NÃO ACORDEIS O AMOR

(Ct 2, 1-17)

 

1— Sou um narciso de Saron, uma açucena dos vales. 2 — Como açucena entre espinhos é minha amada entre as donzelas. 3 — Macieira entre as árvores do bosque, é meu amado entre os jovens; à sua sombra eu quis assentar-me, com seu doce fruto na boca. 4 Levou-me ele à adega e contra mim desfralda sua bandeira de amor. 5 Sustentai-me com bolos de passas, dai-me forças com maçãs, oh! que estou doente de amor... 6 Sua mão esquerda está sob minha cabeça, e com a direita me abraça. 7 — Filhas de Jerusalém, pelas cervas e gazelas do campo, eu vos conjuro: não desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira! 8 A voz do meu amado! Vejam: vem correndo pelos montes, saltitando nas colinas! 9 Como um gamo é meu amado... um filhote de gazela. Ei-lo postando-se atrás da nossa parede, espiando pelas grades, espreitando da janela. 10 Fala o meu amado, e me diz: ‘Levanta-te, minha amada, formosa minha, vem a mim! 11 Vê o inverno: já passou! Olha a chuva: já se foi! 12 As flores florescem na terra, o tempo da poda vem vindo, e o canto da rola está-se ouvindo em nosso campo. 13 Despontam figos na figueira e a vinha florida exala perfume. Levanta, minha amada, formosa minha, vem a mim! 14 Pomba minha, que se aninha nos vãos do rochedo, pela fenda dos barrancos... Deixa-me ver tua face, deixa-me ouvir tua voz, pois tua face é tão formosa e tão doce a tua voz!’ 15 Agarrai-nos as raposas, as raposas pequeninas que devastam nossas vinhas, nossas vinhas já floridas!... 16 Meu amado é meu e eu sou dele, do pastor das açucenas! 17 Antes que a brisa sopre e as sombras se debandem, volta! Sê como um gamo, amado meu, um filhote de gazela pelas montanhas de Beter”.

 

Em Ct 2, 1-3 diz: “— Sou um narciso de Saron, uma açucena dos vales.  — Como açucena entre espinhos é minha amada entre as donzelas.  — Macieira entre as árvores do bosque, é meu amado entre os jovens; à sua sombra eu quis assentar-me, com seu doce fruto na boca”.

 

Sucedem outra vez os requebros amorosos com metáforas campestres. A ESPOSA apresenta-se modestamente como um narciso da planície de Saron, na costa Palestina ao norte de Jafa, e como um simples lírio (açucena) dos vales. Porém, o ESPOSO, recolhendo esta modesta metáfora, faz ressaltar que o lírio (açucena) é algo grande no meio dos cardos (espinhos). É o caso de sua amada em comparação com as donzelas que formam seu cortejo de honra.

A delicada insinuação do ESPOSO encontra resposta imediata nos lábios da ESPOSA: Macieira entre as árvores do bosque, é meu amado entre os jovens (Ct 1, 3). A menção da macieira é para entender simplesmente como símbolo das árvores frutíferas, de um valor incomparavelmente superior ao dos arbustos silvestres que brotam espontaneamente por toda a parte. Diante da esterilidade destes arbustos está a utilidade da macieira, cujo valor supera o daqueles. O ESPOSO sobressai em valor entre os jovens que o rodeiam como macieira entre os arbustos silvestres. A árvore oferece rico fruto e generosa sombra ao viajante. A ESPOSA, jugando com o mesmo semelhante, declara sua felicidade em poder descansar à sombra de seu amado e saborear o seu delicioso fruto (Os alegóricos veem nestas expressões uma alusão ao tabernáculo do deserto onde residia Deus (Yahvé) no meio do seu povo).

Santo Afonso Maria de Ligório comenta Ct 2, 1: “Sou um narciso de Saron, uma açucena dos vales”. Jesus Cristo nasceu, e nasceu para todos: Eu, assim manda-nos avisar Jesus, eu sou a flor do campo e a açucena dos vales. Jesus se chama açucena dos vales para nos dar a entender que, assim como ele nasceu tão humilde, assim somente os humildes O acharão. Por isso o anjo não foi anunciar o nascimento de Jesus Cristo a César nem a Herodes; mas sim a pobres e humildes pastores.

