HOMEM E MULHER ELE OS CRIOU (Gn 1, 27)
“Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou”.
Deus criou um só casal de seres humanos, e quis que dele dependesse, por via de reprodução natural, todo o gênero humano (At 17, 26). É a afirmação mais clara da unidade da espécie humana e da fraternidade universal de todos os homens; todos têm o mesmo Criador e o mesmo progenitor na terra. O projeto de Deus se faz realidade ao criar o homem sobre a terra, culminando assim a obra da criação. Ao apresentar esta última ação criadora de Deus, o autor sagrado nos oferece, em síntese, os traços constitutivos do ser humano. Além de voltar a sublinhar que Deus criou o homem à sua imagem, segundo sua semelhança, nos ensina que Deus os criou homem e mulher, isto é, seres corporais, dotados de sexualidade, e para viver em sociedade: “Por ser à imagem de Deus, o indivíduo humano tem a dignidade de pessoa: ele não é apenas alguma coisa, mas alguém. É capaz de conhecer-se, de possuir-se e de doar-se livremente e entrar em comunhão com outras pessoas, e é chamado, por graça, a uma aliança com seu Criador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor que ninguém mais pode dar em seu lugar” (Catecismo da Igreja Católica, 357). O Bem-aventurado João Paulo II escreve: “Penetrando com o pensamento no conjunto da descrição de Gênesis 2, 18-25 e interpretando-a à luz da verdade sobre a imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26-27), podemos compreender ainda mais plenamente em que consiste o caráter pessoal do ser humano, graças ao qual ambos — o homem e a mulher — são semelhantes a Deus. Cada homem, com efeito, é à imagem de Deus enquanto criatura racional e livre, capaz de conhecê-lo e de amá-lo. Lemos também que o homem não pode existir ‘só ‘ (cf. Gn 2, 18); pode existir somente como ‘unidade dos dois’, e portanto em relação a uma outra pessoa humana. Trata-se de uma relação recíproca: do homem para com a mulher e da mulher para com o homem. Ser pessoa à imagem e semelhança de Deus comporta, pois, também um existir em relação, em referência ao outro ‘eu’. Isto preludia a definitiva auto revelação de Deus uno e trino: unidade viva na comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. No início da Bíblia, não se ouve ainda dizer isto diretamente. Todo o Antigo Testamento é sobretudo a revelação da verdade sobre a unicidade e unidade de Deus. Nesta verdade fundamental sobre Deus o Novo Testamento introduzirá a revelação do mistério imperscrutável da vida íntima de Deus. Deus, que se dá a conhecer aos homens por meio de Cristo, é unidade na Trindade: é unidade na comunhão. Desse modo lança-se uma nova luz também sobre a semelhança e imagem de Deus no homem, de que fala o Livro do Gênesis. O fato do homem, criado como homem e mulher, ser imagem de Deus não significa apenas que cada um deles, individualmente, é semelhante a Deus, enquanto ser racional e livre; significa também que o homem e a mulher, criados como ‘unidade dos dois’ na comum humanidade, são chamados a viver uma comunhão de amor e, desse modo, a refletir no mundo a comunhão de amor que é própria de Deus, pela qual as três Pessoas se amam no íntimo mistério da única vida divina. O Pai, o Filho e o Espírito Santo, um só Deus pela unidade da divindade, existem como pessoas pelas imperscrutáveis relações divinas. Somente assim se torna compreensível a verdade que Deus em si mesmo é amor (cf. 1 Jo 4, 16). A imagem e semelhança de Deus no homem, criado como homem e mulher (pela analogia que se pode presumir entre o Criador e a criatura), exprime, portanto, também a ‘unidade dos dois’ na comum humanidade. Esta ‘unidade dos dois’, que é sinal da comunhão interpessoal, indica que na criação do homem foi inscrita também uma certa semelhança com a comunhão divina (‘communio’). Esta semelhança foi inscrita como qualidade do ser pessoal dos dois, do homem e da mulher, e, conjuntamente, como uma chamada e um empenho. Na imagem e semelhança de Deus que o gênero humano traz consigo desde o ‘princípio’, radica-se o fundamento de todo o ‘ethos’ humano: