A ALMA E A GRAÇA DE DEUS

(Jó 9, 4)

 

“Quem resistiu a Deus e ficou em paz?”

 

PONTO I

 

O QUE SOFRE A ALMA INFIEL À GRAÇA

 

Esta alma não tem PAZ nem FELICIDADE; não tem PAZ porque diz Jó: “Quem resistiu a Deus e ficou em paz?” (Jó 9, 4). Não tem FELICIDADE porque disse Jesus Cristo a Saulo infiel: “Dura coisa é para ti recalcitrar contra o aguilhão da graça” (At 9, 5). A alma sofre: 1.º Por estar privada das consolações da piedade. Quando ela era fiel, gozava das consolações inefáveis na oração, na comunhão, na visita ao Santíssimo Sacramento e outros exercícios; mas depois que é infiel, sente-se fria e desgostosa. Com efeito, como prodigalizaria o Espírito Santo as suas finezas e consolações à alma que lhe resiste, que não quer ouvi-lo nem obedecer-lhe, que não sabe sacrificar-lhe uma afeição, uma vontade e uma inclinação? A alma sofre: 2.º Por ver as suas esperanças frustradas. Ela esperava achar a FELICIDADE na satisfação dos seus gostos e caprichos; e Deus, para vingar, derrama a amargura nos seus falsos prazeres. Acha neles desgostos… sente dentro de si uma grande tristeza… fora de si contradições, dissoluções e dissabores; volta-se em todos os sentidos para achar descanso e todos os seus movimentos não fazem senão penetrar-lhe mais fundo o punhal no coração. A alma sofre: 3.º Pelas censuras da sua consciência que, descontente de si mesma, lhe grita incessantemente que ela é uma ingrata, uma indócil, uma insensata, que se assemelha ao enfermo que, do seu leito de dor, vê o remédio próprio para curá-lo e recusa tomá-lo. Tu vês claramente o que hás de fazer, lhe diz a sua consciência, e não o fazes. Bem conheces que és injusta e continuas; a graça está à porta do teu coração exortando-te e oferecendo-te a sua mão caridosa para te guiar e tu não fazes caso disso e deixa-a falar. Onde está, pois, a tua religião? Onde está a tua razão? A alma sofre: 4.º Da parte de Deus que a persegue com o seu amor que a torna desgraçada para seu bem, com receio de que, sentindo-se tranquila e à sua vontade no seu funesto estado, não persevere nele. Eis aqui donde provém que tantas vezes, depois de termos recusado a Deus o sacrifício de uma palavra pouco caridosa, nos achamos tristes e descontentes, sem saber a razão disso.

O Pe. Francisco Fernández Carvajal escreve: “O Senhor oferece-nos constantemente a sua graça para nos ajudar a ser fiéis, isto é, a cumprir o dever de cada momento. Da nossa parte, resta-nos aceitar essas ajudas e cooperar com elas generosamente e com docilidade. Dá-se na alma algo de semelhante ao que acontece com o corpo: os pulmões necessitam continuamente de aspirar oxigênio para renovar o sangue; quem não respira morre asfixiado. Pois bem, quem não recebe docilmente a graça que lhe é dada por Deus em cada momento, acaba por morrer de asfixia espiritual”.

 

PONTO II

 

O QUE PERDE A ALMA INFIEL À GRAÇA

 

Perder uma graça, uma inspiração do Espírito Santo, é perder mil vezes mais do que se perdêssemos todos os reinos do mundo. Todos os bens da terra são transitórios e de pouco valor, enquanto que a menor graça tem consequências eternas e é de um valor infinito, pois que vale o sangue de Jesus Cristo, à custa do qual nos foi comprada. Perder uma graça é perder o elemento essencial da nossa vida sobrenatural; é imitar o insensato que lançasse na lama o pão necessário à sua subsistência. Perder uma graça é perder ao mesmo tempo todas as graças que teriam sido a consequência dessa primeira graça bem aproveitada, pois que a fidelidade a uma primeira graça atrai uma segunda, esta uma terceira, e assim com as outras. É perder, portanto, tesouros, cujo alcance só Deus conhece; e que desgraça para nós tão pobres e indigentes! Quantas graças perdemos desta sorte! Deploremos estas perdas e reparemo-las não perdendo jamais nenhuma graça.

