TODO VALE SERÁ ATERRADO

(Lc 3, 1-6)

 

1 No ano décimo quinto do império de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judéia, Herodes tetrarca da Galiléia, seu irmão Filipe tetrarca da Ituréia e da Traconítide, Lisânias tetrarca de Abilene, 2 sendo Sumo Sacerdote Anás, e Caifás, a palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto. 3 E ele percorreu toda a região do Jordão, proclamando um batismo de arrependimento para a remissão dos pecados, 4 conforme está escrito no livro das palavras do profeta Isaías: Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, tornai retas suas veredas; 5 todo vale será aterrado, toda montanha ou colina será abaixada; as vias sinuosas se transformarão em retas e os caminhos acidentados serão nivelados. 6 E toda a carne verá a salvação de Deus”.

 

Em Lc 3, 1-3 diz: “No ano décimo quinto do império de Tibério César, quando Pôncio Pilatos era governador da Judéia, Herodes tetrarca da Galiléia, seu irmão Filipe tetrarca da Ituréia e da Traconítide, Lisânias tetrarca de Abilene, sendo Sumo Sacerdote Anás, e Caifás, a palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto. E ele percorreu toda a região do Jordão, proclamando um batismo de arrependimento para a remissão dos pecados”.

 

V. 1. O Evangelho situa com precisão no tempo e no espaço a aparição pública de João Batista, o Precursor de Cristo. Tibério César foi o segundo imperador romano, e o ano décimo quinto do seu Império corresponde ao ano 27 ou ao 29 da nossa era, segundo dois cômputos de tempo possíveis.

Pôncio Pilatos foi procurador ou praefectus da Judeia desde o ano 26 ao 36 da nossa era. A sua jurisdição estendia-se também à Samaria e à Idumeia.

Este Herodes Antipas, filho de Herodes o Grande, a quem sucedeu em parte do seu território, não com o título de rei, mas de tetrarca. Esta última denominação utilizava-se para assinalar uma autoridade subordinada ao poder romano. Herodes Antipas morreu no ano 39 da nossa era e foi quem mandou degolar São João Batista.

Filipe, também filho de Herodes o Grande e irmão de Herodes Antipas, foi tetrarca das regiões indicadas no texto sagrado até ao ano 34 d.C. Casou com Herodíade, de quem se fala em Mc 6, 17-19.

V. 2. O sumo sacerdote era então Caifás, que exerceu o seu pontificado desde o ano 18 ao 36 d.C. Anás, seu sogro, que tinha sido deposto no ano 15 pela autoridade romana, conservava ainda tal influência que de fato era considerado como cabeça da política e da religião judaicas. Por isso, quando prendem Cristo, o primeiro interrogatório faz-se diante de Anás (Jo 18, 12-24). O texto dá-lhe, pois, com grande propriedade o título de sumo sacerdote.

VV. 2-3. São Lucas introduz de forma solene a figura de João Batista, de quem os Evangelhos falam em repetidas ocasiões. Quando Cristo elogia o Batista (cfr Mt 11, 7-9), realça com clareza a sua vontade firme e o seu empenho em cumprir a missão que Deus lhe tinha confiado. Notas características da personalidade de João são a humildade, a austeridade, a coragem e o espírito de oração. Levar a cabo com perfeição uma missão tão excelsa – ser o Precursor do Messias – merece de Cristo singular louvor: João Batista é o maior entre os nascidos de mulher (cfr Mt 11, 11); “o archote que ardia e alumiava” (Jo 5, 35). Ardia pelo seu amor, brilhava pelo seu testemunho. Cristo “era a luz” (Jo 1, 9); o Batista “veio... para dar testemunho da luz, para que todos cressem por ele” (Jo 1, 7).

João Batista apresenta-se a pregar a necessidade de fazer penitência. Prepara “o caminho do Senhor”. É o pregoeiro da Salvação; mas simples pregoeiro, simples voz que anuncia. O Batista proclama: “Vem (...) aquele a quem eu não sou digno de desatar a correia das sandálias”  (Jo 1, 27). Por isso O assinala: “Eis o Cordeiro de Deus” (Jo 1, 29-36), eis aí o “Filho de Deus” (Jo 1, 34); e vê com gozo que os seus próprios discípulos vão com Cristo (Jo 1, 37). “É necessário que Ele cresça – diz – e que eu diminua” (Jo 3, 30).