o Antigo e o Novo Testamento irão desenvolver esse ‘ethos’, cujo vértice é o mandamento do amor. Na ‘unidade dos dois’, o homem e a mulher são chamados, desde o início, não só a existir ‘um ao lado do outro’ ou ‘juntos’, mas também a existir reciprocamente ‘um para outro’. Assim se explica também o significado daquele ‘auxiliar’ de que se fala em Gênesis 2, 18-25: ‘Dar-lhe-ei um auxiliar que lhe seja semelhante’. O contexto bíblico permite entendê-lo também no sentido de que a mulher deve ‘auxiliar’ o homem — e que este, por sua vez, deve ajudar a ela — em primeiro lugar por causa do seu idêntico ‘ser pessoa humana’: isto, em certo sentido, permite a ambos descobrirem sempre de novo e confirmarem o sentido integral da própria humanidade. É fácil compreender que — neste plano fundamental — se trata de um ‘auxiliar’ de ambas as partes e de um ‘auxiliar’ recíproco. Humanidade significa chamada à comunhão interpessoal. O texto de Gênesis 2, 18-25 indica que o matrimônio é a primeira e, num certo sentido, a fundamental dimensão desta chamada. Não é, porém, a única. Toda a história do homem sobre a terra realiza-se no âmbito desta chamada. Na base do princípio do recíproco ser ‘para’ o outro, na ‘comunhão’ interpessoal, desenvolve-se nesta história a integração na própria humanidade, querida por Deus, daquilo que é ‘masculino’ e daquilo que é ‘feminino’. Os textos bíblicos, começando pelo Gênesis, permitem-nos reencontrar constantemente o terreno no qual se enraíza a verdade sobre o homem, um terreno sólido e inviolável em meio a tantas transformações da existência humana. Esta verdade refere-se também à história da salvação. A este respeito, um enunciado do Concílio Vaticano II é particularmente significativo. No capítulo sobre a ‘comunidade dos homens’ da Constituição pastoral Gaudium et Spes lemos: ‘Quando o Senhor Jesus reza ao Pai que ‘todos sejam um... como nós somos um’ (Jo 17, 21-22), abre perspectivas inacessíveis à razão humana e sugere alguma semelhança entre a união das Pessoas divinas e a união dos filhos de Deus na verdade e na caridade. Esta semelhança manifesta que o homem, única criatura na terra que Deus quis por si mesma, não pode se encontrar plenamente senão por um dom sincero de si mesmo’. Com estas palavras o texto conciliar apresenta sinteticamente o conjunto da verdade sobre o homem e sobre a mulher — verdade que se delineia já nos primeiros capítulos do Livro do Gênesis — como a própria estrutura que sustenta a antropologia bíblica e cristã. O homem — tanto homem como mulher — é o único ser entre as criaturas do mundo visível que Deus Criador ‘quis por si mesmo’: é, portanto, uma pessoa. O ser pessoa significa tender à própria realização (o texto conciliar diz ‘se encontrar’), que não se pode alcançar ‘senão por um dom sincero de si mesmo’. Modelo de tal interpretação da pessoa é Deus mesmo como Trindade, como comunhão de Pessoas. Dizer que o homem é criado à imagem e semelhança deste Deus quer dizer também que o homem é chamado a existir ‘para’ os outros, a tornar-se um dom. Isso diz respeito a todo ser humano, seja homem, seja mulher; estes o atuam na peculiaridade própria a cada um”. O Gênesis ensina sem especificações que o gênero humano descende de um casal original, e que as almas de Adão e Eva (como cada uma das nossas) foram direta e imediatamente criadas por Deus. A alma é espírito; não pode “evoluir” da matéria, e também não pode ser herdada de nossos pais. Marido e mulher cooperam com Deus na formação do corpo humano. Mas a alma espiritual que faz desse corpo um ser humano tem de ser criada diretamente por Deus e infundida no corpo embrionário. Seja qual for a forma que Deus escolheu para fazer nosso corpo, o que mais importa é a alma. É a alma que levanta do chão os olhos do animal. É a alma que levanta os nossos olhos até as estrelas, para que vejamos a beleza, conheçamos a verdade e amemos o bem. O Papa Pio XII escreve: “O Magistério da Igreja não proíbe que, nas investigações e disputas entre os homens mais competentes de ambos os campos, seja objeto de estudo a