QUAL É O MAIOR MANDAMENTO DA LEI? (Mt 22, 34-40)
“34 Os fariseus, ouvindo que ele fechara a boca dos saduceus, reuniram-se em grupo 35 e um deles – a fim de pô-lo à prova – perguntou-lhe: 36 ‘Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?’ 37 Ele respondeu: ‘Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. 38 Esse é o maior e o primeiro mandamento. 39 O segundo é semelhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. 40 Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas”.
São Jerônimo escreve: “Como os fariseus haviam sido confundidos na apresentação da moeda, e viram que havia levantado um partido da parte contrária, decidiram, com isso, não apresentar novas perguntas. Porém, a malícia e a inveja fomentam muitas vezes o atrevimento. Por isso disse: ‘Mas os fariseus quando ouviram que havia feito calar…”, e: “Jesus impôs silêncio aos saduceus, querendo demonstrar que a luz da verdade havia feito emudecer a voz da mentira. Assim como é próprio do homem justo calar quando é tempo de calar e falar quando é tempo de falar, porém, nunca emudecer, assim também é próprio dos doutores da mentira, emudecer quanto à questão, porém, não calar” (Orígenes, Homilia 23 in Matthaeum), e também: “Os fariseus, portanto, e os saduceus que eram inimigos entre si, estão de acordo enquanto se trata de tentar a Jesus Cristo, unidos pelo mesmo fim” (São Jerônimo), e ainda: “Sem dúvida, puseram de acordo os fariseus para vencer por meio do número, a quem não haviam podido vencer por meio de razões, e se confessam destituídos da verdade quando apelam à multidão. Dizem, pois, entre si: que fale um só pelos outros, e nós falemos por meio dele, e se vencer, apareceremos como vencedores. E se ficar confundido, será ele só. Por isso segue: ‘E o perguntou um deles” (Pseudo-Crisóstomo, Opus Imperfectum in Matthaeum, hom. 42), e: “Todo o que pergunta a algum sábio, não para aprender, mas para examiná-lo, devemos acreditar que é irmão daquele fariseu, segundo o que disse São Mateus: ‘O que fizestes com um de meus pequeninos, o fizestes comigo’ (Mt 25, 40)” (Orígenes, Homilia 23 in Matthaeum), e também: “Não chame a atenção que São Mateus diga aqui que houve um tentador que interrogou a Jesus. São Marcos omite esta parte, porém no final da passagem conclui dizendo que o Senhor lhe diz com toda sabedoria: ‘Não estás longe do reino de Deus’ (Mt 12, 34). Pois pode suceder muito bem que, ainda quando alguém se aproxima do Senhor com intenção de tentá-Lo, obtém d'Ele uma resposta que lhe aproveite. E verdadeiramente não devemos olhar à tentação como má e filha de um que quer enganar a seu inimigo, mas como causa com que se quer examinar a quem não se conhece. O que pergunta é o que diz a continuação: ‘Mestre, qual é o grande mandamento da lei?” (Santo Agostinho, De Consensu Evangelistarum, 2, 73), e ainda: “Dizia, Mestre, como tentando-O, porque não pronunciava estas palavras como discípulo do Salvador. Portanto, se alguém não aprende algo do divino verbo, nem se entrega a Ele com toda sua alma, ainda que o disse Mestre, é irmão do fariseu que tenta a Jesus Cristo. Quando se lia a lei antes da vinda do Salvador, possivelmente se indagava qual era o grande mandamento nela; e não teria perguntado o fariseu, se não houvesse questionado sobre isso há muito tempo, não encontrando solução até que viesse Jesus para ensinar” (Orígenes, Homilia 23 in Matthaeum), e: “Lhe perguntava sobre o grande mandamento quem não cumpria sequer o menor. Deve perguntar acerca do progresso da santidade, aquele que já vem observando algo que possa conduzir a ela” (Pseudo-Crisóstomo, Opus Imperfectum in Matthaeum, hom. 42), e também: “Não lhe pergunta acerca dos mandamentos, mas qual é o primeiro mandamento e maior. Porque como tudo o que Deus manda é grande, qualquer coisa que responda servirá para caluniá-lo” (São Jerônimo), e ainda: “Se te manda que ames a Deus de todo o coração, para que o consagres todos seus pensamentos; com toda tua alma, para que o consagres tua vida; com toda a tua inteligência, para que consagres todo o teu entendimento Àquele de quem tens recebido todas as coisas. Não deixa que nenhuma parte de nossa existência fique ociosa, e que dê lugar a sentir prazer em outras coisas” (Santo Agostinho, De Doctrina Christiana 1, 22), e: “De todo teu coração, isto é, com teu entendimento; com tua alma, isto é, com tua vontade; com tua inteligência, isto é, com tua memória, a fim de que nada queiras, sintas nem recordes, que possa contrariar-lhe” (Glosa), e também: “Deve ter em conta que se há de considerar como próximo a todo homem e que, portanto, não se deve fazer o mal a ninguém” (Santo Agostinho, De Doctrina Christiana 1, 30), e ainda: “O que ama os homens, deve amá-los, já que são justos, ou para que o sejam. Deste modo deve amar o próximo, e assim é como se ama o próximo, como a si mesmo, sem perigo algum; porque é justo ou para que seja justo” (Idem., De Trinitate, 8, 6), e: “Se deve amar a si mesmo, não é por ti, mas por aquele a quem deve dirigir seu amor, com fim retíssimo; não estranhe ninguém, se o amamos também por Deus. O que ama em verdade o seu próximo deve agir com ele de modo que também ame a Deus com todo seu coração” (Idem., De Doctrina, 1, 22), e também: “O que ama o homem é semelhante ao que ama a Deus, porque como o homem é a imagem de Deus, Deus é amado nele como o rei é estimado em seu retrato. E por isso disse que o segundo mandamento é semelhante ao primeiro” (Pseudo-Crisóstomo, Opus Imperfectum in Matthaeum, hom. 42), e ainda: “O fato de ser semelhante o segundo mandamento ao primeiro, demonstra que é um mesmo o proceder e o mérito de um e de outro: não há, pois, amor que aproveite para salvar, como aquele que se tem a Deus em Jesus Cristo, e a Jesus Cristo em Deus. Prossegue: ‘Destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas” (Orígenes, Homilia 23 in Matthaeum), e: “Disse que depende; isto é, está referida ali aonde tem seu cumprimento” (Santo Agostinho, De Consensu Evangelistarum, 1, 33), e também: “Todo o decálogo está contido nestes dois mandamentos: os primeiros preceitos dizem respeito ao amor de Deus, e os segundos preceitos ao do próximo” (Rábano), e ainda: “Aquele que cumpriu tudo o que foi mandado a respeito do amor de Deus e do próximo, é digno de receber graças divinas, para que entenda, que toda a Lei e os Profetas dependem de um só princípio: a saber, do amor de Deus e do próximo” (Orígenes, Homilia 23 in Matthaeum), e: “Sendo, pois, dois os preceitos dos quais dependem a Lei e os Profetas – o amor de Deus e do próximo – com razão a Sagrada Escritura os apresenta muitas vezes como um só. O amor de Deus, segundo escreve São Paulo: ‘Sabemos que Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam (Rm 8, 28), e o amor do próximo, como escreve o mesmo santo: ‘Pois toda a Lei está contida numa só palavra: Amarás a teu próximo como a ti mesmo’ (Gl 5, 14). Portanto, como o que ama o próximo consequentemente amará também a Deus, amamos a Deus e ao próximo com a mesma caridade, ainda que devemos amar a Deus por si mesmo, e ao próximo por Deus” (Santo Agostinho, De Trinitate, 8, 7).
