TUDO DESPREZA

(Pr 18, 3)

 

“O ímpio, depois de ter caído no abismo dos pecados, tudo despreza”.

 

Será que o ímpio se aproxima do Sacramento da Confissão com arrependimento, propósito e sinceridade?

              

Certa vez apresentou-se a São Francisco de Sales, para confessar-se, um indivíduo que contava os pecados com incrível apatia, para não dizer petulância, e com sinais de tão pouca dor, que mais parecia narrar histórias do que acusar pecados. O Santo, vendo a má disposição daquela alma, não se conteve e começou a chorar. O penitente, preocupado, indagou:

- Padre, o senhor sente-se mal?

- Não, graças a Deus estou bem; o senhor é que está mal...

- Eu me sinto muito bem, interrogou o outro.

- Pois bem... então continue.

O penitente continuou a dizer coisas de arrepiar os cabelos, mas sem nenhum sinal de arrependimento e com uma frieza espantosa. O Santo não pode conter-se; pôs-se a soluçar e a derramar lágrimas.

- Mas, por que chora, padre?

- Choro... não posso deixar de chorar porque o senhor não chora.

O penitente, que resistira à primeira vez, não pode resistir à segunda. Chegara a hora da graça, e ele exclamou:

-Ai! Como sou miserável! Como não sinto dor dos meus pecados, quando eles arrancam lágrimas a um inocente?

Este pensamento comoveu-o tanto, que quase caiu desmaiado. O Santo recitou então com ele o ato de contrição com tanta dor, que, dali em diante, o penitente foi um cristão fervoroso e um modelo de penitência.

 

Que esse exemplo sirva de lição para milhares de católicos que se aproximam da Confissão com frieza e desprezo.

Infelizmente, milhares se confessam por tradição, e por isso não mudam de vida; permanecem sempre os mesmos: “Acontece não raras vezes que as confissões ordinárias de pessoas que levam uma vida negligente e comum são defeituosas e mal feitas; não se preparam nada ou quase nada; não têm a contrição devida; confessam-se com uma vontade secreta de continuar a pecar, ou porque não querem evitar as ocasiões do pecado ou porque não querem envidar todos os meios necessários para emendar de vida” (São Francisco de Sales).

Católico, uma das maiores desventuras que nos legou a culpa de Adão é a nossa propensão ao pecado. Dela se lamenta o Apóstolo, sentindo-se levado pela concupiscência ao próprio mal que aborrecia: “Veio outra lei a meus membros que me leva preso à lei do pecado” (Rm 7,23).

Sobre Romanos 7, 23, Edições Theologica comenta: “Temos aqui uma descrição, viva e dramática, da luta que todo o homem, inclusivamente o cristão, experimenta no seu interior. Estas palavras reproduzem uma experiência universal: há nos nossos membros uma ‘lei’, uma inclinação, que luta e se opõe à lei do nosso espírito, isto é, ao bem espiritual que Deus nos faz desejar com a Sua graça. A própria expressão ‘lei do pecado que está nos meus membros’ sublinha a força com que os nossos sentidos, apetites e paixões se negam a seguir os preceitos do espírito. Não  obstante, não se trata de um poder irresistível. A Igreja ensina, com efeito, que também nos batizados permanece o fomes peccati ou concupiscência, isto é, o desejo veemente de apetências terrenas ou sensuais”. A concupiscência, como foi deixada para o combate, não pode prejudicar os que não consentem nela e lhe resistem energicamente com a graça de Jesus Cristo.

Resulta daí (Rm 7, 23) que nós, infeccionados de tal concupiscência e cercados de tantos inimigos que nos incitam ao mal, dificilmente chegaremos sem culpa à glória: “Eu próprio sirvo com o espírito a lei de Deus, mas com a carne a lei do pecado’. Neste estado o homem pode evitar o pecado mortal. Mas não pode evitar todos os pecados veniais, por causa da corrupção dos movimentos da sensualidade” (Santo Tomás de Aquino). Daqui vem a necessidade da ajuda de Deus para perseverar no bem e a exigência de lutar pessoalmente para sermos fiéis. O Catecismo Romano, ao considerar que mesmo depois do Batismo o homem está submetido a várias penalidades e, entre elas, à concupiscência, explica que Deus quis a permanência da morte e da dor, cuja origem é o pecado, para que alcancemos uma união mística e real com Cristo que quis padecer e morrer; enquanto a concupiscência fica, com a debilidade do corpo, a doença e os sofrimentos; para que tenhamos campo abundante e matéria para a virtude, donde tiremos depois frutos mais ricos de glória e prêmios mais excelentes.