doutrina do evolucionismo, na medida em que busca a origem do corpo humano numa matéria viva preexistente, mas a fé católica manda defender que as almas são criadas imediatamente por Deus. Porém, tudo isso se deve fazer de maneira que as razões de uma e outra opinião – quer dizer, a que defende e a que é contrária ao evolucionismo – sejam examinadas e julgadas séria, moderada e temperadamente; e de tal modo que todos se mostrem dispostos a submeter-se ao juízo da Igreja, a quem Cristo conferiu a missão de interpretar autenticamente as Sagradas Escrituras e defender os dogmas da Fé”. Ao saírem das mãos de Deus, Adão e Eva, eram pessoas esplêndidas. Deus não os fez humanos comuns, submetidos às leis ordinárias da natureza, como as da inevitável decadência e da morte final, uma morte a que se seguiria uma simples felicidade natural, sem visão beatífica. Também não os fez sujeitos às normais limitações da natureza humana, como são a necessidade de adquirir conhecimentos por meio do estudo e investigação, e a de manter o controle do espírito sobre a carne por uma esforçada vigilância. Com os dons que Deus conferiu a Adão e Eva no primeiro instante de sua existência, nossos primeiros pais eram imensamente ricos. Primeiro, contavam com os dons que denominamos “preternaturais” para distingui-los dos “sobrenaturais”. Os dons preternaturais são aqueles que não pertencem por direito à natureza humana, e, no entanto, não está inteiramente fora da capacidade da natureza humana recebê-los e possuí-los. Adão e Eva: Primeiro, tinham os dons preternaturais, entre os quais se incluíam uma sabedoria de ordem imensamente superior, um conhecimento natural de Deus e do mundo, claro e sem obstáculos, que de outro modo só poderiam adquirir com uma investigação e estudo penosos. Depois, contavam com uma elevada força de vontade e o perfeito controle das paixões e dos sentidos, que lhes proporcionavam perfeita tranquilidade interior e ausência de conflitos pessoais. No plano espiritual, estes dois dons preternaturais eram os mais importantes de que estavam dotados a sua mente e a sua vontade. No plano físico, suas grandes dádivas foram a ausência de dor e de morte. Tal como Deus os havia criado. Adão e Eva teriam vivido na terra, o tempo previsto, livres da dor e do sofrimento que, de outro modo, seriam inevitáveis num corpo físico num mundo físico. Quando tivessem acabado seus anos de vida temporal, entrariam na vida eterna em corpo e alma, sem experimentar a terrível separação de alma e corpo a que chamamos morte. Porém, maior que os dons preternaturais era o dom sobrenatural que Deus conferiu a Adão e Eva. Nada menos que a participação na própria natureza divina. De uma maneira maravilhosa, que não poderemos compreender inteiramente até O contemplarmos no céu, Deus permitiu que seu amor (que é o Espírito Santo) fluísse até as almas de Adão e Eva e as inundasse. A nova espécie de vida que Adão e Eva possuíam como resultado da sua união com Deus é a vida sobrenatural a que chamamos “graça santificante”. Já nos é fácil deduzir que, se Deus se dignou fazer a nossa alma participar da sua própria vida nesta terra temporal, é porque quer também que ela participe eternamente da sua vida no céu. Como consequência do dom da graça santificante, Adão e Eva já não estavam destinados a uma felicidade meramente natural, ou seja, a uma felicidade baseada no simples conhecimentos natural de Deus, a quem continuariam sem ver. Com a graça santificante, Adão e Eva poderiam conhecer Deus tal como é, face a face, uma vez concluída a sua vida na terra. E, ao vê-lo face a face, amá-lo-iam com um êxtase de amor de tal intensidade que nunca o homem teria podido aspirar a ele por sua própria natureza.
Pe. Divino Antônio Lopes FP (C) Anápolis, 10 de abril de 2014
Bibliografia
Sagrada Escritura EUNSA Bíblia Sagrada, Pontifício Instituto Bíblico de Roma Catecismo da Igreja Católica, 357 Bem-aventurado João Paulo II, Mulieris dignitatem, 7 Pio XII, Encíclica Humani Generis Pe. Leo J. Trese, A fé explicada
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