Edições Theologica comenta Mt 22, 34-40.
Diante da pergunta, o Senhor põe em relevo que toda a Lei se condensa em dois mandamentos: o primeiro e mais importante consiste no amor incondicional a Deus; o segundo é consequência e efeito do primeiro: porque quando é amado o homem, diz Santo Tomás, é amado Deus, já que o homem é imagem de Deus (cf. Comentário sobre São Mateus, 22, 4). Quem ama deveras a Deus, ama também os seus iguais, porque verá neles os seus irmãos, filhos do mesmo Pai, redimidos pelo mesmo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Temos este mandamento de Deus: que o que ame a Deus ame também o seu irmão” (l Jo 4, 21). Há, porém, um perigo: se amamos o homem pelo homem, sem referência a Deus, este amor converte-se em obstáculo que impede o cumprimento do primeiro preceito; e então deixa também de ser verdadeiro amor ao próximo. Mas o amor ao próximo por Deus é prova patente de que amamos a Deus: “Se alguém diz: amo a Deus, mas despreza o seu irmão, é um mentiroso” (l Jo 4, 20). “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”: Estabelece aqui o Senhor que a medida prática do amor ao próximo há de ser o amor a si mesmo; tanto o amor aos outros como o amor a si mesmo fundamentam-se no amor a Deus. É evidente que os bens do espírito têm uma precedência absoluta sobre os bens materiais, inclusive o da própria vida. Daí que sempre há que salvar, antes de mais, os bens espirituais, quer sejam próprios ou do próximo. Quando se trata do supremo bem espiritual, que é a salvação da alma, de nenhum modo se pode correr o perigo certo de condenar-se para salvar outro, porque, dada a liberdade humana, nunca podemos estar seguros da decisão pessoal que possa tomar o próximo: é a situação que reflete a parábola das virgens néscias e prudentes (cf. Mt 25, 1-13) ao negar-se estas a dar-lhes o azeite; no mesmo sentido diz São Paulo que se faria anátema para salvar os seus irmãos (cf. Rm 9, 3), numa frase condicional irreal. Não obstante, é claro que temos de fazer todo o possível para salvar os nossos irmãos, conscientes de que quem contribui para que o pecador se converta do seu extravio, salvar-se-á ele mesmo da morte eterna e cobrirá a multidão dos seus pecados (Tg 5, 20). De tudo isso se deduz que o próprio amor reto de si, fundado no Amor de Deus ao homem, traz como consequência as exigências radicais do esquecimento de si para amar a Deus e ao próximo por Deus. O mandamento do amor é o mais importante, porque nele alcança o homem a sua perfeição (cf. Cl 3, 14). “Quanto mais uma alma ama, tanto mais perfeita é naquilo que ama; daí resulta que esta alma que já está perfeita, toda é amor e todas as suas ações são amor, e emprega todas as suas potências e riquezas em amar dando todas as suas coisas, como o sábio mercador (Mt 13, 46), por este tesouro de amor que achou escondido em Deus (…). Porque, assim como a abelha tira de todas as ervas o mel que ali há e não se serve delas senão para isto, assim também de todas as coisas que passam pela alma, com grande facilidade ela tira a doçura de amor que contém; que amar a Deus nelas, ora seja saboroso, ora desabrido, estando ela informada e amparada pelo amor como está, não o sente, nem o goza, nem o sabe, porque, como dissemos, a alma não sabe senão amar, e o seu gosto em todas as coisas e tratos, é sempre deleite do amor de Deus” (São João da Cruz, Cântico espiritual, canção 27).
Mt 22, 34-40 é comentado pelo Pe. Gabriel de Santa Maria Madalena.
