ME ESCONDI (Gn 3, 7-10)
“Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas de figueira e se cingiram. Eles ouviram o passo de Deus que passeava no jardim à brisa do dia e o homem e sua mulher se esconderam da presença de Deus, entre as árvores do jardim. Deus chamou o homem: ‘Onde estás?’, disse ele. ‘Ouvi teu passo no jardim’, respondeu o homem; ‘tive medo porque estou nu, e me escondi’”.
Em Gn 3, 7 diz: “Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas de figueira e se cingiram”.
Começa aqui a descrição dos efeitos do pecado de origem. “... perceberam que estavam nus”. O despertar da concupiscência, primeira manifestação da desordem que o pecado introduz na harmonia da criação... rompe-se a amizade com Deus e foge da sua presença, como se o Criador não o conhecesse. Perceberam que nos seus membros dominavam movimentos e apetites contrários à razão; e procuraram escondê-los. “... abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus”. Para que, senão para se desejarem mutuamente como pena do castigo concebida pela morte da carne, de modo que seu corpo já não era apenas animal, o qual podia ser mudado para um estado melhor e espiritual sem morte, se continuassem obedientes, mas já corpo de morte, no qual a lei nos membros seria contrária à lei do espírito? Não foram criados com os olhos fechados e não vagueavam cegos e às apalpadelas no paraíso de delícias de modo a tocarem a árvore proibida mesmo sem quererem, e, apalpando, apanhassem os frutos proibidos sem o saberem. Como os animais e as árvores foram levadas a Adão para ver como as chamaria, se não enxergava? E como a mulher foi apresentada ao homem, depois que foi criada, de modo a falar a respeito dela a quem não enxergava, e dizer: Esta, sim, é osso de meus ossos, carne de minha carne? Finalmente, como a mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista e desejável para adquirir discernimento, se seus olhos estavam fechados? Não se há de entender tudo em sentido figurado por causa de uma palavra. Haja vista em que sentido a serpente disse: Vossos olhos se abrirão. Com efeito, o escritor do livro narrou que disse assim, mas deixou para o leitor examinar com que significado pronunciou a frase. Mas o que está escrito: Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus, está escrito conforme se costuma narrar o que aconteceu. Por isso não devemos considerar uma narrativa alegórica. Nem o evangelista, nas suas narrativas, inseria palavras de alguém em sentido alegórico, e narrava o que acontecera não como sendo ele o protagonista, quando falava a respeito daqueles dois, dos quais um era Cléofas, o qual, após o Senhor lhe ter partido o pão: Então seus olhos se abriram e o reconheceram, ou seja, aquele que não reconheceram no caminho, não porque caminhavam com os olhos fechados, mas porque não foram capazes de reconhecê-lo. Tanto na outra passagem como nesta, a narrativa não está em sentido alegórico, embora a Escritura tenha empregado uma figura para dizer que se abriram os olhos de quem antes já estavam abertos. Abertos, certamente, para compreender e entender o que antes não percebiam de forma alguma. Com efeito, quando a curiosidade atrevida os impele a transgredir o preceito, curiosidade ávida de experimentar o que estava oculto, o que aconteceria tocando o proibido e gozando em romper as cadeias da proibição, inspirada pelo desejo de uma liberdade nociva, julgando que não se seguiria a morte que temeram, é de crer que aquele fruto daquela árvore era da mesma espécie que os frutos não nocivos das outras árvores que já tinham experimentado. Por esta razão, acreditaram mais que Deus os perdoaria facilmente ao pecarem do que suportaram com paciência não saber o que seria aquele fruto, ou por que os tinha proibido de apanhá-lo daquela árvore. Logo que transgrediram o preceito, desnudados no interior após se apartarem da graça que tinham ofendido pelo orgulho e amor soberbo de seu próprio poder, dirigiram seus olhos para seus membros e os desejaram com um movimento que lhes era desconhecido. Portanto, para isso se abriram seus olhos: para o que antes não estavam abertos, embora os tivessem abertos para outros fins. Sabemos que Adão e Eva pecaram. Eles falharam na prova... não fugiram da ocasião de pecar... cometeram o primeiro pecado, quer dizer, o PECADO ORIGINAL. E este pecado não foi simplesmente uma desobediência. Foi um pecado de orgulho, como o dos anjos caídos. Adão e Eva manifestam o arrependimento cobrindo-se com um CINTO de FOLHAS de FIGUEIRA que fere e arranha o corpo (primeiras pessoas a usarem cilício). E, sem dúvida, teriam trazido para sempre aquela roupa para se humilharem, se o Senhor, que é misericordioso, não os tivesse revestidos com túnicas de PELE em lugar das FOLHAS de FIGUEIRA: “Deus fez para o homem e sua mulher TÚNICAS de PELE, e os vestiu” (Gn 3, 21).
Em Gn 3, 8 diz: “Eles ouviram o passo de Deus que passeava no jardim à brisa do dia e o homem e sua mulher se esconderam da presença de Deus, entre as árvores do jardim”.