 

Em Lc 3, 4-6 diz: “Conforme está escrito no livro das palavras do profeta Isaías: Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, tornai retas suas veredas; todo vale será aterrado, toda montanha ou colina será abaixada; as vias sinuosas se transformarão em retas e os caminhos acidentados serão nivelados. E toda a carne verá a salvação de Deus”.

 

João Paulo II comenta: “Preparai os caminhos do Senhor. Endireitar as suas sendas. Toda a humanidade verá a salvação do nosso Deus” (Mt 3, 3; Is 40,3).

É possível ver a salvação? O que quer dizer a salvação? O que significa ser salvo? Quer dizer: ser arrancado ao mal, ser libertado... Significa... ser abraçado pelo bem... Significa... participação irreversível no Bem, inalterável e definitiva...

“Toda a humanidade verá a salvação de Deus”... O Advento fala com efeito da salvação que vem de Deus ao homem: de Deus somente...

Qual a credibilidade dessas palavras, hoje?

O homem tanto hoje como antigamente, sabe por experiência que sua existência neste mundo visível não o faz participar no bem inalterável e definitivo...

O conjunto dos bens existentes no mundo... mesmo que se tomem todos juntos, não são capazes de “salvar” o homem, ou seja, livrá-lo de todo mal.

Aliás, o homem moderno, na dimensão cósmica de sua existência sente a ameaça de toda a sorte de males...

Mas este é um argumento exclusivamente negativo... desse argumento não se utiliza tampouco o Profeta Isaías. Diz precisamente: “Deus vos salvarᔓToda a humanidade verá a salvação de Deus”...

Deus afirmou que quer salvar a humanidade. E o disse por meio de Isaías e de todos os profetas. Disse-o também por Jesus Cristo. Também o diz constantemente através da Igreja. E o diz enfim, de modo muito particular, no Advento.

“Preparai o caminho do Senhor” (Is 40, 3). Eu peço a vocês que acolham este convite com toda a simplicidade da fé cristã. O homem prepara o caminho do Senhor e endireita as suas veredas:

- quando examina a própria consciência,

- quando perscruta as suas obras, palavras e pensamentos,

- quando não hesita em confessar os seus pecados no Sacramento da Penitência, arrependendo-se e fazendo o propósito de não pecar mais. Isto significa “endireitar as veredas”.

Isto significa também receber a boa nova da salvação. Cada um de nós pode “ver a salvação de Deus” no próprio coração e em sua consciência, participando no mistério da remissão dos pecados, como em Seu próprio Advento. Deste modo professa que Cristo é “o Cordeiro de Deus”, Aquele que tira os pecados do mundo.

 

O Pe. Gabriel de Santa Maria Madalena escreve: “Preparai os caminhos do Senhor. Endireitai as suas veredas” (Lc 3, 4). Haviam falado os profetas de um caminho a ser traçado no deserto, para facilitar a volta dos exilados. Mas quando o Batista, retomando a pregação deles, apresenta-se às margens do Jordão como ‘voz do que clama no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas’ (Lc 3, 4), já não exorta a construir caminhos materiais, porém, a preparar os corações para acolher o Messias já chegado e que está para iniciar a sua obra. Por isso ia João ‘Pregando um batismo de penitência para a remissão dos pecados’ (Lc 3, 3). Converter-se quer dizer purificar-se do pecado, endireitar as tortuosidades do coração e da mente, aplainar os desmoronamentos da inconstância e do capricho, abater as pretensões do orgulho, vencer as resistências do egoísmo, destruir as asperezas nas relações com o próximo, fazer enfim da própria vida um caminho reto para Deus, sem tortuosidades... Programa que não se esgota no Advento, mas que em cada Advento devemos cumprir de modo novo, mais profundo, a fim de preparar-nos à vinda do Salvador. Assim ‘toda carne (isto é, todos os homens) verá a salvação de Deus’ (Lc 3, 6)”.