O Bem-aventurado José Allamano diz: “Agradeçamos, portanto, a Nosso Senhor e procuremos corresponder às suas graças. É verdade, nunca corresponderemos suficientemente, mas, de nossa parte, façamos o maior esforço possível e Deus completará o resto, se encontrar boa vontade em nós. Ele conhece a nossa fraqueza, bem sabe de que barro somos empastados!”

 

PONTO III

 

O QUE ARRISCA A ALMA INFIEL À GRAÇA

 

Não se arrisca nada menos que a sua salvação eterna. Porque, assim como há na ordem física certas coisas ligadas entre si, de tal sorte que não se chega à última sem passar por aquelas que a precedem, há também na ordem sobrenatural uma série de graças ligadas com a nossa perseverança final por meio de relações secretas que ignoramos. Perder uma destas graças é perder o fio que nos guia; é expor-nos a desviar-nos do caminho que devia salvar-nos.

Quem nos diz que a graça, a que somos infiéis, não é, nos desígnios de Deus, uma dessas graças decisivas? Santa Teresa de Jesus viu o lugar que lhe era destinado no inferno, se ela tivesse resistido à graça que lhe dizia que combatesse uma tentação de amor próprio; e o moço do Evangelho, que tinha praticado todos os mandamentos, deixou duvidosa a sua salvação por ter resistido à graça que lhe dizia: Vendei o que possuis e dai-o aos pobres (Lc 12, 33). A privação das graças é a pena ordinária do abuso que delas se faz. Porque rejeitaste a minha graça, diz o Senhor, é que te rejeitei (1 Sm 15, 26). E não é isto justo? Quando o Espírito divino bate à porta de um coração e recusa abrir-lhe, vai-se; quando fala e não o quer ouvir, cala-se. Quando faz brilhar a sua luz e fecha os olhos, retira-se (Ap 2, 5). Terrível castigo! Temei, diz Santo Agostinho, não passe a graça de Jesus que se vos apresenta. Então o Demônio multiplica os seus assaltos, e o homem desfalece na negligência e na tibieza que o leva à morte eterna. Eis aqui a que se arrisca sendo infiel à graça. A quem não causaria isto terror?

 

PONTO IV

 

O QUE LUCRA A ALMA FIEL À GRAÇA

 

Lucra duas coisas: a FELICIDADE e a SANTIDADE. 1.º Lucra a FELICIDADE. Há um prazer inefável em nos deixarmos conduzir em todas as coisas pelo Espírito de Deus, como o menino pela mão de sua mãe, em lhe dizer com amor e simplicidade, como São Paulo: Senhor, que quereis vós que eu faça? (At 9, 6), e logo que ouvimos a sua voz, em lhe obedecer com alegria, correndo e voando de alguma sorte para onde Ele nos chama. Então o coração está em paz porque está na tranquilidade da ordem; a intenção é pura, as ações são regradas, as paixões domadas e a fé mais viva. Se a graça pede sacrifícios, é mais uma felicidade, porque é ocasião de mostrar mais amor; e gosta-se então das palavras de São Luiz Gonzaga, que um sacrifício que se fez por Deus dá mil vezes mais gozo à alma do que lhe daria a mesma coisa que se sacrificou. 2.º A alma fiel lucra a SANTIDADE: Aquele que me ouvir, diz o Espírito Santo, descansará sem temor e gozará da abundância de bens (Pr 1, 33). Adiantamos mais com alguns dias de perfeita correspondência à graça, que com meses inteiros de exercícios espirituais. O Espírito Santo não deixa de inspirar, quando se corresponde às suas inspirações; e a sua unção, que ensina em todas as coisas (1 Jo 2, 27), instrui mais a alma que renuncia a si mesma para seguir a sua direção, que todos os preceitos e lições da vida espiritual. Dai provém que vemos muitas vezes almas simples e retas, privadas de todo o socorro humano, mas atentas e dóceis à voz da graça, fazer na santidade progressos que causam admiração e elevarem-se às mais sublimes virtudes. Se deixássemos agir o Espírito Santo em nós, se nos deixássemos dirigir por Ele, sem estorvar com as nossas distrações e preguiças as suas divinas operações, como Ele nos transformaria! Reconheçamos esta verdade e corrijamo-nos.