Mesmo no Antigo Testamento, o amor ao próximo é visto em relação a Deus, como respeito à sua lei e como reflexo de seu amor para com os homens. Mas no Novo Testamento, é iluminado e aperfeiçoado pela doutrina de Jesus, como se pode ver no Evangelho (Mt 22, 34-40). Quando um doutor da lei o interroga sobre o maior mandamento, o Senhor responde citando, um após outro, os preceitos do amor a Deus e do amor ao próximo. O primeiro é tomado do Deuteronômio (6,5): “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças”, e o segundo, do Levítico (19,18): “Amarás teu próximo como a ti mesmo”. São, pois, mandamentos já conhecidos, e, ao menos por alguns rabinos, tidos como os mais importantes (Lc 10,27). A novidade, porém, está no fato de unir Jesus estes dois preceitos, como que fundindo-os em um, e declarando que: “Destes dois mandamentos depende toda a lei assim como os profetas” (Mt 22,40). Ou seja: a vontade de Deus revelada em toda a Escritura pode ser resumida no duplo preceito do amor a Deus e ao próximo. O cristão – como o israelita – não precisa cansar-se para lembrar a multidão de preceitos, nem investigar para discernir quais são os maiores. Basta que lembre um só, o do amor, contanto que o entenda e o viva integralmente, como Jesus ensinou. Amar a Deus de todo o coração significa plena disponibilidade ao seu querer, dedicação incondicional a seu serviço. E justamente em vista do querer de Deus, e para dar forma concreta ao serviço divino, havemos de amar o próximo, a ele nos dando com generosidade. Claramente o prova o exemplo de Jesus: cumpre a vontade do Pai pondo-se a serviço dos homens e imolando-se para salvá-los. A obra redentora de Cristo é a expressão de seu amor ao Pai e, ao mesmo tempo, aos homens. O cristão há de ir pelo mesmo caminho. Impossível, pois, lhe é separar o amor ao próximo do amor a Deus, sob pena de reduzir aquele à pura filantropia, e, este, a um amor ideal, platônico. A síntese perfeita é a indicada por São João: “Se alguém disser: ‘Eu amo a Deus’, e odiar seu irmão, é um mentiroso. Pois, quem não ama a seu irmão a quem vê, como pode amar a Deus a quem não vê? E recebemos de Deus este mandamento: ‘Quem ama a Deus ame também a seu irmão” (1 Jo 4, 20-21).
Mt 22, 34-40 é comentado pelo Pe. Francisco Fernández Carvajal.
O Evangelho (Mt 22, 34-40) convida à alegria, porque é um apelo ao amor. O mandamento do amor é ao mesmo tempo o da alegria, pois esta virtude não é diferente da caridade, mas um certo ato e efeito seu. Por isso, um dos elementos mais claros para medirmos o grau da nossa união com Deus, é verificarmos o nível de alegria e bom humor que pomos no cumprimento do dever, no trato com os outros e à hora de enfrentarmos a dor e as contrariedades. Quando os fariseus se aproximaram de Jesus e lhe perguntaram qual era o principal mandamento da lei, Jesus respondeu-lhes: Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças. O segundo é semelhante a ele: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. É disto que precisamos: de procurar o rosto de Deus com tudo o que temos e somos, e de servir o nosso próximo, abrindo-nos a ele e esquecendo-nos de nós mesmos, fugindo da preocupação obsessiva pelo conforto, abandonando a nossa vaidade e orgulho, colocando o olhar longe de nós mesmos… amando. Muitos pensam que serão mais felizes quando possuírem mais coisas, quando forem mais admirados… e se esquecem de que só necessitamos de “um coração enamorado”. E nenhum amor pode saciar o nosso coração – que foi feito por Deus para alcançar a sua plenitude nos bens eternos – se vier a faltar o Amor com maiúscula. Os outros amores limpos – se não forem limpos, não serão amor – só adquirem o seu verdadeiro sentido quando se procura o Senhor sobre todas as coisas. É por isso que nem o egoísta, nem o invejoso, nem quem tem colocado a sua alma nos bens da terra… podem saborear a alegria que Jesus prometeu aos seus discípulos, porque não saberão amar, no sentido mais profundo e nobre da palavra. Quando é perfeito, o amor tem esta força: leva-nos a esquecer o nosso próprio contentamento para contentar aquele a quem amamos. E verdadeiramente é assim, porque, ainda que sejam grandíssimos os trabalhos, se nos afiguram doces quando percebemos que contentamos a Deus. A alegria e a paz que bebemos nessa fonte inesgotável que é Cristo, temos de levá-las aos que Deus colocou mais perto de nós, isto é, aos nossos lares, que nunca devem ser tristes nem tenebrosos, nem tensos pelas incompreensões e egoísmos, mas luminosos e alegres, como foi aquele em que Jesus viveu com Maria e José. Quando se diz em linguagem figurada que esta ou aquela casa “parece um inferno”, vem-nos logo à mente um lar sem amor, sem alegria e sem Cristo. Um lar cristão deve ser alegre, porque nele está o Senhor que o preside, e porque ser discípulo seu significa, entre outras coisas, viver essas virtudes humanas e sobrenaturais a que está tão intimamente unida a alegria: generosidade, cordialidade, espírito de sacrifício, simpatia, empenho por tornar mais amável a vida de todos… Temos também de levar esta alegria serena, resultado de um trato diário com o Senhor, ao nosso lugar de trabalho, às relações com os clientes, aos que nos perguntam na rua que horas são ou que condução devem tomar para ir a tal bairro… São muitos os que se encontram tristes e inquietos e que precisam, antes de tudo, de ver a alegria que o Senhor nos deixou para se porem também eles a caminho. Quantas pessoas não descobriram o caminho que conduz a Deus através da alegria cristã feita vida num companheiro de trabalho, num amigo! Esta felicidade cristã é também o estado de ânimo necessário para cumprirmos as nossas obrigações. E quanto mais elevadas forem, tanto mais deverá elevar-se a nossa alegria; quanto maiores forem as nossas responsabilidades (pais, sacerdotes, superiores, professores…), tanto maior será também a obrigação de termos essa alegria para comunicá-la. O rosto do Senhor devia resplandecer sempre de alegria, e a sua paz manifestou-se mesmo na sua Paixão e Morte. Também nesses momentos quis dar-nos exemplo, para que o imitássemos se alguma vez o caminho da nossa vida se tornar íngreme.
O Pe. Juan Leal comenta sobre Mt 22, 35-40.