Reconhecida, pois, esta fragilidade a que estamos sujeitos, pergunto eu: Que dirias de um viajante que, devendo atravessar o mar durante forte tempestade e num barco meio avariado, quisesse carregá-lo com tal peso que, mesmo que não houvesse tempestade e ainda que o navio fosse de construção resistente, bastaria para fazê-lo soçobrar? Que prognóstico formarias  sobre a vida deste viajante? Pois pensa o mesmo do indivíduo de maus hábitos e  costumes, que deve cruzar o mar tempestuoso da vida, em que tantos naufragam, num barco frágil e avariado, como é nosso corpo no qual viaja a alma. Que sucederá se o carregarmos ainda com o peso irresistível dos pecados habituais? É difícil que tais pecadores se salvem, porque os maus hábitos cegam o espírito, endurecem o coração e ocasionam provavelmente a obstinação completa na hora da morte.

Primeiramente, o mau hábito nos cega. Qual o motivo que fazia os Santos implorar incessantemente a luz divina, temendo converter-se nos pecadores mais abomináveis do mundo? É porque sabiam que, se chegassem a perder a luz divina, poderiam cometer culpas horrendas.

E como se explica que tantos cristãos vivem obstinadamente em pecados, até que irremediavelmente se condenam? Porque o pecado os cega, e por isso se perdem: “Assim raciocinam, mas se enganam, porque sua maldade os cega” (Sb 2,21). Toda culpa traz consigo cegueira e, acumulando-se os pecados, agrava-se a cegueira do pecador. Deus é nossa luz; quanto mais se afasta a alma de Deus, tanto mais se mergulha nas trevas: “Seus ossos se encherão de vícios” (Jó 20,11).

Assim como o sol não pode penetrar através de um vaso cheio de terra, assim não pode entrar a luz divina num coração cheio de vícios. Vemos, por isso, com frequência, muitos pecadores, sem luz que os guie, a cair de pecado em pecado e sem querer emendar-se: “Por toda parte vagueiam os ímpios” (Sl 11,9). Caídos esses infelizes no abismo de trevas, só sabem pecar e falar em pecados; não pensam mais que em pecar e já não consideram sequer o grave mal que é o pecado: “O costume de pecar não deixa o pecador reconhecer o mal que pratica” (Santo Agostinho). Vivem desta maneira como se não acreditassem na existência de Deus, do céu, do inferno e da eternidade: “Sirvo-me do demônio qual instrumento de minha justiça para atormentar os que me ofendem” (Santa Catarina de Sena, O Diálogo).

O mau hábito transtorna a alma do pecador.

A alma não compreende mais os seus interesses eternos.

Um pai visitava uma feira com a filha; no atropelo, na multidão, no clamor, ele perde a filha. Logo a procura, fá-la procurar; sem utilidade. Passaram-se quatro anos: quatro longos anos de agitação, de esperas, de esperanças e de esmagadoras desilusões. Finalmente, passando por Londres, ele descobre num palco de lutadores uma menina. Não tem dúvida alguma: é sua filha.

Penetra no palco... “Minha filha!” diz-lhe; mas a pequena, estragada pela permanência prolongada com os saltimbancos, contaminada pelos seus maus hábitos, já esquecera a sua primeira infância; esquecera a sua casa tépida e linda, o riso de suas irmãs, os beijos de sua mãe que sempre a esperava e chorava; esquecera até o rosto de seu pai. E não mais o reconheceu.

“Você, meu pai?” Respondia ela.   “Para trás:   não o conheço!”

