Instituto Missionário dos Filhos e Filhas da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo e das Dores de Maria Santíssima

 

 

Quarta palestra

 

 

Santa Missa segundo o Rito Gregoriano (“Missa Tridentina”)

 

(Pe. Franz Hörl)

 

ENSAIO SOBRE OS ASPECTOS PRINCIPAIS DO “MOTU PROPRIO” SUMMORUM PONTIFICUM E O SEU SIGNIFICADO PARA A VIDA DA IGREJA NA SUA SITUAÇÃO ATUAL DE CRISE GENERALIZADA

 

(Observação: Destaques de palavras em negrito ou sublinhado em citações são meus próprios, não dos autores citados).

 

Introdução: os três documentos de base

 

“O Santo Padre quer que a forma tradicional da santa Missa se torne elemento regular da vida litúrgica da Igreja. Todos os fiéis – tanto jovens quanto idosos – familiarizem-se com os ritos antigos, a fim de tirarem proveito da beleza e da transcendência sensíveis deles. – O Papa deseja isso por razões pastorais e teológicas.”

 

Em junho de 2008, o Cardeal Dário Castrillon-Hoyos, então Presidente da Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei” (que trata, especificamente, da questão da liturgia antiga), interpretou com estas palavras, como que um porta-voz do Papa, a intenção de Bento XVI quanto à Carta apostólica “Motu proprio” SUMMORUM PONTIFICUM (citada através da sigla SP), com a data de 7 de julho de 2007.

O termo “Motu proprio”, em latim, quer dizer, por um impulso pessoal, e é usado para um decreto pessoal do Papa, como sumo legislador de toda a Igreja, para estabelecer uma nova lei. As primeiras duas palavras do documento em latim dão-lhe o nome individual.

Começa, portanto, a Carta apostólica com esta frase: “SUMMORUM PONTIFICUM cura ad hoc tempus usque semper fuit, ut Christi Ecclesia Divinae Maiestati cultum dignum offerret, ‘ad laudem et gloriam nominis Sui’ et ‘ad utilitatem totius Ecclesiae Suae sanctae’.” - “Os sumos pontífices até nossos dias se preocuparam constantemente para que a Igreja de Cristo oferecesse à Divina Majestade um culto digno de ‘louvor e glória de Seu nome’ e ‘do bem de toda sua Santa Igreja’”.

O segundo documento é uma “CARTA DO SANTO PADRE BENTO XVI AOS BISPOS QUE ACOMPANHA O “MOTU PROPRIO” SUMMORUM PONTIFICUM SOBRE O USO DA LITURGIA ROMANA ANTERIOR À REFORMA REALIZADA EM 1970” (citada adiante como CB). Nela o Papa explica aos Bispos as razões da nova lei, e argumenta contra possíveis objeções.

Para dar maior precisão ao dito “Motu proprio”, aos 30 de abril de 2011, por ordem e com aprovação do Papa, o Cardeal William Levada, na sua qualidade de novo e atual Presidente da Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei” (também e ao mesmo tempo como Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé), publicou a Instrução UNIVERSAE ECCLESIAE (citada como UE).

 

Um “tesouro precioso” – uma “lei universal”

 

“A Carta Apostólica Summorum Pontificum Motu proprio do Soberano Pontífice Bento XVI [...] fez mais acessível à Igreja universal a riqueza da Liturgia Romana. Com o sobredito Motu proprio o Sumo Pontífice Bento XVI promulgou uma lei universal para a Igreja com a intenção de dar uma nova regulamentação acerca do uso da Liturgia Romana em vigor no ano de 1962.”

 

Essa constatação introdutória da Instrução Universae Ecclesiae realça logo dois aspectos fundamentais da iniciativa do Papa:

 Primeiro fala-se de uma “riqueza da Liturgia Romana”,

 e depois de uma “lei universal” para toda a Igreja.

O artigo 8 dela especifica: O Motu Proprio se propõe como objetivo: “Liturgiam Romanam in Antiquiore Usu, prout pretiosum thesaurum servandum, omnibus largiri fidelibus”, o que quer dizer presentear” – e não só oferecer, como diz a tradução em português – “a todos os fiéis a Liturgia Romana segundo o Uso antigo (Usus Antiquior), considerada como um tesouro precioso a ser conservado”.

Uma ‘oferta’ seria neutra – eu posso aceitá-la ou não –, um presente, porém, um presente bom e bonito, é impossível recusá-lo. Então o Papa deseja presentear a todos com o tesouro da liturgia antiga, anterior à reforma do pós-concílio.

Como já em SP art.1, assim também em UE o artigo 6 afirma: “Pelo seu uso venerável e antigo a forma extraordinária deve ser conservada em devida honra.”

Com esse precioso tesouro do uso antigo da Liturgia Romana, o Papa deseja presentear, expressamente, a “todos os fiéis” (omnibus fidelibus), e não somente aos que o pedem.

Não se trata, portanto, de uma lei particular, ou de um privilégio para certos grupos, mas de uma lei universal do Magistério do Romano Pontífice para toda a Igreja!

A Missa de São Pio V, chamada também de Missa tridentina, ou seja – na linguagem dos documentos – “a forma tradicional da santa Missa” não pertence a nenhum grupo ou movimento, mas é patrimônio de toda a Igreja católica!

Caiu, acima, a expressão ‘forma extraordinária’. O que se entende com isso? E quais os significados de outros termos usados nesses documentos?

 

A ‘forma extraordinária’ do Rito romano

 

É um princípio fundamental da liturgia que ‘a lei de oração da Igreja corresponda à lei da Fé’, LEX ORANDI – LEX CREDENDI, para:

 garantir a unidade da Igreja,

 transmitir a integridade da Fé e

 evitar os erros de doutrina.

A Liturgia, portanto, é a expressão válida e significativa daquilo que a Igreja crê, do seu dogma de Fé.

O Missal Romano – o Livro de Missa – é a expressão da ‘Lei de Oração’ da Igreja católica de rito latino (Pois existem também outros ritos: dos ritos orientais, por exemplo, o rito maronita dos Libaneses; da família do rito bizantino o rito ruteno da Ucraina, o rito melquita e outros mais).

O Papa Bento XVI introduziu uma nova terminologia:

“O Missal Romano promulgado por Paulo VI é a expressão ordinária da ‘Lex orandi’ [... O] Missal Romano promulgado por São Pio V e novamente pelo beato João XXIII deve ser considerado como expressão extraordinária da mesma ‘Lex orandi’ e gozar do respeito devido por seu uso venerável e antigo. Estas duas expressões da ‘Lex orandi’ da Igreja [...] são, de fato, dois usos do único rito romano.” (SP art.1).