Mt 22, 34-35. Duas coisas moveram os fariseus a tentar de novo para comprometer a Cristo com suas perguntas: uma, ao ver que havia calado aos saduceus; seria para eles um triunfo conseguir o que seus adversários não haviam conseguido. Outra, ao ver que, na opinião do povo, o prestígio de Cristo ia crescendo precisamente com a ocasião que o davam eles mesmos com suas perguntas mal intencionadas. Desta vez se vale de um doutor da lei ou escriba, para propor-lhe uma nova questão, não de moral, mas de ordem doutrinal. Que o faz com intenção torcida, o indica claramente São Mateus ao dizer que o escriba se aproximou de Jesus com a intenção de tentá-lo. São Marcos (12, 32-34) nos apresenta satisfeito com a resposta de Cristo, e o mesmo Cristo o diz que se havia expressado com prudência e que não estava longe do reino de Deus, não parece que oferecerá grande dificuldade, e, efetivamente, São João Crisóstomo e Santo Agostinho, e com eles muitos intérpretes, tanto antigos como modernos, explicaram já satisfatoriamente esta aparente contradição. Pode muito bem suceder que, efetivamente, este escriba, não tão mal disposto como seus companheiros, os fariseus, se aproxime delegado por eles, precisamente com a intenção de tentar a Cristo; porém, agradavelmente impressionado por sua sábia resposta, não pôde conter sua admiração com palavras louváveis para Cristo, que de alguma maneira demonstrou sua simpatia, convidando-o a dar o passo que faltava para pertencer a seu reino. Mt 22, 36. A questão que o escriba propõe a Cristo era uma das que mais se discutiam entre os doutores rabínicos (Citando Bonsirven, Le judaïsme… I 78s; STR. – B., I 900-905). Distinguem na lei 613 mandamentos particulares, dos quais 248 eram positivos e 365 proibitivos. Entre estes, uns eram considerados como graves ou mandamentos grandes; outros, como leves ou pequenos. As disputas entre os doutores judeus sobre a distinção entre os mandamentos grandes e pequenos eram sutis e intermináveis. Mt 22, 37-40. Jesus Cristo com sua resposta evita toda ocasião de vãs disputas. Suas palavras estão tomadas do Deuteronômio 6, 4s. Este livro era a profissão de fé que os israelitas adultos usavam para rezar de manhã e de tarde, todos os dias. Era, além disso, uma das sentenças que, escrita numa pequena tira de pergaminho e colocada numa caixinha, a levavam atada à frente ou no braço esquerdo, de que tanto apreciavam os fariseus. Por conseguinte, se tratava de um texto muito familiar a todo israelita. Naquele ato e profissão de fé que os israelitas faziam todos os dias ao Deus único, criador de todas as coisas, está o fundamento e princípio do preceito que nos manda amar a Deus. Acrescenta Cristo um segundo mandamento parecido ao primeiro, porque seu objetivo é também o amor pelo mesmo motivo: ou seja, pelo amor a Deus devemos amar também o próximo. Este segundo mandamento se lê em Levítico 19, 18. Os doutores e fariseus haviam deturpado este segundo preceito, aplicando a palavra próximo unicamente aos que eram do povo judeu ou seus amigos. Cristo, nesta como em outras ocasiões, quis recomendar o amor universal sem exclusivismos, a todos os homens, posto que todos são imagens de Deus destinados ao mesmo fim. A lei e os profetas equivalem aqui a toda a Escritura, segundo a divisão corrente no tempo de Cristo nestas duas partes. Realmente, o amor a Deus e ao próximo é a suma e compêndio de todos os preceitos que encontramos na Sagrada Escritura. É também o motivo para todas as virtudes. O amor ao próximo fundado no amor de Deus forma como um mesmo preceito, e por esta razão o mesmo Cristo no sermão da Montanha (7, 12) e mais tarde São Paulo (Rm 13, 10; Gl 5, 14) resumem todos os mandamentos contidos no Antigo Testamento no amor do próximo. Como adverte São Marcos, este escriba que propôs a consulta a Cristo recebeu sua resposta com admiração, respeito e aprovação, de sorte que mereceu ouvir de Cristo aquelas palavras: Não estás longe do reino de Deus (Mc 12, 32-34); como se dissera: teus pensamentos são bons; basta que te decidas a colocá-los em prática.
O Pe. Juan de Maldonado comenta sobre Mt 22, 35-39.
Mt 22, 35. Um deles, doutor da lei. – Lucas nos diz (20, 39-40) que um escriba, quando Cristo acabou de rebater os saduceus, exclamou: Mestre, falaste bem, e já ninguém ousava interrogá-lo sobre coisa alguma. Este último entende-se dos saduceus, não dos escribas e fariseus, que precisamente daquela resposta, como indica Mateus, tomaram ocasião de tentar-lhe outra vez para se mostrarem mais sábios que os saduceus. O que aqui chama Mateus doutor da lei, Marcos (12, 28) disse que era escriba; pelo qual, ainda que os escribas tivessem vários ofícios, se vê que em algumas ocasiões um podia ser escriba e fariseu ao mesmo tempo. Porque este doutor era fariseu, segundo se vê pelo versículo 34. Mt 22, 36. Qual é o maior mandamento da lei. – Ainda que ponha o comparativo, se entende o superlativo, como em castelhano. Mt 22, 37. Amarás ao Senhor teu Deus. – Marcos (12, 29) primeiro põe: Ouve, Israel; o Senhor teu Deus é Deus único, cujas primeiras palavras somente citou Mateus. Os dois mandamentos estão em Moisés na mesma passagem. O primeiro é que acreditemos num Deus único; o segundo, que o amemos de todo o coração, porque é claro que quem crê em muitos, dividiria o amor e a ninguém amaria com todo seu coração, porque ninguém pode amar a dois senhores (Mt 6, 24). De todo teu coração e com toda tua alma. – Há intérpretes que fazem aqui distinções, demasiado sutis a meu juízo. Ensina Santo Agostinho: “Ao dizer com todo o coração, com toda a alma, com toda a mente, não deixa parte nenhuma do homem livre e desocupada para amar outra coisa a seu capricho”. Finalmente, o que em diversas passagens ou com distintas palavras se disse no Deuteronômio (6, 5), aqui se resume numa só, que Lucas gravou em 10, 27: Amarás ao Senhor teu Deus com todas as tuas forças. Mt 22, 39. Amarás a teu próximo como a ti mesmo. – Estes, segundo Cristo, são os dois maiores preceitos de toda a lei. E não são distintos dos demais, mas resumo deles. Os mandamentos foram escritos em duas tábuas: numa apareciam os que correspondem à honra de Deus e noutra os que estão a nosso proveito e do próximo; o resumo da primeira é: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o coração; e o da segunda: e ao próximo como a ti mesmo. Pois então, dirá alguém: como chama máximo a este mandamento, se não se diferencia dos demais? Tanto vale se dissesse que todos os mandamentos são maiores. Respondo que o que Cristo quis dizer é que todos os mandamentos tendem a isso: a amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a nós mesmos. Já disse São Paulo (Rm 13, 10): A plenitude da lei é o amor; e o afirma o mesmo Cristo (v. 40): Destes mandamentos depende toda a lei e os profetas. Porém, como se entende o amor do próximo igual ao de nós mesmos? Depende do que entendemos por próximo e por como. Quem é o próximo? O explica Cristo em toda uma parábola que está em Lucas (10, 30), cuja conclusão é que todos os homens são próximos. E, que significa a partícula como? Isto não é tão fácil de determinar… Há quem afirma que o afeto para com os demais deve ser tão intenso como o que sentimos por nós. Bem creio eu que o problema se encerra nessa partícula. Não duvido de que Deus quer que desejemos ao próximo quanto desejamos para nós, e que o amemos por Deus como a nós mesmos e com a intensidade de afeto com que nos amamos. A dúvida está, na frase de Santo Agostinho, de como podemos querer para o próximo o que queremos para nós, quando, às vezes, a nós nos desejamos coisas más: riquezas, prazeres; e amar-lhe com igual intensidade que a nós mesmos, sabendo que em muitas ocasiões nos amamos mais ou menos. Respondo: permanece tranquilo. Nós não devemos desejar-nos senão o bem; pois, o mesmo desejamos ao próximo. Não devemos amar-nos senão segundo Deus; pois, de igual maneira ao próximo. E como a Deus, há que amá-lo com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças.
