deus. Primeiramente manda que se cumpra em Babilônia a lei do talião (Jr 50, 29; Sl 137, 8). Logo, continuando progressivamente, diz que se lhe dê o dobro. Com isso segue-se uma norma justa em uso naquele tempo. O ladrão que havia roubado tinha que restituir o dobro (Ex 22, 4.6.9; Jr 16, 18; Is 40, 2); em caso de excepcional gravidade, o quádruplo é exigido segundo a justiça (2 Sm 12, 6). Aqui se trata de um castigo justo julgado segundo o direito judeu. Com essa fraseologia significa que o castigo deve ser duríssimo, conforme a gravidade. O símbolo do cálice ou copo de bebida dado a um como prêmio e honra ou como castigo é frequente na Bíblia. Indica o que corresponde a um merecidamente. Como Roma embriagou de idolatria e imoralidade aos povos, agora será embriagada do justo castigo de Deus. Dá-se uma grande lista dos pecados que cometeu Roma pelos quais cai a justiça sobre ela: 1.º Glorificou a si mesma com todas suas forças e meio ilícitos, quando teria que glorificar a Deus. 2.º Viveu continuamente em prazeres e luxos, e para manter esse luxo teve que cometer as mais desumanas iniquidades. 3.º Seu grande orgulho se refletia nas três afirmações que pronuncia dentro de si mesma, no seu pensamento, passando-se por Deus. A) A primeira é ter conseguido para si um estado de imperatriz sobre todos os povos, o qual lhe dá perfeita segurança. B) A segunda é não ser viúva, isto é, ter exércitos, povos e nações aliadas, que como filhos a ajudaram no momento de perigo, quando alguma força inimiga queria atacá-la e destruí-la. C) Tudo isso lhe dá uma perfeita segurança, confiando em si mesma, contra Deus, de que nunca verá o pranto da destruição ou da derrota. Deus, que dá a sua graça aos humildes e resiste aos orgulhosos, castigará o orgulho antidivino da Roma pagã. O castigo será terrível. Descreve-se com a fraseologia convencional nos casos de cidades rebeldes a Deus, porém aqui com um tom especial. Já que ela se julgava eterna, desprezando a Deus, todos os seus açoites virão num só dia, isto é, em tempo brevíssimo. Essa marca da rapidez e prontidão do castigo será o mais doloroso lamento final, como auge da desgraça social e internacional. Os castigos serão: mortandade, isto é, peste; pranto e fome atroz; e como “assinatura” final, a destruição total pelo fogo (Jr 50, 34; Is 47, 8-9). Toda essa classe de castigos supõe uma guerra civil ou internacional, virulenta e aniquiladora.
Pe. Divino Antônio Lopes FP. Anápolis, 17 de setembro de 2013
Bibliografia
Sagrada Escritura Pe. Geraldo Morujão, Apocalipse Pio XI, Mens nostra, n.º 6 Bem-aventurado João Paulo II, Reconciliatio et Paenitentia, n.º 18 Edições Theologica São João de Ávila, Audi, filia, cap. 10 Pe. José Salguero, Biblia comentada Pe. Miguel Nicolau, La Sagrada Escritura (Texto y comentario)
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