Na Carta aos Bispos o Papa explica isso: “[... O] Missal publicado por Paulo VI, [...] obviamente é e permanece a Forma normal – a Forma ordinária – da Liturgia Eucarística. A última versão do Missale Romanum, anterior ao Concílio, que foi publicada sob a autoridade do Papa João XXIII em 1962 e utilizada durante o Concílio, poderá, por sua vez, ser usada como Forma extraordinária da Celebração Litúrgica. Não é apropriado falar destas duas versões do Missal Romano como se fossem «dois ritos». Trata-se, antes, de um duplo uso do único e mesmo Rito.”

Para significar a celebração conforme à, agora assim chamada, ‘forma extraordinária’ do Missal, também está em uso o termo de celebração segundo o ‘Rito Gregoriano’, do Papa São Gregório Magno (+ 604), e também se fala de ‘Liturgia romana clássica’.

A Instrução UE resume: “Trata-se aqui de dois usos do único Rito Romano, que se põem um ao lado do outro. Ambas as formas são expressões da mesma lex orandi da Igreja. Pelo seu uso venerável e antigo a forma extraordinária deve ser conservada em devida honra.” (art.6).

Daí o apelo tanto para os Bispos, “que ofereçam ao clero a possibilidade de obter uma preparação adequada às celebrações na forma extraordinária, o que vale também para os Seminários, onde se deve prover à formação dos futuros sacerdotes [...] a oportunidade de aprender a forma extraordinária do Rito(EU art.21), quanto para todos os fiéis que “se familiarizem com os ritos antigos(Card. Castrillon-Hoyos).

Faz-nos bem a todos conservar as riquezas que foram crescendo na fé e na oração da Igreja, dando-lhes o justo lugar”, observa o Santo Padre.

 

Há uma possível contradição entre a forma ordinária e extraordinária?

 

A essa eventual dúvida o Papa responde na Carta aos Bispos: “Não existe qualquer contradição entre uma edição e outra do Missale Romanum. Na história da Liturgia, há crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura. Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial.

... Aliás, as duas Formas do uso do Rito Romano podem enriquecer-se mutuamente: no Missal antigo poderão e deverão ser inseridos novos santos e alguns dos novos prefácios. ... E, na celebração da Missa segundo o Missal de Paulo VI, poder-se-á manifestar, de maneira mais intensa do que frequentemente tem acontecido até agora, aquela sacralidade que atrai muitos para o uso antigo.”

O próprio Papa realça da forma extraordinária a sua qualidade específica de maior SACRALIDADE que atrai muitas pessoas; sobretudo também “porque, em muitos lugares, se celebrava não se atendo de maneira fiel às prescrições do novo Missal, antes consideravam-se como que autorizados ou até obrigados à criatividade, o que levou frequentemente a deformações da Liturgia no limite do suportável. Falo por experiência, porque também eu vivi aquele período com todas as suas expectativas e confusões. E vi como foram profundamente feridas, pelas deformações arbitrárias da Liturgia, pessoas que estavam totalmente radicadas na fé da Igreja.”

 

Desordem litúrgica generalizada

 

Como acabamos de ver, o Papa sabe por experiência pessoal das deformações da Liturgia, lamentando a tamanha anarquia ‘criativa’ que se instalou na celebração da Missa Nova de Paulo VI.

Recentemente, antes de dar início à celebração litúrgica pelo Papa, na Praça de São Pedro, em Roma, em várias línguas se avisou à multidão de gente presente, que não se fizesse aplausos nem se abanasse bandeiras, a fim de que se respeite a piedade e o caráter sagrado da santa Missa.

O Mons. Brunero Gherardini, até 1995 professor na Pontifícia Universidade Lateranense e, atualmente, cônego da Arquibasílica Vaticana, no seu recente livro ‘Concílio Ecumênico Vaticano II – Um debate a ser feito’, observa “a grosseira situação de desordem litúrgica que está sob os olhos de todos e que cada dia aumenta”. As principais deformações arbitrárias da Liturgia, que estão à vista de todos, são:

 manipulação de textos e substituição deles até no Cânon e até mesmo na consagração eucarística;

 introdução de danças e manifestações de cantos caracterizados pelas palavras estranhas;

 utilização de músicas sincopadas, mais adequadas a uma discoteca que a uma celebração litúrgica;

 concelebrações imensas feitas sem atenção e privadas de sentido sagrado, durante as quais gritos e aplausos tomam o lugar da adoração e do recolhimento;

 a comunhão eucarística nas mãos e grupos associativos, em uma dimensão mundial, que reduzem a Missa e principalmente a comunhão a um verdadeiro piquenique.

O Papa espera da celebração da Missa antiga um tipo de fecundação também para a celebração da Missa Nova: uma maior fidelidade às rubricas, isto é, uma maneira correta de celebrar a Missa conforme às normas litúrgicas.

Mas é mais:

 

Rumo a uma reforma da Liturgia ‘Nova’?

 

Está em vista também uma reforma da própria Liturgia nova, como o sugerem as palavras do Cardeal Albert Malcolm Ranjith (o qual goza da confiança pessoal de Bento XVI e era também, ainda como arcebispo, secretário da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos):

“Portanto, chegou o tempo de não somente renovar o conteúdo da liturgia reformada, através de mudanças radicais, mas também, de cada vez mais encorajar a retornar a Ordem Antiga que é um caminho para uma renovação verdadeira da Igreja, que os padres do Concílio Vaticano II desejaram.

A leitura cuidadosa da Constituição Conciliar sobre a Liturgia Sagrada mostra que jamais corresponderam à vontade dos padres conciliares às mudanças precipitadas que depois foram introduzidas na Liturgia”.

Isso significa bem claramente, que não há somente abusos a lamentar, mas também que é a própria Liturgia reformada depois do último Concílio em si, que deixa a desejar...

A responsabilidade pelo “caos pós-conciliar no âmbito litúrgico”, continua dizendo o Mons. Brunero Gherardini, recai sobre aqueles professores – em vez de serem ‘confessores’ –, que preferiram uma Liturgia fabricada, como já em 1985 o então Cardeal Ratzinger havia lamentado.

No lugar de uma Liturgia orgânica colocaram a Liturgia “da teatralidade coletiva, da liberdade criativa, da comunhão na mão, das canções tolas e até mesmo semi-heréticas, do ostracismo [=desterro] em relação à posição ‘versus Domino’, à sacralidade do rito, ao seu significado latrêutico [=de adorar a Deus], à funcionalidade insubstituível do [canto] gregoriano, à solenidade dos gestos e dos paramentos, ao ajoelhar agora incompatível com o orgulho do altivo estar de pé, de igual para igual, diante do Senhor do Céu e da Terra.”

Num livro de entrevista sobre ‘Deus e o Mundo’, publicado no ano de 2000, o Cardeal Ratzinger explicara: “Precisamos renovar a nossa consciência litúrgica para fazer desaparecer a tal mentalidade do fazer, que chegou a tal ponto que equipes litúrgicas fabricam a sua própria liturgia para cada domingo. Desse modo, pois, não encontro mais o transcendente, o Sagrado que se me oferece, mas a idéia e a criatividade de algumas pessoas. E percebo, não é isso que estou procurando; é pouco demais e é algo diferente.