“Minha filha!” Dizia-lhe o infeliz com o coração despedaçado, “minha filha, olha-me no rosto: não te lembras mais de quando eu te embalava aos joelhos, de quando te comprava brinquedos e daquele dia fatal em que te levei à feira?”

“Não, não!” Insistia a menina. “Com você não quero ir: meu pai verdadeiro é este aqui”. E apontava para um sinistro charlatão que queria intervir para não deixar escapar a presa! (Mons. De Ségur, Histórias simples).

Quantas vezes assim acontece ao homem como a essa menina! Atraído por uma alegria de baixos instintos, enganado pelo demônio, por este grande ladrão de almas, ele abandona a doce casa da família e perde a amizade do Pai que está nos céus. Tornado presa das paixões, pouco a pouco habitua-se a conviver com elas; feito escravo do demônio, pouco a pouco persuade-se de ser o servidor dele. Deus vai buscá-lo: multiplica os apelos, repete os convites: “Filho, eis-me aqui, sou eu: teu Pai. Volta, suplico-te! Se soubesses quanto anseio por tornar a te ter como meu filho!” Mas o homem, habituado nos pecados, não compreende mais nada, não reconhece mais a voz de Deus, não sabe mais que tem uma alma; e, com a sua conduta, responde ao Senhor: “Nem sequer sei quem és: a mim apraz fazer a minha vontade, o meu senhor é o demônio”. O senhor dele é o demônio? E ele não sabe mais que por Deus foi criado, que por Jesus Homem-Deus foi redimido, que a Deus deve voltar para ser julgado? E não sabe mais que o demônio é o inimigo acérrimo do homem, e que as suas paixões o precipitarão no inferno por toda uma eternidade de tormentos e de pavores?

Não compreende mais nem mesmo os seus interesses temporais.

Eis um homem habituado à paixão do jogo: assim esbanjou a herança de seus pobres pais, arruinou o futuro de seus filhos, já contraiu dívidas; contudo, ainda joga. Prevê que os credores dentro em pouco o assaltarão, e, não podendo pagar, ele será chamado ao tribunal; contudo, ainda joga. Todos já sussurram dele, a sua honra e a de sua família já são atacadas, mas, contudo, ele joga ainda.

Eis um homem habituado à paixão do beber: todo domingo, e mesmo mais frequentemente, ocorrem na sua casa cenas chocantes. Ele volta do botequim onde desperdiçou o ganho de muitos dias; entra em casa em estado lastimável; os olhos revirados, a pessoa descomposta e bamboleante, palavras insensatas e blasfêmias horríveis. Os filhinhos ficam com medo de seu pai e escondem-se junto da mãe, que se cala e chora. Como fará aquela família para prosperar? Como fará aquele infeliz para ganhar o sustento, se as suas contínuas bebedeiras lhe queimam o estômago e dão a todos os seus membros um tremor nervoso? Como crescerão aqueles filhos sob o influxo dos exemplos paternos? Talvez que, depois da embriaguez, ele pense nestas coisas, e pense no calvário a que condena sua esposa; contudo, ele formou em si um tal hábito, que não lhe é mais possível resistir-lhe.

Eis um homem habituado à paixão da impureza: o dia todo, a sua mente freme sob o sopro de mil demônios, seus olhos nunca são guardados e sua língua é um tição do inferno. A sua alma desceu ao nível dos brutos, seus interesses vão mal; mas ele pensa de modo bem diverso. A sua família sofre, mas ele não tem mais coração para os nobres afetos. O mau hábito submergiu-o na lama, e ele nem sequer se lembra mais de que existe o céu.

Eis um homem habituado à paixão da avareza; não dorme, não come bastante. Sempre em ansiedade, é pronto em agarrar o que é dos outros, é lento em conceder o que é seu. Nem uma esmola aos pobres, nem um benefício para as obras pias e nem um sufrágio para os seus mortos. Descura até a necessária educação dos filhos, a quem não concede nem mesmo o necessário para se vestirem: é escravo do dinheiro. E, após uma vida de esforços cruentos, as riquezas acumuladas de quem serão? Não importa: à sua paixão ele não pode dizer não.