São João da Cruz explica Ct 2, 1: “Uma açucena dos vales”. Estas flores são o próprio Esposo, pois, segundo nos diz, é ele a flor dos campos e o lírio dos vales (Ct 2, 1). E o que prende e une à alma esta flor das flores é o cabelo do seu amor; porque, como afirma o Apóstolo, o amor é o vínculo da perfeição (Cl 3, 14), a qual consiste na união com Deus. A alma é como a almofada onde se pregam estas grinaldas; de fato, ela é o receptáculo desta glória, e não parece mais a que era antes; transforma-se agora na própria flor perfeita, encerrando o acabamento e formosura de todas as flores. Na verdade, este fio de amor une os dois, isto é, a alma e Deus, com tanta força, e tão intimamente os juntam, que os transformam, faz um só pelo amor, pois, embora sejam diferentes quanto à substância, tornam-se iguais na glória e semelhança, de modo que a alma parece Deus, e Deus, a alma... Depois desta saborosa entrega da Esposa e do Amado, vem em seguida, imediatamente, o leito de ambos, no qual com muito maior estabilidade goza a alma dos deleites do Esposo. Assim, nesta canção de agora, é discreto esse leito dos dois, - leito divino, puro e casto, em que a alma está divina, pura e casta. O leito, na verdade, não é para ela outra coisa senão o seu próprio Esposo, o Verbo, Filho de Deus; nele é que a Esposa se recosta, mediante a união de amor. Aqui o chama leito florido, porque seu Esposo não somente é florido, mas é a mesma flor dos campos e lírio dos vales, segundo diz ele de si mesmo no Cântico dos Cânticos 2, 1. A alma, portanto, recosta-se, não apenas no leito florido, e sim na mesma flor que é o Filho de Deus; esta flor contém em si perfume divino, exalando fragrância, graça e formosura, conforme declara também o Esposo por Davi, dizendo: A formosura do campo comigo está (Sl 49, 11).

Santa Teresa de Jesus comenta sobre Ct 2, 3: “Macieira entre as árvores do bosque, é meu amado entre os jovens; à sua sombra eu quis assentar-me, com seu doce fruto na boca”. Como está metida a alma e abrasada pelo mesmo sol! Diz que se sentou à sombra d’Aquele a quem havia desejado. Aqui a Esposa não O compara ao Sol, senão à macieira, e diz: o seu fruto é doce à minha garganta... que sombra esta tão celestial, e quem soubesse dizer o que sobre isto dá a entender o Senhor! Recordo-me de quando o Anjo disse à Virgem Sacratíssima, senhora nossa: A virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra (Lc 1, 35). Que amparada se vê uma alma quando o Senhor a põe nesta grandeza! Com razão se pode assentar e sentir segura. Já cansadas de longos anos de meditação e de buscarem este Esposo, e cansadíssimas das coisas do mundo, assentam-se na verdade e não buscam em outra parte seu consolo, nem sossego, nem descanso, a não ser onde entendem que, de verdade, o podem ter; põem-se debaixo do amparo do Senhor, não querem outro. E quão venturosa é a alma que merece estar debaixo desta sombra... porque parece que estando a alma no deleite que fica dito, sente que está toda engolfada e amparada por uma sombra e espécie de nuvem da Divindade,  de onde lhe vêm influências à alma e prazer tão deleitoso que lhe tiram, com boa razão, o cansaço que lhe têm dado as coisas do mundo. A alma sente ali um modo de descanso que até a cansa ter de respirar, e tem as potências tão sossegadas e quietas, que até um pensamento – ainda que seja bom – não quereria então admitir a vontade, nem o admite de modo a inquiri-lo ou procurá-lo. Não há necessidade de menear a mão nem de levantar-se – falo da consideração – para nada; porque cortada e guisada e até comida, lhe dá o Senhor a fruta da macieira a que a Esposa compara o seu Amado, e assim diz: que seu fruto é doce à sua garganta (Ct 2, 3).

O Pontifício Instituto Bíblico de Roma explica Ct 2, 3: “Macieira entre as árvores do bosque”. A macieira, tipo da árvore frutífera, não só tem sobre as plantas agrestes a vantagem de oferecer sombra, tão apreciada no clima quente da Palestina, mas proporciona também frutos saborosos. Tudo isso obumbra (oculta) o que de felicidade a donzela recebe de apoio do seu amado.

 

Em Ct 2, 4-7 diz: “Levou-me ele à adega e contra mim desfralda sua bandeira de amor. Sustentai-me com bolos de passas, dai-me forças com maçãs, oh! que estou doente de amor... Sua mão esquerda está sob minha cabeça, e com a direita me abraça. — Filhas de Jerusalém, pelas cervas e gazelas do campo, eu vos conjuro: não desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira!”