O mais importante para nós é que recuperemos o respeito pela Liturgia e pelo seu caráter sagrado que está fora de manipulação e de criatividade subjetiva. Devemos aprender de novo de reconhecê-la como algo organicamente crescido e doado, algo no que participamos da Liturgia celeste. Nela não devemos procurar a nossa auto-realização, mas o dom que nos foi dado. – O sentido interior pelo sagrado deve novamente despertar.”

 

Porquê agora o estranho de DOIS usos do único Rito romano?

 

Acontece que o Concílio Vaticano II (1963 – 1965) expressou o desejo de que o que diz respeito ao culto divino se renovasse e se adaptasse às necessidades de nossa época. O Papa Paulo VI aprovou em 1970 os novos livros litúrgicos, que depois foram traduzidos às diversas línguas do mundo.

O Papa Bento XVI explica o que aconteceu: “Na altura da introdução do novo Missal, não pareceu necessário emanar normas próprias para um possível uso do Missal anterior. Supôs-se, provavelmente, que se trataria de poucos casos individuais que seriam resolvidos um a um na sua situação concreta. Bem depressa, porém, se constatou que não poucos continuavam fortemente ligados a este uso do Rito Romano que, desde a infância, se lhes tornara familiar.” (CB).

“[...] aderiram e seguem aderindo com muito amor e afeto às anteriores formas litúrgicas, que haviam embebido tão profundamente sua cultura e seu espírito [...]” (SP).

Por isso, o Papa João Paulo II, em 1984, concedeu como privilégio de usar o Missal anterior, e, em 1988, exortou aos bispos a uma maior generosidade a favor de todos os fiéis que o solicitassem.

Contudo, o uso anterior era ligado a uma solicitação expressa dos padres e dos fiéis interessados e dependia de uma autorização dos bispos, que restringiram tal permissão ao máximo.

 

A Missa antiga nunca foi proibida!

 

Existia uma dúvida inquietante: Com a introdução do novo Missal de Paulo VI, em 1970, ficava proibido ou não, o uso do Missal anterior de João XXIII, de 1962, que foi usado ainda durante o Concílio Vaticano II? A opinião geral foi esta que o Missal anterior estaria superado e substituído pelo novo. Mas estaria ‘proibido’ celebrar a Missa antiga depois de 1970?

De fato, com a introdução da Missa Nova, Paulo VI não fez referência a nenhuma abolição ou proibição da Missa anterior. Tampouco teria sido possível, porque a Igreja jamais proibiu um rito tão antigo; e também São Pio V, em 1570, quando promulgou a primeira edição típica do Missal tridentino (após o Concílio de Trento, 1545 – 1564), determinou a validade sempiterna desse Rito e que jamais poder-se-ia proibir a um sacerdote a celebrar essa Missa.

Não obstante, o próprio Papa João Paulo II estava com dúvidas. Conta, (em 1995), o Cardeal Alfonso Maria Stickler: “[O Papa] colocou a uma comissão de nove cardeais duas perguntas:

Primeiro: o Papa Paulo VI ou qualquer outra autoridade competente até então, proibiu formalmente a celebração em geral da Missa tridentina? – Não! O Papa perguntou então expressamente ao Cardeal Benelli: ‘Paulo VI proibiu a Missa antiga?’ O Cardeal não respondeu, nem sim, nem não. Porquê? Não podia bem dizer: sim, ele a proibiu. Não podia proibir a Missa que era válida desde o princípio e que era a Missa de milhares de Santos e fiéis. Para ele a dificuldade era essa: Não podia proibi-la, mas ao mesmo tempo ele queria a celebração e aceitação da Missa Nova. E assim só podia dizer: “Eu quero que se reze a Missa Nova.” Essa foi a resposta dos Cardeais à pergunta. Disseram, o Santo Padre deseja que todos sigam a Missa Nova. A resposta dos oito Cardeais, em 1986, foi: Não. A Missa de Pio V nunca foi proibida. Eu posso dizê-lo. Fui um destes Cardeais; e um só foi contra...

E a outra pergunta: Algum bispo pode proibir a algum sacerdote de boa fama a celebração da Missa tridentina? Os nove Cardeais, unanimemente, declararam que bispo algum pode proibir a um sacerdote que celebre a Missa tradicional. Não existe nenhuma proibição oficial, e acredito que o Papa jamais pronunciará uma proibição oficial.”

O nosso Papa atual, Bento XVI, finalmente, tirou a dúvida, esclarecendo: “Quanto ao uso do Missal de 1962, como Forma extraordinária da Liturgia da Missa, quero chamar a atenção para o fato de que este Missal nunca foi juridicamente ab-rogado e, consequentemente, em princípio, sempre continuou permitido.”

Pois vale o princípio teológico já mencionado: “Na história da Liturgia, há crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura. Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial.” (CB).

 

O Motu proprio SUMMORUM PONTIFICUM libera a celebração da Missa antiga para sacerdotes e fiéis das restrições de João Paulo II

 

A Instrução UE (n.7) recapitula: “faltando uma legislação que regulasse o uso da Liturgia romana de 1962 era necessária uma nova e abrangente regulamentação. Esta regulamentação se fazia mister especialmente porque no momento da introdução do novo missal não parecia necessário emanar disposições que regulassem o uso da Liturgia vigente em 1962. Por causa do aumento de quanto solicitam o uso da forma extraordinária fez-se necessário dar algumas normas a respeito”.

“[...] é licito celebrar o Sacrifício da Missa segundo a edição típica do Missal Romano promulgado pelo beato João XXIII em 1962, que não foi ab-rogado nunca, como forma extraordinária da Liturgia da Igreja. As condições para o uso deste missal estabelecidas nos documentos anteriores “Quattuor abhinc annos” e “Ecclesia Dei”, serão substituídas como se estabelece a seguir:

Art. 2 – Nas Missas celebradas sem o povo, todo sacerdote católico de rito latino, tanto secular como religioso, pode utilizar seja o Missal Romano editado pelo beato Papa João XXIII em 1962, seja o Missal Romano promulgado pelo Papa Paulo VI em 1970, em qualquer dia, exceto o Tríduo Sacro. Para dita celebração seguindo um ou outro missal, o sacerdote não necessita nenhuma permissão, nem da Sé Apostólica nem do ordinário [=bispo diocesano].”

 

A intenção do Santo Padre é eminentemente pastoral, segundo à máxima da Igreja: Salus animarum – suprema lex, ‘a salvação das almas é suprema lei’.