Católico, acontece que o pecado, que ao princípio causava horror ao pecador, por efeito do mau hábito, já não repugna: “Agita-os como uma roda, e como uma palhinha diante do soprar do vento” (Sl 82,14).

São Gregório Magno escreve: “Vede a facilidade com que é levantada uma palha pela brisa mais suave; assim também veremos muitos que antes da queda resistiam, ao menos por algum tempo, e combatiam até contra as tentações, mas agora, contraído o mau hábito, sucumbem a qualquer tentação, em toda ocasião de pecar que se apresente. E por quê? Porque o mau hábito os privou da luz”. Diz Santo Anselmo: “O demônio procede com certos pecadores como aquele que tem um passarinho preso por um cordão. Ele o deixa voar, mas, quando quer, o faz cair por terra. Tal semelhança é aplicável àqueles que são dominados pelo mau hábito. São Bernardino de Sena escreve: “Alguns há que pecam sem que a ocasião se apresente”. Compara-os este grande Santo aos moinhos de vento que qualquer aragem faz girar e que continuam em movimento mesmo que não haja grão para moer, e, às vezes, até rodam contra a vontade do dono. Estes pecadores, observa São João Crisóstomo: “... vão forjando maus pensamentos, sem ocasião, sem prazer, quase contra sua vontade, tiranizados pela força do mau hábito. Porque, segundo disse Santo Agostinho: “... o mau hábito se converte logo em necessidade”. O costume, segundo nota São Bernardo de Claraval: “... muda-se em natureza”. Daqui se segue que, assim como ao homem é necessário respirar, assim parece que o pecado se torna necessário para aqueles que habitualmente pecam e se fazem escravos do demônio.

Disse escravos, porque os criados trabalham por seu salário; mas os escravos servem à força, sem paga de espécie alguma. Nisto caem alguns desgraçados: chegam a pecar sem prazer nem desejo.

“O ímpio, depois de ter caído no abismo dos pecados, tudo despreza” (Pr 18,3). São João Crisóstomo aplica estas palavras ao pecador obstinado nos maus hábitos, que, mergulhado naquele abismo tenebroso, despreza a correção, os sermões, as censuras, o inferno e até Deus. Menospreza tudo e se torna semelhante ao abutre voraz que, longe de fugir do cadáver em que se repasta, prefere que os caçadores o matem. Refere o padre Recúpito, que um condenado à morte, indo para o cadafalso, levantou os olhos e, vendo uma donzela formosa, consentiu logo num mau pensamento. O Padre Gisolfo conta que um blasfemo, também condenado à morte, proferiu uma blasfêmia no mesmo momento em que o verdugo o lançava na escada para enforcá-lo. Com razão, pois, nos diz São Bernardo de Claraval que é inútil, em geral, rezar pelos pecadores por hábito e que é melhor pranteá-los como condenados. Como é que eles sairiam do precipício em que se lançaram, se perderam a vista? Seria necessário um milagre da graça. Abrirão os olhos no inferno, quando o reconhecimento de sua desgraça só lhes dá de servir para chorar mais amargamente a sua loucura.

Os maus hábitos, além disso, endurecem o coração, permitindo-o Deus justamente em castigo da resistência que se opõe a seus convites. Diz o Apóstolo que o Senhor “tem misericórdia de quem quer, e endurece a quem quer” (Rm 9,18). Santo Agostinho explica este texto: “Deus não endurece de um modo imediato o coração daquele que peca habitualmente, mas que o priva da graça em castigo da ingratidão e obstinação com que repeliu a que antes lhe havia concedido; e em tal estado o coração do pecador se endurece como se fosse de pedra”.

Seu coração se endurecerá como pedra, e se apertará como a bigorna do ferreiro: “Seu coração é duro como rocha, sólido como uma pedra molar” (Jó 41,15). Sucede assim que, enquanto alguns se enternecem e choram ao ouvir falar do rigor do juízo divino, das penas dos condenados e da Paixão de Cristo, os pecadores por hábito nem sequer se comovem. Falam e ouvem falar destas coisas com indiferença, como se disso não se importassem: e por causa destes golpes do mau costume, a consciência se endurece cada vez mais (Jó 41,15).