 

De novo o poeta muda de marco (estrutura): antes se apresentava à ESPOSA na sombra da macieira no campo; agora, julgando com a sua qualidade de rainha, leva-a ao palácio real, onde é introduzida na sala de festim, onde deverá realizar uma batalha de amor entre os ESPOSOS. Ambos se enfrentam como dois exércitos em ordem de combate, e a bandeira ou lábaro que preside a luta é o amor. Nestas lutas amorosas, a ESPOSA é a primeira a ser vencida, como era de esperar. Ao encontrar-se sozinha frente ao seu amado, se sente desfalecer e pede auxílio às suas companheiras para não morrer de amor: Sustentai-me... (Ct 2, 5). Os bolos de passas e a marmelada de maças eram considerados como reconfortante na medicina caseira da antiguidade. Por isso, a ESPOSA as reclama com urgência.

Diante da chamada angustiosa da ESPOSA que se diz desfalecida, acode o ESPOSO que a abraça amorosamente. A ESPOSA agradece ao gesto: Sua mão esquerda está sob minha cabeça, e com a direita me abraça (Ct 2, 6). A ESPOSA cai num êxtase de amor. Adormecida nos braços de seu amado, encontrou a felicidade: as inquietações, os anseios angustiosos... encontraram seu resultado na plena posse amorosa. O ESPOSO não quer interromper esta felicidade de sua amada, e assim pede aos circunstantes que não atrapalhem o doce sono de sua ESPOSA. Seus pedidos estão cheios de fresco lirismo primitivista.

As gazelas e as cervas são os adornos da estepe, e serviram, por sua graça e esbelteza, de símbolo da beleza e da graça feminina na poesia de todos os povos da antiguidade. O hagiógrafo os utiliza, pois, neste sentido insinuante no momento mais solene do primeiro poema, quando se consumou em um abraço o amor dos dois ESPOSOS.

Santo Afonso Maria de Ligório comenta Ct 2, 7: “... não desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira!” Roguemos agora a Jesus Cristo que, pelos merecimentos de seu santo sono, nos livre do sono mortal dos pecadores, que dormem miseravelmente na morte do pecado, esquecidos de Deus e do seu amor. Peçamos-lhe que nos dê, ao contrário, o sono feliz da sagrada Esposa, da qual dizia: não desperteis, não acordeis o amor, até que ele o queira! É este sono que Deus dá às almas suas diletas, e que, no dizer de São Basílio Magno, não é senão o supremo olvido (esquecimento) de todas as coisas. Então a alma olvida (esquece) de todas as coisas terrestres para só pensar em Deus e nos interesses da glória divina.

O mesmo Santo explica Ct 2, 4: “Levou-me ele à adega”. A oração mental é a feliz fornalha na qual as almas se abrasam no amor divino; é qual laço de ouro que prende a alma a Deus. Dizia a sagrada Esposa: Levou-me ele à adega. Esta adega (cômodo subterrâneo frio) é a oração, na qual a alma se embriaga de tal modo pelo amor divino, que perde quase inteiramente o gosto das coisas da terra. Não vê mais senão o que agrada a seu amado, não fala senão no amado, nem quer ouvir falar senão nele, e toda outra conversação a aborrece e aflige.

São Gregório de Nissa comenta Ct 2, 4: “Levou-me ele à adega”. A comunhão é exatamente essa adega de vinho em que a pessoa fica inebriada do amor de Deus, de tal modo que esquece e perde de vista todas as coisas criadas. É aquele morrer de amor mencionado no Cântico dos Cânticos: Estou enferma de amor.

Santa Teresa de Jesus comenta Ct 2, 4: “Levou-me ele à adega”. Esta adega de vinho é a amizade de Deus que, tomando conta de um coração, o faz ficar fora de si, esquecido de todas as criaturas.

São João da Cruz comenta sobre Ct 2, 5: “Sustentai-me com bolos de passas, dai-me forças com maçãs, oh! que estou doente de amor...” Quando a Esposa estava fraca e enferma de amor, por não haver conseguido unir e entrelaçar estas flores e esmeraldas com esse cabelo de seu amor, desejava fortalecer-se com essa união e conjunto delas, e por isto suplicava ao Esposo com estas palavras que lemos no livro Cântico dos Cânticos: confortai-me com flores, fortalecei-me com frutos, porque desfaleço de amor. Pelas flores, simbolizam as virtudes, e pelos frutos, os demais dons divinos.

O mesmo Santo comenta Ct 2, 4: “Levou-me ele à adega e contra mim desfralda sua bandeira de amor”. É o mesmo que dizer: deu-me a beber amor, mergulhada no seu próprio amor. Ou mais claramente, falando com maior exatidão: ordenou em mim sua caridade, conformando-me e assimilando-me à sua mesma caridade, o que significa beber a alma no Amado, seu mesmo amor, infundido nela pelo próprio Amado. Muitas vezes sentir-se-á a vontade inflamada, ou enternecida, e enamorada, sem saber nem entender coisa mais distinta do que anteriormente, ordenando Deus nela o amor, como diz a Esposa no Cântico dos Cânticos: Levou-me ele à adega e contra mim desfralda sua bandeira de amor (Ct 2, 4). Logo, não há razão para temer a ociosidade da vontade neste caso; se deixa de fazer atos de amor sobre conhecimentos particulares, é porque agora é Deus quem nela os faz,  embriagando-a secretamente em amor infuso, seja por meio do conhecimento de contemplação ou sem isto, conforme dissemos. E tais atos são tanto mais saborosos e meritórios do que se a própria alma os fizera, quanto mais perfeito é aquele que causa e infunde este amor, a saber, o próprio Deus.