O casal, Adão e Eva, se escondeu de Deus não para fugir d’Ele, mas porque foi tomado pelo temor... cheio de confusão por ter transgredido o seu mandamento e por se julgar indigno de estar na sua presença e de conversar com Ele. “Deus que passeava no jardim à brisa do dia”. Naquela hora era conveniente visitar os que se afastaram da luz da verdade. Talvez Deus falasse com eles antes, no interior, mediante outros meios, ou com palavras inefáveis, tal como fala aos anjos iluminando suas mentes com a incomutável verdade. Aí se entende conhecer ao mesmo tempo as coisas que no decurso dos tempos não acontecem ao mesmo tempo. Talvez, falasse com eles desse modo, embora não com tanta participação na sabedoria divina quanta podem receber os anjos, mas, de acordo com a medida humana, em proporção menor, mas com a mesma maneira de visitar e falar. Talvez, também, com aquele modo que acontece na criatura nos êxtases do espírito com imagens corporais, ou com os próprios sentidos do corpo mediante alguma figura apresentada para ver ou para ouvir, tal como Deus costuma ser visto em seus anjos ou falar por meio de nuvens. O fato de terem ouvido a voz de Deus que passeava no paraíso à tarde somente se pode considerar como feito de modo visível por meio de uma criatura e, assim, evita-se crer que a substância invisível e onipresente, que é própria do Pai e do Filho e do Espírito Santo, tenha aparecido aos sentidos corporais deles com movimento local e temporal. “... se esconderam da presença de Deus, entre as árvores do jardim”. Quando Deus afasta inteiramente sua face e o homem se perturba, não nos admiremos de que aconteçam estes gestos que são semelhantes aos da loucura, em razão do excessivo pudor e temor. Levados por aquele instinto oculto, fizeram sem o saberem, aquelas coisas que significariam algo que um dia seriam conhecidos dos pósteros (futuros), por cuja causa elas foram escritas.
Em Gn 3, 9 diz: “Deus chamou o homem: ‘Onde estás?’, disse ele”.
Deus não DESPREZOU nem ABANDONOU Adão, mas o procurou... o chamou: “Onde estás?” Adão é santo... Santo Adão! Eva também é santa... Santa Eva! Deus odiou aquele que seduziu o homem, enquanto lentamente e aos poucos, teve compaixão do homem que fora seduzido. Mentem, portanto, todos os que negam a salvação de Adão, excluem-se a si mesmos e para sempre da vida, pois não crêem que a ovelha perdida foi reencontrada. Os que negam a salvação de Adão não têm nada a ganhar, tornam-se a si mesmos HEREGES e APÓSTATAS da verdade, e se revelam advogados da serpente e da morte. “Onde estás?” É a voz de quem recrimina, não de quem ignora. E isso, certamente, diz respeito a algum significado, porque, assim como o preceito foi dado ao homem, por cujo meio chegasse à mulher, assim o homem é o primeiro a ser interrogado. Com efeito, o preceito veio do Senhor por meio do homem até a mulher, mas o pecado procedeu do diabo por meio da mulher para chegar ao homem. Estes pormenores estão repletos de significados místicos, não se cumprindo naqueles que os realizaram, mas procederam da poderosíssima sabedoria de Deus que os realizou neles. Jamais podemos desprezar um pecador: “Nunca devemos considerar os homens como perdidos e sem esperança de salvação, nem deixar de ajudar com todo empenho os que se encontram em perigo nem demorar em prestar-lhes auxílio. Pelo contrário, reconduzamos ao bom caminho os que se afastaram da verdadeira vida e alegremo-nos com a sua volta à comunhão daqueles que vivem reta e piedosamente” (Santo Astério de Amaséia).
Em Gn 3, 10 diz: “Ouvi teu passo no jardim’, respondeu o homem; ‘tive medo porque estou nu, e me escondi”.
Deus, por meio de algum sinal sensível, como o de uma brisa perpassando pela ramagem das árvores, revelou a sua presença aos primeiros progenitores, - esconderam-se: outro efeito do pecado cometido, procurar subtrai-se aos olhos de Deus. É muito provável que Deus costumava aparecer aos primeiros homens na forma humana por meio de uma criatura apropriada a tal ação. Entretanto, nunca lhes permitiu prestar atenção à sua nudez, elevando sua atenção para as coisas do alto, a não ser quando, depois do pecado, sentiram o movimento vergonhoso nos membros pela lei penal dos membros. Portanto, de tal modo ficaram chocados como os homens costumam ficar chocados diante dos olhares dos homens; e este choque era castigo do pecado no sentido de querer Adão esconder àquele a quem nada se pode esconder. Por que admirar-se, se querendo ser como deuses em sua soberba, dissiparam-se em seus pensamentos e seu coração insensato obscureceu-se? Consideraram-se sábios na prosperidade e, tendo Deus afastado sua face, tornaram-se tolos. Pelo fato de se envergonharem um do outro, razão pela qual teceram para si túnicas, passaram a ter medo muito maior de serem vistos por aquele que, com um modo de ser familiar, achegava-se a eles para vê-los por meio de uma criatura visível, como que por meio de olhos humanos. Com efeito, se lhes aparecia como os homens falam entre si, e como apareceu a Abraão junto ao carvalho de Mambré, aquela quase amizade, que infundia confiança antes do pecado, pesava por causa do pudor depois do pecado, e não mais se atreviam a mostrar a tais olhos a nudez que também não agradava aos seus. Não é correto pecar mortalmente e fugir de Deus. Aquele que está sem a graça santificante (nu, despido) precisa do perdão de Deus. Quem, por desgraça, cair no pecado mortal, deve fazer um ato de arrependimento perfeito, acompanhado de um firme propósito e aproximar da confissão o mais rápido possível.
Pe. Divino Antônio Lopes FP (C) Anápolis, 05 de abril de 2014
Bibliografia
Sagrada Escritura Bíblia Sagrada, Pontifício Instituto de Roma EUNSA Pe. Alberto Colunga, Bíblia comentada Pe. Leo J. Trese, A fé explicada Santo Irineu, Adversus haereses Santo Afonso Maria de Ligório, Preparação para a morte Santo Astério de Amaséia, Homilia Santo Agostinho, Comentário ao Gênesis
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