“Logo a seguir ao Concílio Vaticano II – explica o Papa - podia-se supor que o pedido do uso do Missal de 1962 se limitasse à geração mais idosa que tinha crescido com ele, mas entretanto vê-se claramente que também pessoas jovens descobrem esta forma litúrgica, sentem-se atraídas por ela e nela encontram uma forma, que lhes resulta particularmente apropriada, de encontro com o Mistério da Santíssima Eucaristia.” (CB).

Portanto, o segundo dos três objetivos de SP é: “garantir e assegurar realmente a quantos o pedem o uso da forma extraordinária, supondo que o uso da Liturgia Romana vigente em 1962 é uma faculdade concedida para o bem dos fiéis e que, por conseguinte, deve ser interpretada em sentido favorável aos fiéis, que são os seus principais destinatários.” (UE art.8b).

(Observação: O texto original em latim do acima citado usa termos de maior intensidade: "Increscentibus magis magisque in dies fidelibus expostulantibus celebrationem formae extraordinariae...”. Na tradução portuguesa ficou completamente omisso o crescimento do número dos fiéis “de dia a dia” e que não somente pedem, mas “solicitam intensamente” a celebração na forma extraordinária...)

Assim, p. ex., de julho de 2007 até agosto de 2009, o número de lugares de celebração da Missa antiga, na região de língua alemã, aumentou de 35 a 198 lugares; isso corresponde a um aumento de 470%! Depois o aumentou diminuiu devido a dificuldades, que as pessoas aderentes à Missa antiga, encontram; e também por que muitos fiéis ignoram completamente a doutrina da Igreja a respeito da santa Missa como Sacrifício e não entendem a antiga Liturgia em latim e o seu espírito.

O pároco pode conceder a licença para usar o ritual precedente na administração dos sacramentos do Batismo, do Matrimônio, da Confissão e da Unção dos Enfermos, se o requer o bem das almas (art.9,1).

 

‘Coetus fidelium’ – grupo estável de fiéis

 

A respeito do grupo de fiéis, o Motu proprio determina:

(Art. 5, § 1º) “Nas paróquias, onde haja um grupo estável de fiéis aderentes à precedente tradição litúrgica, o pároco acolherá de bom grado seu pedido de celebrar a Santa Missa segundo o rito do Missal Romano editado em 1962.”

Como em seguida da nova legislação de Summorum Pontificum, a má vontade de muitos dos bispos tentou interpretar a expressão “coetus fidelium stabiliter existens”, “grupo estável de fiéis” em desfavor deles, fazendo exigências desconhecidas ao Motu proprio, a Instrução Universae Ecclesiae precisou: Será considerado como ‘grupo’, “quando for constituído por:

 algumas pessoas de uma determinada paróquia unidas por causa da veneração pela Liturgia em seu Usus Antiquior,

 seja antes, seja depois da publicação do Motu Proprio, as quais pedem que a mesma seja celebrada na própria igreja paroquial, num oratório ou capela; dito coetus pode ser também constituído por

pessoas que vêm de diferentes paróquias ou dioceses e que convergem em uma igreja paroquial ou oratório ou capela destinados a tal fim.

No caso em que um sacerdote se apresente ocasionalmente com algumas pessoas em uma igreja paroquial ou oratório e queira celebrar na forma extraordinária,... o pároco ou o reitor de uma igreja, ou o sacerdote responsável por uma igreja, o admita a tal celebração...

(SP) Art.5, § 2º - A celebração segundo o Missal do beato João XXIII pode ocorrer em dia ferial; nos domingos e nas festividades pode haver também uma celebração desse tipo”.

 

O procedimento para se pedir a celebração da Missa antiga

 

Art. 7 – Se um grupo de fiéis leigos... não tenha obtido satisfação a suas petições por parte do pároco, informe ao bispo diocesano. Convida-se vivamente ao bispo a satisfazer seu desejo. Se não pode prover a esta celebração, o assunto se remeta à Pontifícia Comissão “Ecclesia Dei”.

 

A Instrução UE (n.9 e n.10 §1.) especifica as tarefas da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei:

“O Sumo Pontífice conferiu à Pontifícia Comissão Ecclesia Dei poder ordinário vicário para a matéria de sua competência, de modo particular no que tocante à exata obediência e à vigilância na aplicação das disposições do Motu Próprio Summorum Pontificum (cf. art. 12).

A Pontifícia Comissão Ecclesia Dei exerce tal poder,... na qualidade de Superior hierárquico, mesmo contra uma eventual medida administrativa singular do Ordinário que pareça contrário ao Motu Proprio.”

Tal determinação se dirige contra a desobediência dos bispos que, agora, podem ser obrigados por força de lei a aceitar a Missa antiga nas suas dioceses.

 

Na Missa tradicional pode haver coroinhas femininos e comunhão na mão?

 

A Instrução traz um detalhe novo e interessante (n. 28): ”... o Motu Proprio Summorum Pontificum derroga os textos legislativos inerentes aos sagrados Ritos promulgados a partir de 1962 e incompatíveis com as rubricas dos livros litúrgicos em vigor em 1962.”

Isso significa que inovações litúrgicas após o ano de 1962 não se aplicam na celebração da forma extraordinária da santa Missa.

Dois exemplos: Em 1969, Paulo VI introduziu a possibilidade de receber a santa Comunhão na mão; em 1994, João Paulo II permitiu a meninas servir de acólitos na Missa. Ambas as determinações, feitas depois de 1962, se aplicam tão somente à Missa nova, mas são proibidas na Missa antiga.

 

Reconciliação ao interno da Igreja

 

Como terceiro objetivo, o ‘Motu proprio’ se propõe “favorecer a reconciliação ao interno da Igreja” (UE 8). “Todos sabemos que, no movimento guiado pelo Arcebispo Lefebvre, a fidelidade ao Missal antigo apareceu como um sinal distintivo externo; mas as razões da divisão, que então nascia, encontravam-se a maior profundidade.”

Quem era o Arcebispo Levebvre? Na mídia, ele e os sacerdotes da Fraternidade de São Pio X, por ele fundada, são apresentados como pessoas curiosas, retrovertidas, fundamentalistas, antisemitas e fascistas.

Marcel Levebvre nasceu na França, em 1905. Foi ordenado sacerdote em 1929, e desde 1932 trabalhou como missionário em Gabão, na África.  Pio XII nomeou-o Vigário Apostólico de Dakar e depois Delegado Apostólico para toda a África de língua francesa. Ele organizava a Igreja em 18 paises africanos, construía igrejas, escolas, hospitais e seminários. Em 1962 voltou para a Europa e tornou-se Superior geral da Congregação dos “Padres do Espírito Santo” à qual ele pertencia. Participou ativamente no Concílio Vaticano II. Fundou, em 1970, um seminário em Ecône, na Suíça, e também a Fraternidade Sacerdotal Internacional da São Pio X, erigida canonicamente  pelo Bispo diocesano de Friburgo na Suíça. Em 2004, a Fraternidade contava com 450 sacerdotes, e com priorados em 31 paises em todos os continentes.