São João da Cruz comenta também Ct 2, 6: “Sua mão esquerda está sob minha cabeça”. Com toda a verdade poder-se-á afirmar que esta alma está agora revestida de Deus, e banhada na divindade; não só exteriormente e na superfície, mas no íntimo do seu espírito, onde tudo se transforma em deleites divinos, inundada em abundância de águas espirituais de vida, experimenta o que diz Davi dos que estão desta maneira unidos a Deus: Embriagar-se-ão da abundância de tua casa, e tu os farás beber na torrente de tuas delícias. Porque em ti está a fonte da vida (Sl 35, 9-10).

 

Em Ct 2, 8-14 diz: “A voz do meu amado! Vejam: vem correndo pelos montes, saltitando nas colinas! Como um gamo é meu amado... um filhote de gazela. Ei-lo postando-se atrás da nossa parede, espiando pelas grades, espreitando da janela. Fala o meu amado, e me diz: ‘Levanta-te, minha amada, formosa minha, vem a mim! Vê o inverno: já passou! Olha a chuva: já se foi! As flores florescem na terra, o tempo da poda vem vindo, e o canto da rola está-se ouvindo em nosso campo. Despontam figos na figueira e a vinha florida exala perfume. Levanta, minha amada, formosa minha, vem a mim! Pomba minha, que se aninha nos vãos do rochedo, pela fenda dos barrancos... Deixa-me ver tua face, deixa-me ouvir tua voz, pois tua face é tão formosa e tão doce a tua voz!”

 

A ESPOSA sente nostálgica, a ausência do amado, e, pensando nele em seu leito, percebe seus passos distantes. Vem pressuroso para ela como um cervo correndo pelos montes, saltitando nas colinas! (Ct 2, 8). De novo a semelhança do cervo serve para descrever a graça e a rapidez do ESPOSO, que desde terras longínquas avança para a casa da que enche seu coração de amor (Os alegoristas veem nestas expressões uma alusão à estância de Israel no deserto, visitada por Deus (Yahvé) desde as colinas da terra prometida). Nos momentos em que chega próximo aos muros da casa de sua prometida, espiona-a pelas grades para surpreendê-la e dar-lhe o seu amor. A viagem foi longa, mas fez tudo pelo coração enamorado.

A ESPOSA, fingindo desinteresse e querendo provar o amor daquele que lhe vem visitar, se faz de despreocupada e não sai à janela para recebê-lo. Então o namorado jovem entoa um belíssimo canto de amor e de boas vindas à primavera que se mostra na floração pujante do campo. A dura estação invernal acabara de passar e as últimas chuvas anunciam a chegada da primavera florida; chegou o tempo da poda das videiras em flor. O canto da rola anuncia a estação do amor. A natureza vegetal desperta e o sangue dos animais se aquece. Os passarinhos preparam seus ninhos e os namorados se preparam para as bodas. É uma insinuação à prometida para finalizar o casamento: Levanta-te, minha amada, formosa minha, vem a mim! (Ct 2, 10). Novamente o ESPOSO compara a ESPOSA a uma pomba; mas agora a ESPOSA se mostra arredia (afastada) vivendo longe das vistas dos homens: Pomba minha, que se aninha nos vãos do rochedo, pela fenda dos barrancos... (Ct 2, 14). Talvez nestas palavras exista uma alusão à honestidade e virgindade da prometida que se reserva cuidadosamente para o seu amado.