O Pe. Manuel de Tuya comenta sobre Mt 22, 34-40.
As discussões rabínicas sobre a diversa importância dos mandamentos eram frequentes. Distinguiam-se ordinariamente 613 mandatos: 248 eram positivos e 365 negativos. Deles, nas listas que se elaboravam, uns se qualificam graves, e outros leves. Na época de Cristo este número ainda não estava concluído e fixo, por isso, existiam listas, classificações e discussões em torno disso. E frequentemente se buscava qual fosse o primeiro destes mandamentos (Citando Strack-B, Kommentar… I 900-905). Neste ambiente surge a pergunta que será feita a Cristo. Queria saber seu pensamento num ponto doutrinal tão importante e tão discutido nas escolas rabínicas. Mt realça um pouco a cena. Os fariseus “haviam ouvido” como Cristo havia feito calar aos saduceus, “seus irreconciliáveis inimigos doutrinais”. Aproxima-se de Jesus, e “se reúnem em torno dele”, e então um “legista”, que é o escriba de Mc, se dirige a Jesus para fazer-lhe uma pergunta. Sendo a única vez que em Mt se utiliza esta expressão “legista” (nomikós), se pensou se não se queria indicar com ela uma categoria especial de escribas dedicados ao estudo da exegese da Lei e que numa época posterior se chamariam “juristas” ou “halakistas”. Porém, se fez ver que, na época de Cristo, esta distinção ainda não existia. O texto de Mt põe para “tentá-lo”. Porém, nem sempre a palavra há de ser interpretada no mal sentido, já que o verbo pode ter o sentido de provar para saber. E este sentido parece ser o que aqui o convém, já que, no lugar paralelo de Mc, Cristo dirá no final: “Não estás longe do reino de Deus” (Mc v. 34). Pensar que este “legista” começa com intenções contrárias e termina em mudança radical, parece uma solução forçada. Precisamente Mc dirá, ao introduzir a cena, que, havendo ouvido a discussão de Cristo com os saduceus e “vendo que lhes havia contestado bem” (v. 28), é quando o faz a pergunta. Tudo isto orienta ao valor da “tentação” de Mt no sentido dito. Em Lc, a cena surge de repente noutro contexto. O que se “levanta”, semitismo conhecido (qûm), para “tentar” a Jesus é também um “legista”. É verdade que em Lc a pergunta do “legista” vem formulada ao perguntar: “Que farei para alcançar a vida eterna?” (v. 25). Porém, a analogia do conteúdo é irregular. Pode ser a mesma cena, que em Mt-Mc se apresenta desde o ponto de vista da graduação e dignidade dos mandamentos. Porém, pode ser não só para ter uma classificação teórica dos mesmos, mas em ordem a sua valorização prática, em ordem a alcançar a vida eterna. Que o primeiro mandamento se refere a Deus é claro. Jesus Cristo citará a oração Shemá, que todo israelita varão, não escravo, devia recitar duas vezes ao dia, e que devia estar já em uso no tempo de Cristo (Citando Josefo, Antiq. IV 8, 13). Toma seu nome do começo da mesma: “Ouve, Israel”. O texto do Deuteronômio diz: “Ouve, Israel: Deus, nosso Deus, é o único Deus. Amarás a Deus, teu Deus, com todo teu coração, com toda tua alma, com toda tua força” (6, 4-5). Todas essas expressões: “coração”, “alma” e “força” (Mc), mais que expressar coisas distintas, são formas semíticas ou pleonásticas de dizer globalmente o mesmo. Isto é o que constituía originária e fundamentalmente a oração diária do Shemá. Para os judeus, este mandato do amor de Deus sobre tudo era fundamental… Por isso, Jesus Cristo insistirá em colocar o preceito do amor a Deus sobre todas as coisas, em seu primeiro lugar, absoluto e excepcional. Por isso, “este é o maior e o primeiro mandamento” (Mt). Porém, Jesus Cristo vai insistir e colocar em seu próprio lugar outro mandamento descuidado pelo judaísmo e posposto a outros preceitos menores. “Um segundo (mandamento) é semelhante a esse: Amarás a teu próximo como a ti mesmo” (Mt). Jesus Cristo dá esse segundo mandamento sem que o “legista” pergunte. A que se deve esta insistência e a proclamação de sua excelência? No lugar análogo de Lc (10, 27), o doutor da Lei responde a Jesus Cristo com outros preceitos. Porém, aqui não se perguntam. Jesus Cristo o anuncia com as palavras do Levítico: “Amarás a teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19, 18). Porém, em seu mesmo contexto se vê que este próximo de um judeu é só outro judeu, ou então, um “peregrino” que morasse com ele. Os samaritanos, os publicanos e as pessoas de má vida, não eram próximos para eles; e os samaritanos e os publicanos eram positivamente odiados. Porém, frente a esta mutilação de quem é o próximo e dos deveres para com ele, Jesus Cristo explica o mandamento do Levítico, e o coloca no posto que o corresponde, e o preceitua em função de Deus. Por isso, Jesus Cristo dá a este mandamento duas características suas: a universalidade no conceito de próximo, tirando-o dos estreitos limites judeus para dar-lhe a universalidade do “humano”, e também o colocar e separar a gravidade e importância do mesmo, ao colocá-lo acima de todas as minúcias e pequenez, depois do amor de Deus. Assim cai por terra a circuncisão e o mesmo repouso sabático. “Não há outro mandamento maior que estes” (Mc). Precisamente o preceito do amor ao próximo é “semelhante” ao mandamento do amor a Deus. “A semelhança está na caridade que ame ao próximo por amor a Deus” (Citando Lagrange, Évang. S. St. Matth. (1927) p. 432). O escriba respondeu, admirado da doutrina de Jesus, aprovando quanto havia dito, e ressaltando, com relação ao amor ao próximo como a si mesmo, que “é mais (importante) que todos os holocaustos e sacrifícios” (Mc), tomados esses como simples rito, como era tão frequente, e