 

Dom Duarte Leopoldo comenta: “Assim, pois, afirmava o precursor, referindo-se ao profeta Isaías, que os vales da desconfiança seriam cheios e fecundados pela vinda do Messias;  os montes da soberba e os outeiros da vaidade seriam abatidos e arrasados; os caminhos tortuosos da hipocrisia se tornariam direitos, e os que fossem ásperos pelos ódios e enganos, se fariam planos e suaves, porque todos os homens (toda carne) veriam o Salvador”.

 

I. Aplanai os montes

 

Os cumes a derrubar são os cumes eriçados e gélidos do ódio e rancor.

No Evangelho é dito: “Por isto vos reconhecerei como meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 8, 35). Eis que Jesus vem no Santo Natal, e olha os corações que são seus para entrar neles. Mas onde há rancor, desejo de vingança, ódio... Ele não os reconhece como seus, e aí não entra.

No Evangelho é dito: “Se estiveres para te apresentar ao altar e te lembrares de que há uma rusga entre ti e teu irmão, volta para trás, e vai primeiro reconciliar-te com ele” (Mt 5, 23-24).

“Já perdoei uma vez e duas – acusar-se-á alguém – porém, ele depois me fez pior”. Também este caso é contemplado no Evangelho: “Se teu irmão prevaricou contra ti, perdoa-lhe. E, mesmo quando prevaricasse setes vezes ao dia, se sete vezes ao dia ele viesse pedir-te perdão, sempre deverias perdoar-lhe” (Lc 17, 3-4).

Edições Theologica comenta: “Perante a vinda iminente do Senhor,   os homens devem dispor-se interiormente, fazer penitência dos seus pecados, retificar a sua vida para receber a graça especial divina que traz o Messias. Tudo isto significa esse aplanar os montes, retificar e suavizar os caminhos de que fala o Batista. A Igreja na sua liturgia do Advento anuncia-nos todos os anos a vinda de Jesus Cristo, Salvador nosso, e exorta cada cristão a essa purificação da sua alma mediante uma renovada conversão interior”.

 

Aplanai as colinas da soberba com uma vida humilde

 

João Damasceno, o alto funcionário do imperador bizantino em Damasco, na plenitude das honrarias mundanas e das forças retirou-se da vida galante e rumorosa da corte para a solitária paz do deserto: para o claustro de São Sabas.

Lá, diante de Deus e de uma voragem rochosa cujo revérbero ofendia os olhos, começou ele a rude escola da perfeição. Nas horas livres da oração, aquele que tinha a elocução de ouro e escrevera admiráveis apologias da fé, tinha de tecer cestos para ganhar o alimento cotidiano. Ora, justamente a João coube, uma vez, levar ao mercado semelhantes cestos: os seus e os dos outros monges. E para que maior lhe fosse a humilhação, o costumeiro preço das alcofas foi aumentado do dobro.

Como podia ele, no seu pobre hábito monacal, atravessar aquelas mesmas vias pelas quais pouco tempo antes passara como alto magistrado estatal, por entre as curvaturas de todos? Como podia mostrar-se aos seus nobres amigos tornado quase um escravo que vende ignóbil mercadoria? Sentia todo o seu sangue fruir-lhe nas veias e a sua alma revoltar-se. Veio-lhe à mente atirar a carga na estrada, entre Damasco e o deserto, e voltar a ser como era antes: honrado, rico e feliz.

Mas uma voz lhe disse no fundo do coração: “João! Antes de ti, não deixei eu o palácio real do céu pelo estábulo dos jumentos? Antes de ti, eu, inocente, não me confundi entre os pecadores, não tomei sobre mim a sua vergonha e o seu suplício? Por que então terá feito isto o Filho de Deus, se os homens não quiserem imitá-lo?”

João compreendeu e entrou em Damasco com rosto alegre. Girou longamente pela cidade; alguns o olhavam maliciosamente, outros se aproximavam para comprar, mas ante a declaração do preço, lançavam sobre ele um sopro de mofa. Finalmente, ele foi reconhecido por um seu antigo servo, que, movido de compaixão pelo patrão de outrora, sem se dar a conhecer comprou-lhe os cestos ao seu preço pedido. À noite, João Damasceno voltou ao claustro mais  santo.