Santo Afonso Maria de Ligório comenta Ct 2, 9: “Ei-lo postando-se atrás da nossa parede, espiando pelas grades”. A alma devota aviva a tua fé e a tua confiança. O mesmo Jesus Cristo que, por nosso amor, baixou do céu à terra e quis nascer numa gruta fria, está agora, abrasado no mesmo amor, escondido no Santíssimo Sacramento. Que é o que faz ali? Olha por entre as grades. Qual amante aflito pelo desejo de ver seu amor correspondido, Jesus de dentro da Hóstia consagrada, como que por entre uma grade estreita, olha-te sem ser visto, espreita os teus pensamentos, os teus afetos, os teus desejos, e convida-te suavemente a chegar-te a si. Eia, pois, dá contento ao Amante divino e aproxima-te dele. Deus não só se dá a eles no reino eterno, mas já neste mundo se deixa possuir pelos homens na união mais íntima possível. Dá-se todo sob as aparências de pão no sacramento da Eucaristia. Ali está como atrás de um muro e dali nos olha como através de apertadas grades: Ei-lo atrás de nossas paredes, olhando pelas janelas, espreitando pelas grades (Ct 2, 9). Ainda que nós não o vejamos, ele de lá nos observa e lá está realmente presente. Está presente para deixar-se possuir por nós, mas se esconde para que o desejemos. Enquanto não chegarmos até o paraíso, Jesus Cristo quer dar-se todo a nós e estar intimamente unido conosco.

São Pedro Damião comenta Ct 2, 14: “Pomba minha, que se aninha nos vãos do rochedo, pela fenda dos barrancos...” O Senhor mesmo nos anima dizendo: Pomba minha, que se aninha nos vãos do rochedo, pela fenda dos barrancos... isto é, vem dentro destas minhas chagas onde acharás todo o bem para tua alma.

O Frei Antonino de Castellammare diz sobre Ct 2, 9: “Como um gamo (cervo) é meu amado...” No Cântico dos Cânticos é o próprio Jesus Cristo comparado a um cervo.

Ele ainda diz sobre Ct 2, 9: “Ei-lo postando-se atrás da nossa parede, espiando pelas grades, espreitando da janela”. As almas eucarísticas são ditosas! Elas trabalham sob o olhar e sob o sorriso de Jesus Cristo, cientes de que Jesus, dos seus próprios corações as contempla, assiste e abençoa. Lê-se no Cântico dos Cânticos 2, 9: Ei-lo postando-se atrás da nossa parede, espiando pelas grades, espreitando da janela. É o corpo a parede de carne que impede a presença de Jesus Cristo em nós, e nosso peito é a gelosia (grade que ocupa o espaço da janela); nosso coração é a janela do Amado. E a alma eucarística em todos os seus quefazeres (ocupações), em todas as suas fadigas, em todos os seus passos, leva a Jesus consigo: sente-O... sim, ela sente que Jesus Cristo a contempla da janela do coração, lhe sorri da gelosia de seu próprio peito.

O mesmo Frei comenta Ct 2, 8: “A voz do meu amado! Vejam: vem correndo pelos montes, saltitando nas colinas!” Encontramos nos livros santos que é próprio dos cervos saltar. O próprio Jesus Cristo no Cântico dos Cânticos é chamado: Aquele que salta sobre os montes e atravessa os outeiros (Ct 2, 8). Ora, estas duas palavras retratam precisamente o caráter das almas eucarísticas de que nos ocupamos; o seu amor a Jesus é um amor que avança em arremessos, aos saltos e aos pulos. No coração leva a fonte da Vida; em meio às ocupações a perderá de vista, mas não habitualmente; esquecerá muitas vezes ao Senhor e, muitas vezes, se lembrará d’Ele e irá como que saltitando ao seu redor com impulsos do coração, com suspiros e jaculatórias.

O Frei Antonino também comenta Ct 2, 14: “Deixa-me ver tua face, deixa-me ouvir tua voz, pois tua face é tão formosa e tão doce a tua voz!” É impossível viver da Eucaristia e não viver de nostalgia do Céu. Nos Sacrários de nossas igrejas reside Jesus Sacramentado, Deus escondido e mudo; quanto mais a Ele se ama, tanto mais se arde de desejo de vê-lO finalmente, face a face, de ouvir-Lhe finalmente a voz; tal o anseio de todas as almas enamoradas de Jesus. Suspirar pelo rosto e pela voz de Jesus quer dizer suspirar pelo Céu! E é um suspiro pelo Céu toda a vida das almas santas; e, pois, também pela morte, chave de ouro do Paraíso.

São João da Cruz comenta sobre Ct 2, 9: “Como um gamo (cervo) é meu amado... um filhote de gazela”. Convém notar, a este respeito, como no Cântico dos Cânticos a Esposa compara o Esposo ao gamo (cervo) é à cabra montesa, dizendo: Semelhante é meu Amado à cabra e ao filho dos cervos (Ct 2, 9). Assim o faz, não somente por ser ele estranho e solitário, fugindo às companhias, como o cervo, mas também pela rapidez em esconder-se e manifestar-se. De fato, é deste modo que procede o Amado nas visitas que costuma fazer às almas devotas, regalando-as e animando-as, bem como nas ausências e esquivanças que lhes faz sentir, depois de tais visitas, a fim de que sejam provadas, humilhadas e ensinadas, tornando mais sensível então a dor da ausência.