os profetas o haviam censurado em Israel. Era um escriba que, como Jesus disse, não estava “longe do reino de Deus” por sua retidão moral. Mais ainda, termina a exposição fazendo uma síntese do que estes dois mandamentos significam na economia da revelação e da moral. “Destes dois mandamentos depende toda a Lei e os Profetas” (Mt). Destes dois princípios fundamentais e vitais dependem toda a Lei e os Profetas, porque eles são os que religiosamente a vitalizam, a “moralizam”, os que o dão o verdadeiro “espírito” de que há de estar animada: é nele que “consiste” verdadeiramente toda a Lei e os Profetas. É, por outra parte, uma síntese, ao modo ambiental, de destacar a suprema importância de ambos. Assim, Hillel, 20 a. C, dizia: “O que te desagrada não faça a outro. Isto é toda a Lei; o resto não é mais que o comentário” (Citando Strack-B., Kommentar… I p. 907; cf. Gl 5, 14). Jesus Cristo, com estas palavras, tem dado à humanidade outras dessas lições supremamente transcendentais.
São João Maria Vianney escreve sobre o amor de Deus e do próximo.
Como é belo, como é grande conhecer, amar e servir a Deus! É a única coisa que temos para fazer neste mundo. Tudo o que fazemos afora isto, é tempo perdido. O Bom Deus nos colocou na terra para ver como nos comportaríamos e se o amaríamos; mas ninguém permanece nela para sempre. O homem foi criado para o amor e é por isso que é tão propenso a amar. O homem criado para o amor não pode viver sem o amor: ou ama a Deus, ou ama a si mesmo ou ama o mundo… Não se pode amar a Deus sem testemunhar-lhe esse nosso amor com as nossas obras. Procurai um amor verdadeiro e que não se manifeste exteriormente pelos seus efeitos, que não o encontrareis. Amar a Deus com todo o nosso coração é amar somente a Ele, é torná-lo presente em tudo aquilo que amamos. Nem todos nós podemos dar grandes esmolas aos pobres, tornar-nos religiosos, retirar-nos para uma cartuxa, nos desertos; mas todos podemos amar o Bom Deus do fundo do coração. Amar a Deus não consiste somente em dizer-lhe com a boca: meu Deus, eu te amo. Amar a Deus com todo o coração, com toda a mente e com todas as forças é preferi-lo a tudo, é estar pronto a perder os bens, a honra, a própria vida, a ofendê-lo. Amar a Deus é não amar nada acima d'Ele, nada que compartilhe com Ele o nosso coração. Muitas vezes penso que, mesmo se não houvesse outra vida, já seria uma felicidade bastante grande o fato de amarmos a Deus nesta vida, de servi-lo e de poder fazer alguma coisa pela sua glória. Se pudéssemos compreender a felicidade que temos de poder amar a Deus, ficaríamos imóveis, em êxtase. Não há nada tão usual entre os cristãos como dizer: Meu Deus, te amo , e nada mais raro, talvez, que o amor de Deus. Acaso o peixe procura as árvores e os prados? Não, ele se lança na água. Acaso o pássaro pára no chão? Não, voa para o alto. E o homem, que foi criado para amar a Deus, para possuir a Deus, não o ama e leva alhures os seus afetos. Enquanto não amardes o vosso Deus, jamais estareis contentes: tudo vos oprimirá, tudo vos enfastiará… Afora do Bom Deus… Nada é estável, nada, nada! Se é a vida, ela passa; se é a riqueza, ela desmorona; se é a saúde, ela é destruída; se é o renome, ele é afetado. Passamos como o vento… Tudo some em grande velocidade, tudo se precipita... Como são dignos de pena os que dedicam seus afetos a qualquer coisa! Afeiçoam-se a qualquer coisa porque amam-se demasiado a si mesmos; mas não se amam com um amor racional; amam-se com o amor de si mesmos e do mundo, buscando a si mesmos, procurando as criaturas mais que a Deus. Por isso nunca estão satisfeitos, nunca estão tranquilos; acham-se sempre inquietos, sempre atormentados, sempre transtornados. Toda a nossa religião não passa de religião falsa e todas as nossas virtudes são apenas fantasmas; e somos somente hipócritas aos olhos de Deus, se não temos aquela caridade universal por todos, tanto para os bons como para os maus, pelos pobres e pelos ricos, por todos aqueles que nos fazem o mal, bem como por aqueles que nos fazem o bem. Não, não há virtude que melhor nos faça conhecer se somos os filhos do Bom Deus, como a caridade. A obrigação que temos de amar nosso próximo é tão grande, que Deus a transforma num mandamento, que coloca logo em seguida àquele em que nos ordena que o amemos com todo o coração. Diz-nos que toda a lei e os profetas encerram-se neste mandamento de amar nosso próximo. Sim, devemos considerar esta obrigação como o que há de mais universal, de mais necessário e de mais essencial para a religião, para a nossa salvação. Observando este mandamento, pomos em prática todos os outros. São Paulo nos diz que os outros mandamentos nos proíbem o adultério, o furto, as injúrias, os falsos testemunhos. Se amamos nosso próximo, nada faremos de tudo isto, porque o amor que temos pelo nosso próximo não pode tolerar que pratiquemos o mal. Portanto, em que consiste o amor que devemos ter pelo nosso próximo? Esse amor consiste em três coisas: 1) Querer bem a todos; 2) Demonstrar-lhe toda vez em que podemos; 3) Suportar, desculpar e corrigir os seus defeitos. Eis, pois, a verdadeira caridade que se deve ao próximo… Três coisas fazem com que a percamos, que são: a avareza, o orgulho e a inveja. Dizei-me: por que não amais tal pessoa? Ai de mim! É porque não entra nos vossos interesses; porque vos deve ter dito alguma palavra ou então feito alguma coisa de que vós não gostastes; ou porque pedistes algum favor que ela vo-lo rejeitou; ou porque teve algum lucro que vós esperáveis tê-lo, eis o que