São Francisco de Sales escreve: “O Esposo divino diz no Cântico dos Cânticos que sua Esposa lhe arrebatou o Coração por um de seus olhos e por um de seus cabelos. Como devem entender-se estas palavras? É verdade que o olho é parte mais admirável do corpo, tanto por sua estrutura e forma como por suas funções; mas que há de mais vil e desprezível que o cabelo? Deus nos quis ensinar por esta comparação que as nossas mínimas e mais insignificantes ações não lhe são menos agradáveis que as maiores e as de maior brilho e que para lhe agradar é do mesmo modo necessário servir-lhe numas e noutras, podendo nós em ambas indistintamente merecer o seu amor. É justo e bom que te prepares para suportar grandes cruzes por Nosso Senhor, que leves o teu amor até ao martírio, que lhe ofereças tudo o que tens de mais caro, se ele o quiser aceitar: pai e mãe, irmão e irmã, marido e mulher, filhos e amigos, teus olhos e até tua vida, coisas todas essas que já lhe deves, porque tais devem ser as disposições contínuas do teu espírito e coração. Mas, enquanto a divina Providência não exige de ti grandes coisas, enquanto não te pede os olhos por seu amor, oferece-lhe ao menos os teus cabelos. Quero dizer que é necessário suportar com brandura os pequenos incômodos; essas perdas pouco valiosas e essas contrariedades inúmeras de cada dia e essas pequenas ocasiões, sendo suportadas por um verdadeiro amor a Deus, granjear-te-ão inteiramente o seu Coração”.

O Bem-aventurado Columba Marmion ensina: “Qual deve ser a atitude da alma amante diante dessa vontade? Sentir-se abrasada para cumpri-la. Todas as energias do nosso ser devem empregar-se, com fidelidade e constância, no cumprimento dessa vontade… nada quero deixar passar do que Deus pede de mim; quero fazer tudo o que lhe for agradável. Quanto mais íntimo se é com alguém, mais cuidado se tem em não lhe desagradar; para com Deus, a nossa fidelidade deve ser absoluta”.

O Pe. Gabriel de Santa Maria Madalena comenta: “Cada fiel deve perseverar no bem e na procura de Deus, mesmo entre as trevas interiores, mesmo quando parece ofuscar-se a luz que ilumina seu caminho. Tais obscuridades só se superam com intenso espírito de fé pura e nua, que se apoia unicamente em Deus. Sei que Deus o quer, sei que Deus me chama e isto me basta… Seja o que for que ele me permita ou me peça, não posso duvidar dele”.

O Pe. Francisco Fernández Carvajal escreve: “Quanto maior for a nossa fidelidade a essas graças, melhor nos prepararemos para receber outras, maior a facilidade que teremos para realizar boas obras, maior a alegria que experimentaremos na nossa vida, porque a alegria sempre está estreitamente relacionada com a correspondência à graça”.

 

Pe. Divino Antônio Lopes FP (C)

Anápolis, 18 de maio de 2016

 

 

Bibliografia

 

Sagrada Escritura

Santo Agostinho, Escritos

São Luiz Gonzaga, Escritos

M. Hamon, Meditações para todos os dias do ano

São Francisco de Sales, Filotéia

Bem-aventurado Columba Marmion, Jesus Cristo: ideal do monge

Bem-aventurado José Allamano, A Vida Espiritual

Pe. Gabriel de Santa Maria Madalena, Intimidade Divina

Pe. Francisco Fernández Carvajal, Falar com Deus

R. Garrigou-Lagrange, Las tres edades de la vida interior, vol. I, pág. 104

 

 

 

 

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Pe. Divino Antônio Lopes FP. “A alma e a graça de Deus”

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