Quanta soberba há também na nossa vida! A maior parte das nossas culpas são de soberba.

 

1. Somos soberbos com Deus

 

Todo dia recebemos de Deus infinitos benefícios: Ele nos conserva, dá-nos as forças e a inteligência para o trabalho, abençoa os nossos negócios e as nossas famílias, não nos deixa faltar o pão, ajuda-nos nas tentações e santifica-nos com os sacramentos. E, no entanto, nós nunca ou quase nunca lhe agradecemos; antes, acreditamos que todos esses benefícios não nos vêm senão da nossa solércia diligência e habilidade. Isto é soberba.

Quando nos sobrevêm doenças, ou desgraças nos negócios, ou outras dores,  não fazemos senão lamentar-nos da injustiça de Deus a nosso respeito, senão imprecar, senão estrilar. E não pensamos em que somos pecadores, em que mereceríamos bem outros e mais terríveis castigos, e não pensamos em que somos como cavalos manhosos que precisam sentir a chibata para se manterem no caminho bom. Isto é flor de soberba.

Não é soberba o que impele muitos católicos a criticar até a providência? “Por que razão Deus permite assim?”... seria muito melhor se Ele não tivesse permitido estas coisas. Mas se Ele existe realmente, dê sinal de vida...” Ingênua imbecilidade se esse enxerga apenas um palmo adiante do nariz e pretende ver melhor do que Deus, que conhece o passado, o presente e o futuro.

 

2. Somos soberbos com o próximo

 

Se recebemos uma ofensa, mesmo pequena, incubamo-la em nós por meses e meses, engrossamo-la pela fantasia, aguardamos com raiva e com alegria o momento de uma bela vingança. Quem julgamos, para fazermos pagar tão caras as ofensas que nos fazem?

Se nos sucede fazermos um favor, se o outro se esquece dele depressa, logo lho lançamos em rosto. Entretanto, dos obséquios, e não poucos e não pequenos, que recebemos, logo perdemos toda gratidão. Parece-nos, em suma, que todos devem inclinar-se a nós, e nós a ninguém. Isto é soberba!

Que coisa é senão soberba esse frenesi de se colocar na frente de todos; esse pretender ter sempre razão, tanto com os inferiores como com os superiores? Daí as desobediências, as discórdias no seio das famílias e os rancores.

Jesus vem no Santo Natal; aplanai as colinas! Façamos, também nós, como São João Damasceno, por amor de Deus, que se aniquilou fazendo-se homem, sufoquemos a nossa soberba.

Diz uma lenda que na noite em que Jesus nasceu, em Roma, uma fonte cessou de dar água rumorosamente, para dar suavemente óleo puríssimo. Assim deve suceder conosco também: cessemos uma vida feita de obras de soberba, e comecemos uma vida humilde e sincera.

Oração e confiança com o Senhor, esquecimento de toda ofensa, em paz com todos, compadecer-nos de todos, amar-nos: eis a nossa vida nova.

 

II. Enchei os vales

 

Os vales a encher, pantanosos e maláricos, de onde se exala um ar gerador de febres, são os dos prazeres sensuais, dos afetos mórbidos e dos desejos impuros.

Para nascer, o Filho de Deus não se importou nem com riquezas, nem com casa, nem com berço... De uma só coisa não pôde dispensar, sendo Deus: da pureza. Nasceu de uma Virgem.

Felizes aqueles que nestes dias forem achados com o coração puro: a graça do Santo Natal inundá-los-á, eles sentirão a beleza e o fascínio desta virtude que nos torna capazes de ver a Deus, gozarão a paz prometida pelos Anjos aos homens de boa vontade. Boa vontade de mortificar os sentidos e o coração, porque Deus não pode nascer “onde os demônios dançam e as sereias fazem ninho” (São Jerônimo, P. L., XXII, 398).

 

Preenchei os vales do pecado com a graça

 

A primeira guerra mundial ainda não findara; mas, apenas as armas alemãs foram obrigadas a retirar-se da Bélgica invadida, o rei Alberto quis ali reentrar.