vos impede de amá-la como deveis… Jamais percais de vista que, em todo o tempo em que não amais vosso próximo, o Bom Deus está enfurecido contra vós… Ó meu Deus! É possível que se possa viver com o ódio no coração? É porque vedes grandes defeitos no vosso vizinho? Ai, amigo! Convence-te de que tu tens maiores ainda aos olhos de Deus, os quais tu não conheces. É verdade que não devemos amar os defeitos e os vícios do pecador; mas devemos amar a sua pessoa, visto que, embora pecador, ele não deixa de ser a criatura de Deus e a sua imagem. Se quereis amar somente aqueles que não têm defeitos, não amareis ninguém, porque ninguém deixa de ter defeitos. Raciocinemos como cristãos: quanto mais pecador um cristão é, mais digno é ele de compaixão e de possuir um lugar em nosso coração. Não, por piores que sejam aqueles com os quais convivemos, não devemos odiá-los, mas, a exemplo de Jesus Cristo, devemos amá-los mais do que a nós mesmos. Se perguntasse a uma criança: que é a caridade? Me responderia: é uma virtude que recebemos do céu, por meio da qual amamos a Deus com todo o nosso coração e o próximo como a nós mesmos, por causa de Deus. Mas, me perguntareis agora: que quer dizer amar o Bom Deus sobre todas as coisas e mais do que a nós mesmos? Significa preferi-Lo a tudo o que é criado, estar à disposição para perder os próprios bens, a própria reputação, os pais e os amigos, os filhos, o marido, a mulher e a própria vida, a cometer o mínimo pecado mortal. Santo Agostinho nos diz: amar perfeitamente a Deus é amá-lo sem medida, mesmo que não houvesse céu a esperar, nem inferno a temer; é amá-lo com toda a extensão do coração. Se me perguntais a razão, é porque Deus é infinitamente amável e digno de ser amado. Se o amamos verdadeiramente, nem os sofrimentos, nem as perseguições, nem o desprezo, nem a vida, nem a morte poderão roubar-nos este amor que devemos a Deus. Nós mesmos percebemos que, se não amamos o Bom Deus, só podemos ser infelizes, muito infelizes. Se o homem foi criado para amar o Bom Deus, só pode encontrar a sua felicidade em Deus. Ainda que fôssemos os melhores do mundo, se não amamos o Bom Deus só poderemos ser infelizes durante todo o tempo de nossa vida. Se quereis convencer-vos melhor, interrogai então as pessoas que vivem sem amar o Bom Deus… Um avarento não é mais feliz quando muito tem, do que quando pouco possui. Acaso um beberrão é mais feliz depois que tomou o seu vinho onde pensava encontrar todo o seu prazer? Com isto só se torna mais infeliz. Um orgulhoso nunca tem descanso, sempre teme ser desprezado. Um vingativo, procurando vingar-se, não consegue dormir nem de dia nem de noite. Observai ainda um infame impudico que julga encontrar a sua felicidade nos prazeres da carne: chega até a perder, não digo a sua reputação, mas os seus bens, a sua saúde, sem poder encontrar, porém, a sua satisfação. E por que não podemos ser felizes em tudo aquilo que parece dever satisfazer-nos? Ah! É que, sendo criados somente para Deus, só Ele poderá satisfazer-nos, isto é, tornar-nos felizes quanto é possível sê-lo nesta pobre terra… Se agora eu perguntasse a uma criança: que é a caridade para com o próximo, me responderia: a caridade para com Deus deve fazer com que o amemos mais do que os nossos bens, do que nossa saúde, do que nossa reputação e mais que nossa própria vida; a caridade que devemos ter com o nosso próximo deve fazer com que amemos a nós mesmos, de modo que todo o bem que podemos desejar para nós devemos desejá-lo ao nosso próximo, se queremos ter essa caridade sem a qual não há céu, nem amizade de Deus a esperar… Mas, que se entende com estas palavras: o nosso próximo? Nada mais fácil de entender. Esta virtude se estende a todos, tanto àqueles que nos fizeram o mal, que mancharam nossa reputação, que nos caluniaram e fizeram alguma coisa errada contra nós, mesmo que tenham procurado tirar-nos a vida. Devemos amá-los como a nós mesmos e augurar-lhes todo o bem que podemos desejar a nós. Não só nos é proibido querer-lhes mal, mas é preciso ajudá-los sempre que necessitem e possamos ajudá-los. Devemos alegrar-nos quando tem êxito em seus negócios, entristecer-nos quando são provados por alguma desgraça, por alguma perda; colocar-nos ao lado deles quando deles se fala mal; dizer o bem que dele sabemos, não evitar a sua companhia... eis como o Bom Deus quer que amemos nosso próximo. Se não nos comportamos desta maneira, podemos dizer que não amamos nem nosso próximo nem o Bom Deus… Mas, me perguntareis: como se pode saber que temos esta bela e preciosa virtude, sem a qual nossa religião não passa de um fantasma? Antes de tudo, uma pessoa que tem a caridade não é orgulhosa: não gosta de exercer domínio sobre os outros; vós jamais a ouvis criticar-lhes a conduta; não gosta de falar do que fazem. Uma pessoa que tem a caridade não examina qual é a intenção dos outros em suas ações; nunca acredita que faz melhor do que os outros e jamais se coloca acima do seu próprio vizinho; pelo contrário, ela acredita que os outros fazem sempre melhor que ela. Não se ofende se o próximo prefere os outros; se é desprezada, fica da mesma forma contente, porque pensa que merece ainda mais desprezo. Uma pessoa que tem a caridade evita ao máximo prejudicar os outros, porque a caridade é um manto real. Vedes que para amar o Bom Deus e o próximo não é preciso ser muito eruditos, nem muito ricos; basta procurar agradar a Deus em tudo o que fazemos; fazer o bem a todos, tanto aos maus como aos bons, àqueles que dilaceram nossa reputação e aos que nos amam.