Os ‘Levebvrianos’, como logo foram chamados, acusam a Igreja Católica Romana ter destruído a Tradição (que é um fundamento constitucional na transmissão autêntica e integral do depósito da Fé), através do Concílio e da Reforma litúrgica pós-conciliar. Em 1975, a Santa Sé cancelou a legitimação canônica da Fraternidade e proíbe ao Arcebispo Dom Levebvre a ordenação dos sacerdotes dos seminários dele. No ano seguinte, Paulo VI o suspende ‘a divinis’. Quando em 1988, Dom Levebvre, para assegurar a continuidade da Fraternidade, consagra quatro novos bispos, João Paulo II (liberal, tolerante e ‘humano’ com todo o mundo, menos com eles) decreta a Dom Levebvre e também aos novos bispos a pena canônica máxima da Excomunhão.

Num discurso público, em 1977, Dom Levebvre levantou a questão: “Se pode imaginar a Igreja Católica somente como continuidade, como tradição, como herdeira do passado. É impossível compreender uma Igreja que rompe com o passado e a sua tradição. Por razão dessa impossibilidade, exatamente, é que estou me encontrando numa situação um tanto curiosa: na situação de um bispo que foi suspenso de ordens, porque erigiu, legal e canonicamente, um seminário na Suíça, um seminário que recebe muitas vocações. Nos oito anos desde a fundação, conseguimos numerosas casas nos Estados Unidos, no Canadá, na Inglaterra, na França, na Suíça, na Alemanha, na Itália.

Como é possível – pergunto eu – continuando a fazer o que fiz durante 50 anos da minha vida, com os parabéns e o encorajamento do Papa, especialmente do Papa Pio XII que me dignou da sua amizade (pessoal), e que hoje em dia me encontre numa situação, na qual estou considerado como que um inimigo da Igreja? Como isso é possível? Como compreender isso?

Eu tive ocasião de dizer isso ao Papa (Paulo VI)... Disse-lhe: Não consigo compreender qual é a razão de que, depois de ter formado seminaristas ao longo de toda a minha vida assim como dou-lhes a formação hoje, antes do Concílio eu possuía, fora do Cardinalato, todas as honras, e agora, ao invés, depois do Concílio, fazendo a mesma coisa, me encontro suspenso ‘a divinis’, como que cismático, como que um inimigo da Igreja e excomungado... Há algo que mudou, na Igreja; algo que os homens da Igreja mudaram, na sua história.”

Na verdade, o fenômeno de Dom Levebvre excedia muito a pessoa dele, tendo as suas raízes e as suas causas primárias nos problemas gerados pelo Concílio e pela sua execução pós-conciliar. A resistência contra a execução das Reformas conciliares nascia do baixo clero e dos fiéis. O arcebispo francês, Dom Marcel Levebvre, foi o mais conhecido, porém não o único representante de um movimento de resistência largo e ramificado.

Em 2000, o Cardeal Joseph Ratzinger reclamou a respeito da intolerância generalizada contra a Liturgia antiga:

“…deve acabar, finalmente, a proscrição da forma litúrgica válida até 1970. Hoje em dia, quem defender a continuidade dessa liturgia, ou quem dela participar, está sendo tratado como um leproso; aí termina toda e qualquer tolerância. Tal comportamento não se encontra em toda a história; com isso, pois, se proscreve também todo passado da Igreja. Se for assim, como confiar-se-ia no presente dela?”

“Trata-se de chegar a uma reconciliação interna no seio da Igreja. Olhando para o passado, para as divisões que no decurso dos séculos dilaceraram o Corpo de Cristo, tem-se continuamente a impressão de que, em momentos críticos quando a divisão estava a nascer, não fora feito o suficiente por parte dos responsáveis da Igreja para manter ou reconquistar a reconciliação e a unidade; fica-se com a impressão de que as omissões na Igreja tenham a sua parte de culpa no fato de tais divisões se terem podido consolidar. Esta sensação do passado impõe-nos hoje uma obrigação: realizar todos os esforços para que todos aqueles que nutrem verdadeiramente o desejo da unidade tenham possibilidades de permanecer nesta unidade ou de encontrá-la de novo.” (CB).

Foi essa a intenção do Papa Bento XVI, suspendendo, em janeiro de 2009, a excomunhão com que João Paulo II tinha punido os bispos da Fraternidade; aliás, sem conseguir nada a não ser um distanciamento, um ressentimento e uma desconfiança cada vez maior; a mesma coisa como tantas vezes acontecera no passado da Igreja.

O Papa quer insistentemente o retorno e a integração canônica da Fraternidade na Igreja. E apela tanto aos bispos da Igreja Católica quanto aos bispos e sacerdotes da Fraternidade:

“Vem-me à mente uma frase da segunda carta aos Coríntios, quando Paulo escreve: «Falámo-vos com toda a liberdade, ó Coríntios. O nosso coração abriu-se plenamente. Há nele muito lugar para vós, enquanto no vosso não há lugar para nós (…): pagai-nos na mesma moeda, abri também vós largamente o vosso coração» (2 Cor 6, 11-13). É certo que Paulo fala noutro contexto, mas o seu convite pode e deve tocar-nos também a nós, precisamente neste tema. Abramos generosamente o nosso coração e deixemos entrar tudo aquilo a que a própria fé dá espaço.”

A Fraternidade ainda está deliberando. O renomado liturgista Mons. Nicola Bux apelou à Fraternidade numa carta a Mons. Bernard Fellay, de 19 de março deste ano:

“Com as palavras de Santa Catarina de Sena podemos dizer-vos:’Voltai seguros para Roma,’ à casa do Pai comum, que nos foi presenteado para princípio sempiterno e visível, e fundamento da unidade católica. Vem para participar desse futuro abençoado, do qual, não obstante da escuridão ainda presente, já se pode entrever a aurora da manhã.

A vossa rejeição aumentaria o espaço da escuridão e não o da luz. Multiformes são os raios da luz, que desde já estamos admirando, antes de tudo, os indícios de uma grande restauração litúrgica, que está sendo realizado pelo ‘Motu proprio’ Summorum Pontificum, que no mundo inteiro está causando um largo movimento, sobretudo entre as pessoas mais novas que desejam cultivar o Culto do Senhor com um novo fervor... Como não dar valor para o que vós podeis trazer para o bem de toda a Igreja, graças às vossas reservas pastorais e doutrinais, às vossas habilidades e vossa sensibilidade.

Este é o momento próprio, esta é a hora oportuna de retornar. ‘Timete Dominum transeuntem’. Não deixeis escapar a ocasião da Graça, que o Senhor vos oferece; não deixeis passá-la, não a reconhecendo. Será que o Senhor concederá mais uma?