Mas por qual estrada voltaria ao seu reino da Bélgica, se não havia mais estradas? As pontes, bombardeadas e desmanteladas, eram enormes montes de escombros. Carros escangalhados, carretas de canhões despedaçadas, capacetes de aço espalhados, sapatos de couro e de ferro abandonados na lama, carniças de cavalos e de mulas, e cadáveres humanos insepultos, atulhavam a planície. Ao longo das encostas abriam-se as trincheiras cavadas na pedra e na argila avermelhada, ainda com os sinais de um cruel padecer; nas encruzilhadas, as estradas afundavam-se numa cova aberta pelas minas; as casas destelhadas e derrocadas levantavam ao céu, lastimavelmente, as paredes recortadas e fendidas.

Não importa: o rei Alberto quer reentrar logo. Eis então que grupos de homens, de mulheres e de crianças empregam-se em preparar a estrada, em aplainar toda aspereza, em preencher com os escombros toda vala de trincheira, toda profundidade de mina. “O Rei vem!” E este grito revigorava aquela pobre gente, infundia-lhe ainda energia nos seus membros alquebrados, havia esperança nos seus corações desalentados. “O Rei vem!”

E o rei Alberto passou, chorando, por aquelas estradas refeitas com ruínas e com sangue. E, quando as mulheres lhe apontavam as casas ruídas, ele dizia: “Não temais, eu volto: tornaremos a edificá-las mais belas”.

E, quando uma criança agitava para ele os seus braços decepados pela barbárie do inimigo, ele dizia: “Não temais, eu volto, e os meus braços podem trabalhar para ti: não te faltará o pão”.

Católico, talvez que, se considerarmos neste instante o nosso coração, ele se assemelhe à ruína da Bélgica invadida. Sobre ele passou a áspera guerra das paixões: os negros instintos da carne predominaram, sufocaram e deceparam as boas inspirações; o demônio, com as suas lábias minou a nossa alma, despedaçando-a aqui e acolá; os pecados, quais obuses desastrosos, arruinaram-nos, e derrubaram tudo o que com paciência e sacrifício havíamos edificado por dias, meses e anos. Os nossos méritos, o fruto de tantas preces, a graça, beleza suprema da alma, tudo, tudo perdemos, e agora não nos resta senão a vergonha de havermos cedido ao mundo, à carne, ao demônio; e agora não nos resta senão a nossa miseranda ruína.

Mas eis que o Natal está próximo, Jesus volta: quer tornar a entrar em nossa alma, neste reino que é seu, neste reino de que o expulsamos para dar lugar a Satanás. Imitemos, também nós, os doloridos filhos da Bélgica: preparemos-Lhe a estrada do nosso coração, passando pela qual possa Ele voltar a nós. Preenchei os vales!

É necessária uma boa confissão antes do Santo Natal, a qual nos torne a encher de graça, a qual varra as carniças e os escombros do pecado. Reentrando em nós, olhando a ruína da nossa alma, Jesus chorará; mas Ele é tão bom, que terá para nós palavras de consolação e de coragem. Reedificará o que foi destruído, com seus braços potentíssimos ajudar-nos-á a lutar contra o demônio e  nunca mais nos deixarmos enganar e vencer.

Jesus vem: preenchei os vales!

Diz uma lenda que na noite em que Cristo nasceu, em Roma, espontaneamente tombou a estátua de Rômulo e esfacelou-se; e todos os outros ídolos em todos os outros lugares caíram.

Católicos, Cristo está para nascer; mediante uma sincera Confissão abatamos e pulverizemos, com verdadeira dor, a estátua dos nossos pecados e das nossas paixões. Que a noite santa em que celebramos a natividade do eterno Filho de Deus não ache de pé e dominante em nenhum de nós a imagem do Demônio!

 

III. Retificar as sendas tortuosas

 

As sendas tortuosas são todas aquelas trilhas cobertas de fraudes, de furtos mais ou menos pequenos, de logros, de mentiras, de subterfúgios... dos quais muitas vezes se deixa manchar até mesmo o homem honesto.

“Isso são ninharias, é um dano que ninguém percebe!” “Aquele que é fiel nas pequenas coisas também é fiel nas grandes, e aquele que é infiel nas pequenas também é infiel nas grandes” (Lc 16, 10).