O mesmo Santo comenta Ct 2, 14: “Tão doce a tua voz!” Por isto, essa voz de júbilo é doce para Deus, e doce também para a alma. Eis a razão de dizer o Esposo: tua voz é doce (Ct 2, 14), e não o é só para ti, mas também para mim, pois estando tu comigo em unidade, emites tua voz para mim em unidade comigo, como doce rouxinol. Tal é o canto que ressoa dentro da alma, na transformação em que se acha nesta vida, e cujo sabor é acima de todo encarecimento. Não chega ainda, porém,  a ser tão perfeito como o cântico novo da vida gloriosa; e, assim, deliciada a alma com o gosto que dele sente nesta terra, e vislumbrando através da sublimidade deste canto do exílio e excelência do que ouvirá na glória, incomparavelmente mais sublime, lembra-o agora dizendo que aquilo que lhe dará o Esposo será o canto do doce rouxinol... Essa voz é infinita, porque é o mesmo Deus que se comunica, fazendo ouvir à alma; adapta-se, todavia, a cada uma, dando sua força conforme a capacidade dela, causando-lhe grande deleite e grandeza. Por isto exclamou a Esposa: Tão doce a tua voz!

São João da Cruz comenta também Ct 2, 10-13: “Fala o meu amado, e me diz: Levanta-te, minha amada, formosa minha, vem a mim! Vê o inverno: já passou! Olha a chuva: já se foi! As flores florescem na terra, o tempo da poda vem vindo, e o canto da rola está-se ouvindo em nosso campo”. Daquela aspiração da brisa ressoa na alma a doce voz de seu Amado que a ela se comunica; e neste suavíssimo canto se une a ele a mesma alma, em deliciosa jubilação. Esta mútua união é aqui denominada canto do rouxinol. A voz do rouxinol se ouve na primavera, quando já passou o inverno, com seus vários rigores, frios e chuvas. Causa, então, deleite ao espírito a melodia que repercute no ouvido. O mesmo se realiza nesta atual comunicação e transformação de amor que a Esposa já possui nesta vida. Amparada e livre agora de todas as perturbações e contingências do tempo, desprendida e purificada de todas as imperfeições, penas e obscuridades, tanto do sentido como do espírito, sente-se numa nova primavera, com liberdade, dilatação e alegria de espírito; aí ouve a doce voz do Esposo, que é o seu doce rouxinol. Esta voz lhe renova e refrigera a substância íntima de si mesma; e o mesmo Esposo achando-a já bem disposta para caminhar à vida eterna, convida-a com doçura e deleite, fazendo ressoar aos ouvidos da alma esta sua deliciosa voz dizendo: Fala o meu amado, e me diz: Levanta-te, minha amada, formosa minha, vem a mim! Vê o inverno: já passou! Olha a chuva: já se foi! As flores florescem na terra, o tempo da poda vem vindo, e o canto da rola está-se ouvindo em nosso campo.

São João da Cruz comenta ainda Ct 2, 13-14: “Levanta, minha amada, formosa minha, vem a mim!  Pomba minha, que se aninha nos vãos do rochedo, pela fenda dos barrancos... Deixa-me ver tua face, deixa-me ouvir tua voz, pois tua face é tão formosa e tão doce a tua voz!” A essa voz do Esposo que lhe fala no íntimo, a Esposa experimenta haver chegado o fim de todos os males, e o princípio de todos os bens; nesse refrigério e amparo, com profundo sentimento de gozo, também ela, como doce rouxinol, eleva sua própria voz num novo canto de júbilo a Deus, cantando juntamente com aquele que a move a isso. É para este fim que o Esposo lhe comunica sua voz: para que a esposa una a própria voz à dele no louvor de Deus. Na verdade, o intento e desejo do Esposo é que a alma entoe a sua voz espiritual num canto de jubilação a Deus, e assim o pede ele próprio a ela no Cântico dos Cânticos dizendo: Levanta, minha amada, formosa minha, vem a mim!  Pomba minha, que se aninha nos vãos do rochedo, pela fenda dos barrancos... Deixa-me ver tua face, deixa-me ouvir tua voz, pois tua face é tão formosa e tão doce a tua voz! (Ct 2, 13-14). Os ouvidos de Deus significam aqui os seus desejos de que a alma lhe faça ouvir esta voz de jubilação perfeita; e para que, de fato, seja perfeito este canto, o Esposo pede que ressoe nas cavernas da pedra, isto é, na transformação dos mistérios de Cristo.