Não é que um dia deveremos aparecer nós todos diante do Seu Tribunal e prestar contas, não só do mal cometido, como também de todo o bem que poderíamos ter feito e não fizemos? O coração do Santo Padre está batendo na sua porta: Ele vos está esperando, porque vos ama, porque a Igreja precisa de vós para um testemunho comum da Fé, no meio de um mundo cada vez mais secularizado, que parece querendo virar as costas ao seu Criador e Redentor...

A Imaculada nos ensina que graças demais se perdem, porque não se as pede. Com certeza, a Fraternidade de São Pio X, dando uma resposta positiva à proposta do Santo Padre, tornar-se-á um instrumento para acender novos raios de luz nas mãos de nossa Mãe celestial.”

 

O significado da Liturgia para a vida da Igreja

 

O Concílio Vaticano II diz que a Liturgia é o “exercício da função sacerdotal de Cristo”, cujo fim é a “santificação dos homens” e na qual “o Corpo Místico de Jesus Cristo... presta a Deus um culto público integral”. Ela “é simultaneamente a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força”, “é o cume de toda a ação da Igreja e a fonte de sua eficácia. Pela Liturgia da terra participamos, saboreando-a já, na Liturgia do Céu, para o qual, como peregrinos nos dirigimos.

No já mencionado livro de entrevista sobre ‘Deus e o Mundo’, o Cardeal Joseph Ratzinger apresentou, sumariamente, a sua visão a respeito da liturgia, que ganha uma eminente importância, visto que ele está agora na Sede de São Pedro.

A Eucaristia recebe a sua solenidade, a sua dignidade, através de algo todo perfeito e sublime na espiritualidade católica, que é a sua Liturgia. Nela toda a palavra e todo o gesto aparece conter um significado próprio, quase um especial mistério. Como diz a Igreja: É nessa liturgia terrestre que os fiéis, antecipando, assistem já a ‘Liturgia celeste’.

“Isso é um ponto de vista muito importante. Liturgia jamais seria uma simples assembléia de um grupo só, para fazer a sua própria celebração, celebrando-se a si mesmo.” Em vez disso estamos sempre com Jesus Cristo diante do Pai, tanto na comunhão mundial de toda a Igreja, quanto na ‘communio sanctorum’, na comunhão de todos os Santos. De certa forma é a Liturgia do Céu.

Isso é o realmente magnífico, que aqui na Liturgia, o Céu se abre e nós inserimo-nos no coro de adoração. Por isso o Prefácio finaliza com as palavras que cantamos a uma só voz junto com os Coros angélicos dos Serafim e Querubim...

São Basílio falou que a Missa é uma revelação igualmente grande como a Sagrada Escritura. A Liturgia, portanto, não é feita, propriamente, pelo homem. Ela é como algo, no qual o homem pode experimentar como que a Glória divina. A Missa antiga de São Gregório Magno é como que um presente do alto, e, na sua essência, sempre ficou inalterada, apesar de um processo histórico de crescimento.

É bem diferente, se conservo algo vivo num crescimento orgânico, ao qual devo servir e do que devo respeitar as leis inerentes à vida; ou se o considero como fabricado, que obedece às leis de uma máquina que posso montar e, em uma forma diferente, remontar. Hoje em dia existem tendências muito generalizadas que simplesmente praticam montagem e desmontagem da Liturgia, fazendo assim algo completamente incompatível ao espírito da Liturgia. Pelo contrário, na mentalidade de serviço ao que cresceu organicamente na fé de todos os séculos, deve-se trabalhar, e não na autonomia de quem pensa que saiba fazer as coisas melhor.”

 

“Estou convencido que a crise da Igreja, que presenciamos hoje, depende de grande parte da ruína da liturgia.”

 

Em 1997, o Cardeal Ratzinger falou estas palavras; já em 1984, ele tinha falado de um “processo progressivo de decadência” das nações cristãs do Ocidente. E o próprio Papa João Paulo II, em 2003, no fim do seu longo pontificado, lamentou a “apostasia silenciosa” da então Europa cristã. Essa apostasia silenciosa penetrou cada vez mais nos elementos humanos da Igreja, sobretudo após a abertura da Igreja para o mundo, programado pelo Concílio Vaticano II.

Antes do Concílio, o mundo se encontrava num processo acelerado de decadência e desintegração, contra o que os diversos Papas anteriores alertaram e advertiram. Dentro da Igreja, porém, a fé ainda estava forte, a liturgia intacta, as vocações numerosas e as famílias ricas em filhos. Aí o Concílio veio proclamar a grande e essencial “abertura da Igreja para o mundo”. Mudou a direção de referencia do vertical e sobrenatural (de Deus) para o horizontal, o natural e o terrestre (para o Homem no seu mundo de experiência cotidiana).

Lemos no já citado livro do Mons. Gherardini (pág. 135):

“... o Vaticano II tinha interesse não na discussão, nem no aprofundamento da verdade revelada e já definida..., mas na proclamação de algo absolutamente novo... A novidade proposta... era o homem, sua dignidade, a unidade do gênero humano. ...a tal finalidade era submetida até mesmo a Palavra de Deus, que não repetia mais o bem conhecido ’convertei-vos e crede no Evangelho’..., mas ‘tomem consciência da sua grandeza e empenhem-se na paz universal’.”

Por ocasião da ‘conquista da lua’, em 1969, o Papa Paulo VI exclamou, nessa empresa se nos revela o homem “como um gigante, se nos revela como divino, não em si, mas na sua origem e no seu destino. Honra ao homem, honra à sua dignidade, ao seu espírito, à sua vida!”.

Paulo VI se sentiu em direito de cantar um hino ao ‘novo humanismo’ e de confessar ao mundo: “também nós – e nós mais do que ninguém somos cultores do homem”. (A Igreja, os cristãos não são ‘cultores’ de Deus no mundo, da Santíssima Trindade, de nosso divino Redentor Jesus Cristo?)

Em espantosamente poucos anos, após a introdução dessa nova orientação teológico-litúrgico-pastoral os efeitos indicaram um desastre geral de toda a Igreja: Na França, a participação na Missa dominical tinha diminuído por 43%; na Holanda por 50%; na Alemanha por 62%. E em somente sete anos após a introdução da Missa Nova, o número dos sacerdotes no mundo inteiro se tinha reduzido de 413.438 a 243.307. As vocações diminuíram drasticamente. (Na Arquidiocese de Munique-Frisinga, na Alemanha, em 1951, foram ordinados 38 sacerdotes, entre eles o Dr. Joseph Ratzinger; em 1969, foram 15; em 1973 foram 4; em 1981 foram 5 etc.)

Em 1965, tinha 329.799 religiosos, no mundo inteiro, que foram reduzindo-se por uma terceira parte a um número de 214.913, em 2005.

De 1939 a 1963, 563 sacerdotes pediam dispensa do celibato; de 1963 a 1970, foram 3335 padres que ‘entregaram a batina’. A esse respeito um teólogo disse: “Pela primeira vez, na história, se viu dentro de poucos anos, o abandono do sacerdócio por parte de milhares de padres”.