“Todos fazem assim”. Contudo, desagradar-vos-ia se soubesse que também vós fazeis como todos.

E do Senhor, que o sabe, não fazeis caso? Não temeis a sua justiça? São João clama ainda no deserto: “Ah! Gente tortuosa como as víboras, quem vos ensinará a fugir da ira vindoura?” Vem o Senhor com a peneira e separará nitidamente o grão da palha.

Endireitai as sendas do vosso trabalho e do vosso comércio.

 

A. Endireitai a via má: tirar o pecado

 

1.  Em vossa casa, nestes dias, tudo se torna nítido e perfumado: as paredes são caiadas, o pavimento é varrido e toda teia de aranha é tirada. Até mesmo a cozinha da pessoa mais pobre adorna-se com algum ramo de louro sempre verde, e com algum fruto colorido.

Por entre tanto brilho, somente a vossa alma permanecerá negra e suja de pecado? Entre tanto perfume, só a vossa alma, morta para a graça, exalará um fétido cadavérico? Não, católicos: inutilmente vos azafamais a limpar e a embelezar morada, quando não vos preocupeis de limpar e embelezar a vossa consciência!

2.  Em vossa casa nestes dias há muita abundância e um luxo discreto: cada um se proporciona roupas novas ou ao menos bem limpas; adquirem-se carnes e viandas deliciosas, prepara-se um vinho mais velho e mais generoso, compram-se doces não costumados. Mas, dizei, de que vale tudo isto quando a alma, que de nós é a parte mais preciosa, morre de fome e se desespera pela sede?

Católicos, não sentis dentro de vós vossa alma chorar longamente e soluçar lastimavelmente porque tem fome e tem sede do seu Deus, e vós lho negais cruelmente, e lho negais mesmo nestes dias de festa, quando nada recusais ao vosso corpo? Não católicos; não sejais maus com vossa alma que é tão preciosa e imortal.

3. Em vossa casa, nestes dias, há uma alegria. Os afãs desta vida parecem mais leves, todo trabalho parece menos pesado; há no ar uma alegria difusa que se respira com suave prazer. Felizes, pois, as famílias onde há crianças! Elas contam os dias que nos separam da grande solenidade, rezam com mais inocência, esperam pelos presentes, sonhando com o Menino Divino que passa...

Somente o vosso coração, ó pecadores, há de ficar triste? Somente a vossa alma há de ficar amarga? Por que não vos tornais também alegres como vossas crianças? Que é que vos falta? A inocência perdida no pecado. Recordai a palavra do Evangelho: “Quem não se fizer como um destes pequeninos não entrará no reino dos céus”.

Não, católicos, não resistais mais ao amor de Deus: confessai-vos e recuperarei a vossa inocência, e vós também vos tornareis, como vossos filhos, alegres.

Talvez o demônio vos assuste com o temor das dificuldades que devereis afrontar para tirardes os vossos pecados, destruirdes os velhos hábitos e recomeçardes uma vida nova. Ouvi.

Sansão caminhava por uma estrada solitária e florestada: eis um rugido imprevisto, um lampejo avermelhado, um estrondo. Um grande leão pulara fora da selva sobre a estrada e rumava para ele tendo nos olhos o desejo da sua carne. Foi uma luta tremenda, corpo a corpo, entre homem e a fera.

Sansão estava inerme, mas, investido pelo Espírito, com suas mãos agarrou o leão pela goela e estrangulou-o como um cabrito. Banhado em suor, manchado de sangue, a longos passos ele prosseguiu, arfante, o seu caminho.

Mas, quando voltou por aquela estrada, achou a massa do leão... tinha na boca um doce e perfumado favo de mel (Jz 14, 8).

Assim sucede também convosco, ó pecadores: é dura a luta corpo a corpo com o Demônio e com as paixões, mas, depois de vencerdes, lá onde havia o pecado achareis o mel; e sentireis como é suave a vida quando se está na graça de Deus!

Ouvireis, também vós, como naquela noite o ouviram os pastores inocentes, passarem no céu de Belém as milícias angélicas cantando: “Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens de boa vontade”. E podereis dizer: “Anjos, também a mim um pouco de paz, porque agora eu também sou homem de boa vontade”.