 

Em Ct 2, 15-17 diz: “Agarrai-nos as raposas, as raposas pequeninas que devastam nossas vinhas, nossas vinhas já floridas!... Meu amado é meu e eu sou dele, do pastor das açucenas! Antes que a brisa sopre e as sombras se debandem, volta! Sê como um gamo, amado meu, um filhote de gazela pelas montanhas de Beter”.

 

Versículo 15. O versículo 15 aparece estranho no contexto, e talvez seja uma glosa (nota explicativa) do copista, que entoa uma canção popular alusiva aos estragos que as raposas ou chacais fazem nas videiras em flor. A menção do versículo 13 das vinhas floridas lhe pode sugerir esta copla (pequeno poema lírico) popular, colocando-a na boca de um dos amantes, dando talvez um sentido simbólico. O amor é frágil e pode desaparecer com qualquer desgraçada reação dos amantes, desmoronando-se assim as relações amorosas antigas (Os alegoristas veem nas raposas que destroem as videiras dos povos vizinhos – amonitas, moabitas, árabes e filisteus – que atacaram constantemente o território de Israel, a esposa de Deus Yahvé). Os amores são, pois, delicados como videiras em flor, que facilmente murcham e desfloram sob a mudança do tempo ou pelo ataque das pragas. Neste sentido, a canção pode relacionar-se com a chamada do ESPOSO que convida a sua ESPOSA à união definitiva.

São João da Cruz comenta Ct 2, 15: “Agarrai-nos as raposas, as raposas pequeninas que devastam nossas vinhas, nossas vinhas já floridas!...” Agarrai-nos (caçai-nos) as raposas, diz a alma nesta canção; e a Esposa também emprega as mesmas palavras, ao mesmo propósito, quando pede ao Esposo no Cântico dos Cânticos: Caçai-nos as raposas pequeninas que destroem as vinhas, porque nossa vinha está já em flor (Ct 2, 15). Não diz: Caçai-me, mas sim, caçai-nos, porque fala de si e do Amado que estão unidos, gozando da flor da vinha. O motivo de dizer que a vinha está em flor, e não com fruto, é que nesta vida, embora se gozem as virtudes com tanta perfeição como aqui o faz esta alma de que tratamos, todavia, é sempre como ainda em flor; pois só na eternidade se poderá gozá-las como em fruto.

O Pontifício Instituto Bíblico de Roma explica Ct 2, 15: Ao convite do amante, a esposa canta: Caçai-nos as raposas, as raposinhas, uma espécie de chacais que ainda hoje causam grandes prejuízos nas vinhas da Palestina. O significado, afora a alegoria, é: Fora os tentadores que quereriam separar-me do amor puro do meu amado, e tornar-me infiel a Deus. Por isso segue-se: Todo o meu coração eu o dei ao meu amado.

Versículo 16. O versículo 16 encontra seu lugar mais apropriado em Ct 6, 2, onde os dois amantes estão no jardim entre balsameiras e açucenas. É o momento da mútua posse e da entrega amorosa: Meu amado é meu e eu sou dele, do pastor das açucenas! O contexto atual resulta a frase estranha, já que a futura ESPOSA está em seu leito, e seu amante à porta de sua janela em plena noite.

Santo Afonso Maria de Ligório comenta Ct 2, 16: Chegando, a saber, que a pureza virginal faz as delícias de Jesus Cristo que é amigo das virgens e se apascenta entre as açucenas Ct 2, 16, resolveu (São João Evangelista) guardá-la sempre em sua pessoa.

O mesmo Santo comenta Ct 2, 16: Quem deseja que Deus seja todo seu, deve dar-se totalmente a ele: Meu amado é meu e eu sou dele. O meu Deus deu-se todo a mim e eu doo todo a ele. Jesus Cristo, por causa do amor que nos tem, deseja todo o nosso amor e não estará contente enquanto não o tiver totalmente.

O Santo ainda diz sobre Ct 2, 16: Esta é aquela recíproca comunicação de dons de que fala o Cântico dos Cânticos: Meu amado é meu e eu sou dele. A alma no céu se dá toda a Deus e Deus se dá todo à alma na medida em que ela é capaz e segundo seus merecimentos. Conhecendo seu nada diante da infinita amabilidade de Deus e vendo que Deus merece ser amado infinitamente mais por ela do que ela por Deus, a alma deseja mais o agrado de Deus do que a sua própria satisfação. Por isso, mais se alegra em dar-se a Deus para lhe agradar, do que Deus dar-se todo a ela; e tanto se alegra que Deus se doe a ela, quanto isso a inflama a dar-se toda a Deus com amor mais intenso.

São João Crisóstomo explica Ct 2, 16: Se, pois, Jesus se deu a ti sem reserva, é de justiça que também te dês inteiro a Ele e lhe digas de hoje em diante: Meu amado é meu e eu sou dele.