O Pe. Alexandrino Monteiro escreve sobre o amor a Deus.
No amor de Deus está a perfeição do homem. Amar a Deus é amar o bem por excelência, e quem ama a Deus de coração odeia o mal maior do mundo que é o pecado. O amor une, estreita, assemelha. – o amor de Deus une a criatura ao seu Criador, e quanto mais cresce o amor, mais se estreitam os laços dessa divina amizade. Da união de afetos resulta a semelhança nas obras, e, portanto, a perfeição. Quem não ama está ainda muito longe de ser aquilo que a natureza racional o inclina. O homem que discorre deve procurar em Deus o único objeto do seu amor, pois a razão lhe apresenta Deus como o centro de todos os bens, e como o único bem digno de ser amado sobre todos os mais. A caridade é o vínculo da perfeição. Toda a virtude aperfeiçoa o homem: nenhuma, porém, o aperfeiçoa tanto como a caridade, pois, diz São Paulo, falando das virtudes teologais, que a maior delas é a caridade (1 Cor 13, 13). A caridade é a fiança que Deus pede a São Pedro para certificar-se da fidelidade com que havia de pastorear o seu rebanho. – “Amas-me?” – Dizia-lhe – e repetiu três vezes essa pergunta, para nos encarecer a importância do seu amor. A caridade é tudo no homem. Sem ela, os seus dias são perdidos, as suas boas obras não têm valor e os seus padecimentos não têm recompensa. A caridade é fogo que abrasa e sol que alumia. Quando este fogo se extingue, quando este sol se apaga, cessa o progresso na virtude e a alma entra na sua quadra de inverno, em que não crescem as flores da santidade nem amadurecem os seus frutos. O amor de Deus é um preceito. Quem não ama a Deus está fora da lei e não vai pelo caminho da salvação. E como se há de amar a Deus? “Amarás o Senhor teu Deus, lê-se no Evangelho, com todo seu coração, com toda a sua alma e com todo o seu espírito” (Mt 22, 37). Amamos a Deus de todo coração quando lho entregamos todo inteiro, sem o dividir com as criaturas. Deus, só, quer ser o objeto do nosso amor. Só Ele é o Senhor do nosso coração; a Ele pertence e n'Ele deve reinar como em propriedade sua. Qualquer parcela de amor que dermos às criaturas, que não seja por amor de Deus, é um roubo que praticamos, é uma injustiça que lhe fazemos. Todas as perfeições que encontramos nas criaturas são revérberos da infinita beleza do Criador. A Ele, pois, devemos amar como centro de toda a perfeição e como oceano de toda a graça e formosura. Amar a Deus com todo o nosso espírito é viver atuando na sua divina presença, meditando com frequência nos divinos atributos e recordando os mil favores de que nos tem cumulado. Amar a Deus com toda a alma é empregar todas as faculdades e potências em testemunhar que é Ele só o objeto do meu amor; recordando com a memória os seus benefícios, aprofundando com o entendimento os seus divinos atributos e vivendo unido a Ele pela vontade, pondo à parte todos os outros afetos que não encaminhem para o seu amor. Amar a Deus com todas as forças é aplicar ao seu serviço, não só as potências da alma, mas todo o vigor do corpo. É não dar um passo que não se encaminhe a conhecê-lo; é não fazer obra que não tenha por alvo a sua maior glória, é não proferir palavra que não convenha à sua divina presença, é não usar dos sentidos que não seja para admirar e louvar as maravilhas do seu poder. Só assim cumpriremos o preceito do amor de Deus sobre todas as coisas. Quem o guarda, cumpre toda a lei, como diz São Paulo: – O amor é a plenitude da lei (Rm 13, 10). O primeiro e último preceito é o amor de Deus. É um preceito a que se não marcam limites. Não é, portanto, preceito que se cumpra uma vez por ano, nem uma vez por dia; mas obriga a todo o instante, pois a todo o instante devemos evitar as ofensas a Deus que se opõem ao seu amor. O amor de Deus nunca diz – basta! – mas, como fogo, propende sempre para aumentar e subir. A justa medida para amar a Deus, diz São Bernardo, é amá-lo sem medida. O amor de Deus é o fundamento de toda a santidade, assim como é a plenitude de toda a lei. Quem mais ama a Deus, mais santo se torna; porque, quanto maior for o nosso amor para com Ele, mais perfeita será em nós a observância da sua lei. Quanto mais amarmos a Deus, mais longe estaremos do pecado e mais adiantados na virtude. O amor de Deus é fogo. Purifica os nossos corações de todas as impurezas, queimando até as raízes do pecado e fazendo com seu calor germinar as virtudes. Ama a Deus se queres chegar a ser santo. Ama a Deus se queres conseguir a tua salvação. O amor de Deus extinguirá em teu coração o amor desordenado às criaturas, que são um perigo para te conservares na graça de Deus. Ama a Deus, ainda quando te visita com trabalhos e tentações, pois é com elas que Ele deseja provar o teu amor. Ama-O no gozo e na prosperidade, pois é Ele o Autor de toda a santa e pura alegria, e quem faz que os negócios te corram prósperos. Vive no amor de Deus para teres a dita de morrer n'Ele e n'Ele ir abrasar-te na glória do paraíso por toda a eternidade.
Pe. Divino Antônio Lopes FP. Anápolis, 23 de outubro de 2008
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