Quinze anos depois do Concílio e no segundo ano do pontificado de João Paulo II, o Papa pediu perdão pela perda repentina e dramática a fé e do respeito pela Eucaristia: “Peço ao Senhor Jesus que, futuramente, no nosso comportamento para com esse mistério sagrado, consigamos evitar tudo quanto, de modo qualquer, possa diminuir ou confundir junto aos nossos fieis o sentimento de respeito e de amor”.

Hoje em dia, a grande maioria do povo cristão não acredita mais na presença real de Cristo na Santíssima Eucaristia. Recebe-se o Corpo de Cristo na mão, por ministros leigos não ordenados e se trata a Santa Comunhão como pão comum. Os efeitos da ruína da liturgia atingiram todos os níveis: Poucos dias antes da sua elevação ao Trono de São Pedro, o Cardeal Ratzinger tinha dito: “Quanta sujeira existe na Igreja e, exatamente, também entre aqueles que, pelo sacerdócio, deviam pertencer totalmente a Ele!”

Essa sujeira referia-se ao número incrível de escândalos morais. Crimes indizíveis de sacerdotes, que no mundo inteiro vieram à tona, foram a colheita de décadas de ‘renovação conciliar’ nos seminários. (O fiel católico se vendo envergonhado de tal clero e episcopado, e vendo os frutos do Concílio, das reformas, da liturgia nova, encontra, portanto, um refúgio de segurança na fé, de paz e de alegria de ser católico, na liturgia tradicional, não tocada pelo modernismo. – Tem uma publicação recente com até o título: “Como assistir a Missa Nova e não perder a fé”).

“A mensagem do Concílio Vaticano II foi percebido, sobretudo, pela reforma litúrgica”, disse João Paulo II.

E remata Paulo VI (+ 1978): “Se acreditava, depois do Concílio teria chegado um dia ensolarado para a história da Igreja, Chegou, porém, um dia nublado, um dia de tempestade, de escuridão, de procura e de insegurança.”

“Não foi um inimigo” – escreveu, naquele tempo, um bispo americano a Paulo VI – “que conseguiu tamanhas devastações, mas as fizeram os próprios filhos da Igreja”.

Em 2002, o Cardeal Ratzinger escreveu que o resultado da Reforma litúrgica “na sua plena realização não deu vida nova, mas foi uma devastação”, que teve como conseqüência a atual crise da Igreja...

 

A secularização da Liturgia

 

A dupla finalidade da Sagrada Liturgia é

o culto público de Deus uno e trino;

e a santificação dos fiéis.

É evidente que a ‘santificação dos fiéis’ é obtida pelo ‘culto público de Deus e em harmonia com ele, por conseguinte, não separadamente, não competitivamente, não em autonomia e não univocamente, identificando um com o outro. No entanto, tal harmonia foi diminuída quando a reforma litúrgica inseriu a perspectiva antropocêntrica, em função do homem; e é centro de referência seria menos Deus e mais o homem. (Para falar com São João Batista, no sentido mudado: Ele, Deus, deve diminuir, eu, ‘o Homem’, deve crescer).

A substituição do latim pela língua vernácula, pretendeu privilegiar o homem, não mais elevando-o mediante o sagrado rito ao nível do divino, mas rebaixando os ritos ao nível do homem, de sua condição historicamente delimitada, e pautando-o segundo um mutável padrão de uma cultura média, a qual, aliás, é destinada a permanecer sempre a cultura do momento, que exige constante atualização.

A questão da supressão do latim foi uma grande perda, não devida ao Vaticano II que havia disposto exatamente o contrário, mas a sua prejudicial abertura a tudo aquilo que fosse – ou parecesse – uma exigência do homem.

O povo pode até não entender nem o som, nem o sentido das palavras; ele, porém, diante da ação sagrada, e envolvido espiritualmente por ela – escreveu Romano Guardini – contempla e adora.

Um dos absurdos antilitúrgicos realizados em nome do Vaticano II foi aquela do altar voltado para o povo. Cometeu-se um gravíssimo erro de avaliação e de interpretação do conceito litúrgico de altar. Ele foi cometido em obséquio ao exagerado culto ao homem, e em favor dos princípios da comunicação social, em desprezo das razões teológicas que colocavam o celebrante de frente para Deus em atitude de adoração, de agradecimento e de súplica diante do Senhor.

Em 1993, a Congregação do Culto Divino da Santa Sé declarou explicitamente que a expressão “celebrar voltado para o povo”, não tem nenhum sentido teológico.

 

Resume Mons. Brunero Gherardini – de que este capítulo é uma transcrição (págs. 139s; 143s; 70): “O novo rito da santa Missa colocava à surdina a natureza sacrifical, tornava-a funcional ao reunir-se o Povo de Deus em assembléia e reduzia o celebrante à função de presidente da própria assembléia. Toda a vida paroquial era planejada para uma experiência de comuns interesses humanitários e a assembléia eucarística ganhava o sentido de um simples encontro convivial.

 

As cinco chagas no corpo litúrgico da Igreja

 

Numa palestra, proferida no mês de janeiro passado, em Paris, o Bispo Athanasius Schneider indicou cinco aspectos concretos na maneira de uma moda que não presta, como hoje em dia se celebra a santa Missa na ‘forma ordinária’ (Missa Nova), que constituem uma verdadeira ruptura com a constante praxe litúrgica de mais de mil anos da Igreja.

“Se trata de cinco chagas, porque constituem uma ruptura gigantesca com o passado, justamente porque expressam menos o caráter sacrifical da santa Missa que é central e essencial, e reforçam o caráter de ceia; diminuem os sinais exteriores de adoração divina, do caráter de mistério, do celestial e do eterno.”

 

Farei referência a três dessas ‘cinco chagas’, ao altar virado para o povo, de que já falamos, à comunhão recebida de pé e na mão, e à abolição total do uso do latim. Continua, pois, dizendo o Bispo A. Schneider:

“A mais significativa chaga é a celebração do sacrifício da Missa, celebrando o sacerdote com o rosto virado para o povo, e até durante a Oração eucarística e a Consagração que é o momento mais sagrado e sublime da adoração divina. Tal forma exterior corresponde mais a uma atitude de palestra, de aula, e de ceia. É uma forma de um círculo fechado em si. Essa forma não corresponde à natureza do momento de oração e ainda menos de adoração. O Concílio Vaticano II nem de longe queria tal forma, e os Papas pós-conciliares nunca a recomendaram doutrinalmente. No prefácio do primeiro volume das suas ‘Obras Completas’, o Papa Bento XVI escreveu: ‘A idéia que sacerdote e povo ficam de frente olhando-se mutuamente... é completamente alheia à Cristandade antiga. É claro que sacerdote e povo não oravam um para o outro, mas para o único Senhor. Por isso, orando, olham todos na mesma direção: ou para o oriente como símbolo cósmico para o Senhor que está por vir ou, onde não era possível, para uma representação pintada de Cristo na apside, ou um Crucifixo, ou simplesmente juntos para cima.’