O Frei Antonino de Castellammare diz sobre Ct 2, 16: “Meu amado é meu e eu sou dele, do pastor das açucenas!” Esta frase encerra tudo; o Dileto sacramentado não se compraz entre espinhos, mas entre flores; e, dentre essas, a preferida é o lírio (açucena), porque puríssimo, candidíssimo e perfumadíssimo. Ele mesmo se apelida de açucena e açucena dos vales: Eu sou a açucena dos vales (Ct 2, 1); e a todas as almas santas, progênie de Deus, convida a produzir flores como o lírio: florescei como o lírio (Eclo 39, 19).

Santa Teresa de Jesus explica Ct 2, 16: “Meu amado é meu e eu sou dele”. Vós para mim, Senhor? Pois se Vós vindes a mim, porque duvido de poder servi-lO muito? Pois de aqui em diante, Senhor, quero me esquecer de mim e olhar só em que Vos possa servir e não ter vontade, mas sim, a Vossa. Mas o meu querer não é poderoso; Vós sois o Poderoso, Deus meu; naquilo que eu posso que é determinar-me, desde este momento o faço para o pôr por obra.

Versículo 17. O versículo 17 também resulta suspeitoso desde o ponto de vista de sua autenticidade. A primeira parte Antes que a brisa sopre e as sombras se debandem, volta!volta a aparecer em Ct 4, 6. A segunda parte Sê como um gamo (cervo), amado meu, um filhote de gazela parece uma repetição de Ct 2, 9. Os montes de Beter nos resultam desconhecidos desde o ponto de vista geográfico, e podem ser uma criação imaginária do poeta em razão do vocábulo.

Montes de Beter: Todas as explicações desta palavra tomada como um substantivo comum são forçadas. Deve ser um nome geográfico, ou real: Beter a oeste de Jerusalém (Js 15, 59), ou semi-legendário: os paralelos de Ct 4, 6 e de Ct 8, 14 falam das montanhas da mirra ou do bálsamo. Beter seria talvez o equivalente palestino do Ponto, o país dos aromas para os egípcios. Um cântico de amor diz: Quando seus braços me enlaçam é como se estivéssemos no país do Ponto (BJ).

O Frei Antonino de Castellammare diz sobre Ct 2, 16-17:  “Meu amado é meu e eu sou dele, do pastor das açucenas! Antes que a brisa sopre e as sombras se debandem, volta! Sê como um gamo, amado meu, um filhote de gazela pelas montanhas de Beter”. Todas as almas enamoradas de Deus jamais deixarão de repetir aquele Salmo tão suave que inicia com um profundo suspiro de amor: Assim como o cervo suspira pelas fontes das águas, assim a minha alma suspira por ti, ó Deus (Sl 41, 2). Ponde nos lábios de uma alma eucarística as expressões de Davi, de Habacuc e Salomão; vede nelas, então, a manifestação sincera dos sentimentos de um coração e tereis assim, encontrado a segunda categoria de almas eucarísticas. As primeiras encaminham-se para o Sacrifício com os seus próprios pés; as segundas, ao invés, com pés de cervo. As primeiras dirigem-se a Jesus devagarinho; as segundas, de corrida; não se afastam as primeiras da planície e do vale, a saber, de uma perfeição ordinária; atingem, as segundas, até mesmo as dos montes. As primeiras são apenas desejosas da divina Eucaristia; padecem estas verdadeira sede da mesma. Àquelas diz Jesus apenas: Vinde a mim... e eu vos aliviarei (Mt 11, 28). A estas acrescenta: Se alguém tem sede, venha a mim e beba (Jo 7, 37). À Comunhão cotidiana, acrescentam estas a impetuosidade própria dos cervos.

O Pontifício Instituto Bíblico de Roma explica Ct 2, 17: Os dois amantes passam o dia no campo até ao entardecer, quando a esposa saúda o esposo que está para ir-se. – bálsamo, em hebraico “beter”, parece ser uma planta olorosa.

 

Pe. Divino Antônio Lopes FP (C)

Anápolis, 11 de julho de 2015

 

 

Bibliografia

 

Sagrada Escritura

Pe. Maximiliano Garcia Cordero, Bíblia Comentada

Frei Antonino de Castellammare, A alma eucarística

São Gregório de Nissa, In Cantica Canticorum, hom. 4. MG 44-846

Santo Afonso Maria de Ligório, Meditações; A prática do amor a Jesus Cristo

São João Crisóstomo, Escritos

São Pedro Damião, Escritos

São João da Cruz, Obras Completas

Santa Teresa de Jesus, Obras Completas

Pontifício Instituto Bíblico de Roma

 

 

 

 

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Pe. Divino Antônio Lopes FP. “Não acordeis o amor”

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