 

B. Deixar a via escabrosa: purificar-se da tibieza

 

Agora eu falo aos que já estão na graça de Deus.

1. Que são esses pequenos ódios que nutris contra o vosso vizinho? Essa soberba com os de vossa casa, essa antipatia entre cunhados e cunhados, entre parentes e parentes, que é isso? É uma pedra aguda no caminho do vosso coração, a qual espetará os pés do Menino Celeste quando Ele vier.

Ora, pois, tirai-a fora generosamente. Que importa se a razão é nossa e a sem razão é dos outros, que importa se caberá a nós humilhar-nos, que importa se perdermos, quando o Senhor entra de bom grado em nós e nos cumula de graças eternas que valem milhares de vezes mais do que essas bagatelas que por seu amor sacrificamos?

2. Que são esses descuidos nas obras de piedade, essa omissão fácil do Santo Rosário ou do terço, essa negligência em mandar os filhos ao Catecismo, esse viver dias inteiros sem uma jaculatória e sem uma comunhão espiritual? Tudo isso são indícios de que o nosso coração está mais apegado ao mundo do que a Deus. É preciso liquidar com os maus apegos.

3. Que são essas negligências em repelir os maus pensamentos e em mortificar os olhos e a língua, essas intemperanças no beber, no comer e no fumar? São os espinhos da sensualidade que entulham a estrada pela qual Jesus deverá passar para chegar a nós. É preciso arrancá-los.

Nestes últimos dias que nos separam do Santo Natal, esforcemo-nos com entusiasmo por aplanar o caminho ao Senhor, tirando qualquer pequena escabrosidade ou mancha que possa ofender-Lhe o pé ou o olhar.

Santa Rosa de Lima afeiçoara-se com excessiva solicitude a um pezinho de manjericão. Ao alvorecer, apenas acordada, ela corria a expô-la, a fim de receber os primeiros raios de sol úmidos de orvalho. Quando o sol subia para o meio-dia, Rosa logo a retirava, para que o calor excessivo não a fizesse secar. Quando, ao por do sol, as sombras se alongavam, e de longe toda montanha se corava, Rosa tornava a expô-la, desejosa de que ela se restaurasse nas últimas tepidezes do dia; mas, ao sobrevir a noite, logo a escondia, para que as auras demasiado frias não a prejudicassem. Assim na igreja, e na cela, e no locutório, e no pátio, sempre estava com ela o pensamento da verde e bela plantinha.

Porém, uma manhã, acordando, achou a amada plantinha arrancada e atirada no chão, a murchar. Não pode conter o pranto, e exclamou: “Que mão foi tão invejosa para cortar a vida a uma planta inocente? Para que me afanei por salvá-la da geada e do calor, se depois ela devia acabar assim?”

Enquanto se lamentava, eis que lhe apareceu Jesus. Tinha os olhos tristes e estava sem sorriso: “Não foi a inveja, mas fui eu quem arranquei o teu manjericão com minha mão. Podia eu suportar que uma parte do amor e dos pensamentos que a mim são devidos fossem dedicados a uma criatura vil como era a tua planta?”

Católico, quando no Santo Natal Jesus vier ao nosso coração, que não esteja de olhos tristes, que não esteja sem sorriso! Que não ache dentro de nós pensamentos e afetos, inúteis e perigosos, para com as coisas e para com as pessoas deste mundo! Até mesmo um só pecado venial poderia causar-lhe tanto desprazer!

 

Pe. Divino Antônio Lopes FP.

Anápolis, 03 de dezembro de 2009

 

 

Bibliografia

 

Sagrada Escritura

São Jerônimo, Escritos

Pe. João Colombo, Pensamentos sobre os Evangelhos e sobre as Festas do Senhor e dos Santos

Edições Theologica

Dom Duarte Leopoldo, Concordância dos Santos Evangelhos

Pe. Gabriel de Santa Maria Madalena, Intimidade Divina

João Paulo II, Meditações e Orações

 

 

 
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Pe. Divino Antônio Lopes FP. “Todo vale será aterrado”
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Escritos

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