A forma de celebração na qual todos olham na mesma direção (conversi ad orientem, ad Crucem, ad Dominum) está indicada até nas rubricas da Missa Nova (cf. Ordo Missae, n. 25, n. 133, n.134).

A segunda chaga é a Comunhão na mão. Essa forma de receber a Santa Comunhão não foi mencionada com palavra alguma pelos Padres do Concílio. Em desobediência à Santa Sé, alguns bispos a introduziram, apesar de uma votação negativa de uma maioria do episcopado mundial, em 1968. Pressionado, o Papa Paulo VI a legitimou posteriormente sob certas condições.

Desde 2008, o Papa Bento XVI dá a Santa Comunhão exclusivamente no modo em que os fiéis a recebem da sua mão, de joelhos e na boca, e isso não só em Roma como também em todas as Igrejas locais que ele visita.  Com isso o Santo Padre está dando um exemplo claro do Magistério litúrgico prático.

... A quarta chaga é o desaparecimento total da língua latina em praticamente todas as celebrações da Missa na ‘forma ordinária’ em todo o orbe católico. É uma contradição direta às resoluções do Concílio Vaticano II”.

 

Com o ‘Motu proprio’ Summorum Pontificum o Papa Bento XVI determinou que as duas formas do Rito romano devem ser respeitadas e tratadas com a mesma honra, porque a Igreja antes e depois do Concílio é a mesma.

A situação de uma ruptura tão evidente numa manifestação muito importante na vida da Igreja, clama por uma cura. Uma nova evangelização precisa primeiro de um processo sério de conversão de dentro da Igreja. Falta também liturgicamente a necessária ‘conversio ad Dominum’. Porque durante a Liturgia se trata o Cristo eucarístico de tal modo como se não fosse Deus; não se Lhe oferece claros sinais exteriores de adoração que é devida a Deus; os fiéis recebem a santa Comunhão sem se ajoelhar, e até a tratam como alimento comum, pegando-a com os dedos e colocando-a a si mesmo na boca.

Condições necessárias para uma nova evangelização que dá fruto, seria o seguinte testemunho da Igreja inteira no nível do culto público e litúrgico: No mundo inteiro, também na Missa Nova, a celebração ‘versus Deum’ e a Comunhão de joelhos e na boca.

E o Bispo conclui: “Ninguém consegue evangelizar, se antes não adora, até, se não adora continuamente, dando uma preferência verdadeira a Deus, ao Cristo eucarístico no modo da celebração e na sua vida toda. De fato, para falar com o Cardeal Joseph Ratzinger: ‘Na maneira de como se trata a Liturgia, decide-se a sorte da Fé e da Igreja.’ ”

 

A reforma da Reforma

 

Para entender bem as intenções do Papa, devemos recorrer ao que ele disse, faz anos, como Cardeal. Aí citamos novamente daquela entrevista do ano 2000:

“A ‘reforma da Reforma’ será, antes de tudo, um processo educativo que dá um pára ao pisar à Liturgia, com idéias pessoais inventadas. Para a reta formação de consciência em questões litúrgicas também é importante que, deve finalmente acabar a proscrição da forma de Liturgia, válida até 1970...

Quando virá essa reforma litúrgica? Tudo dependerá de um impulso de pessoas de uma fé viva e de uma verdadeira consciência litúrgica. Dependerá da existência de lugares exemplares, onde se celebra a Sagrada Liturgia realmente de modo adequado e onde se pode receber uma experiência viva do que Liturgia de verdade é.

E se a partir daí, vindo de dentro, se formar um tipo de movimento que não é simplesmente imposto de cima, então acontecerá. E acredito que em relação a isso, na nova geração já existe um desabrochar neste sentido.”

“Uma nova Liturgia Divina, para o futuro do povo fiel e da Igreja, exige de nos uma atitude de receber novamente as formas dadas e presenteadas; e exige de penetrar nelas interior e atentamente. É maravilhoso aprender aos poucos como cresceram os costumes litúrgicos, compreender as estruturas do Ano Litúrgico, do Missal Romano, e muito mais. Se trata de penetrar verdadeiramente nessa riqueza de que se formou e cresceu, e assim justamente também penetrar na magnificência que nela se nos oferece como presente de Deus.

Precisamos, pois, aprender de novo o espírito da escuta – ‘escuta, meu filho’ – diz São Bento. Devemo-nos entender menos como produtores de algo e mais como receptores.”

 

“Chegou o tempo para nós de trabalhar”

 

A seguinte carta do Cardeal Ranjith mostra o rumo da Igreja neste pontificado do Papa Bento XVI:

 

Carta do Cardeal

Alberto Malcolm Ranjith
à Federação Internacional
UNA VOCE,
para a conservação da tradição litúrgica num congresso em Roma, em Novembro de 2011

 

“Sobretudo quero lhes expressar a minha gratidão para o seu fervor e entusiasmo com que propagam o interesse na restauração da verdadeira Tradição litúrgica da Igreja. A Liturgia pois, aprofunda a fé e impulsiona para sua aplicação heróica na vida. A Liturgia é um meio pelo qual as pessoas são elevadas à altura da transcendência e do eterno. E aí se realiza o encontro entre Deus e o homem.

Por causa disso, a Liturgia jamais pode ser algo criado pelo próprio homem: quando celebramos Liturgia como nós queremos, dando nós mesmos as regras para ela, então corremos o perigo de novamente fazer o Bezerro de Ouro de Aarão.

Devemos sempre de novo dizer que a Liturgia é a participação naquilo que o próprio Deus faz. Caso contrário corremos perigo de cometer idolatria! A linguagem simbólica da Liturgia nos ajuda a nos elevar acima do humano até ao divino.

É a minha firme convicção, que, em relação a isso a Ordem Antiga (= Missa “tradicional”) representa em grande medida e de modo excelente o chamado misterioso e transcendente de um encontro litúrgico com Deus.

Portanto, chegou o tempo de não somente renovar o conteúdo da liturgia reformada, através de mudanças radicais, mas também, de cada vez mais encorajar a retornar à Ordem Antiga que é um caminho para uma renovação verdadeira da Igreja, que os padres do Concílio Vaticano II desejaram.

A leitura cuidadosa da Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia mostra que jamais corresponderam à vontade dos padres conciliares as mudanças precipitadas que depois (do Concílio) foram introduzidas na Liturgia.

Por isso chegou o tempo para nós de trabalhar corajosamente para uma reforma verdadeira da Reforma e também para um retorno para a verdadeira Liturgia da Igreja que se desenvolveu de modo contínuo na sua história de 2000 anos.

Eu espero e penso que isso aconteça.

Que Deus lhes recompense os seus esforços com sucesso.”

 

 

 

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