Por conseguinte, nem as mortes repentinas, nem os tormentos, trovões e raios, são capazes de atemorizá-los e fazê-los voltar a si. Ao contrário, mergulharão cada vez mais profundamente no sono da morte em que, perdidos, repousam.

Santo Agostinho escreve: “O mau hábito sufoca, pouco a pouco o remorso da consciência de tal modo, que ao pecador habitual os pecados enormes não passam de coisas sem importância”, e: “Perdem pecando, até essa vergonha que a ação culposa traz consigo naturalmente” (São Jerônimo).

São Pedro compara-os ao suíno que se revolve no lamaçal: “A porca lavada tornou a revolver-se na lama” (2 Pd 2, 22), pois assim como este animal imundo não percebe o fétido da estrumeira em que se revolve, assim aqueles pecadores são os únicos insensíveis à hediondez de suas culpas, que todas as outras pessoas percebem e detestam. E se este lodaçal “... lhes tira até a faculdade da visão, é, porventura, para admirar que não voltem a si, nem quando os açoita a mão de Deus” (São Bernardino de Sena). Daí resulta que, em vez de se afligir com os seus pecados, ainda se regozijam, se riem e se vangloriam deles (Pr 2,14). Que indicam estes sinais de diabólica dureza? — pergunta São Tomás de Vilanova. São todos sinais de eterna condenação. Teme, pois, que não te suceda esta desgraça. Se tens algum mau hábito, procura libertar-te agora que Deus te chama. Enquanto sentes abalo na consciência, regozija-te, porque é indício de que Deus ainda não te abandonou. Urge, porém, corrigir-te e sair o mais breve possível desse estado, de outra maneira gangrenar-se-á a ferida e te verás perdido.

Privado da luz que nos guia e endurecido o coração, que admira que o pecador tenha mau fim e morra obstinado em suas culpas? “Um coração obstinado acumula sofrimentos, o pecador acrescenta pecado a pecado” (Eclo 3, 27). Os justos andam sempre pelo caminho reto: “A vereda do justo é reta” (Is 26, 7). Ao contrário, aqueles que pecam habitualmente caminham sempre em linhas tortuosas. Se deixam o pecado por algum tempo, voltam de novo a ele; pelo que São Bernardo de Claraval os ameaça com a condenação. Talvez algum deles queira emendar-se antes que lhe chegue a morte. Mas é precisamente nisto que está a dificuldade: o pecador por hábito, ainda que chegue à velhice, não se emenda: “O homem, segundo o caminho que tomou sendo jovem, não se afastará dele, mesmo quando for velho” (Pr 22, 6). A razão é que — diz São Tomás de Vilanova — “... nossas forças são muito débeis, e, portanto, a alma privada da graça não pode abster-se de novos pecados”. Além disso, não seria grande loucura se nos propuséssemos jogar e perder voluntariamente todos os nossos haveres, esperando reavê-los na última partida?  Não é menor a necessidade de quem vive em pecado e espera reparar tudo no derradeiro instante da vida. Pode, porventura, o etíope mudar a cor de sua pele ou o leopardo as suas malhas? Tampouco poderá levar vida religiosa aquele que tem costumes perversos e inveterados (Jr 13,23), senão que, por fim, se entregará ao desespero e acabará desastrosamente os seus dias (Pr 28,14).

Comentando São Gregório Magno o seguinte texto do livro de Jó: “Abriu-me chaga sobre chaga; caiu sobre mim como um gigante” (Jó 16,14), disse: “Se alguém se vê assaltado por inimigos, mesmo que receba uma ferida, ainda poderá continuar a defender-se; mas se outra e mais vezes o ferirem, irá perdendo as forças, até que, afinal, cai desfalecido. Assim acontece com o pecado. Depois da primeira ou da segunda queda, resta ainda alguma força ao pecador (assistido sempre por meio da graça); mas, se continuar pecando, o pecado se converte em gigante; enquanto o pecador, ao contrário, cada vez mais fraco e coberto de feridas, não pode evitar a morte”. Jeremias compara o pecado a uma grande pedra que oprime a alma (Lm 3, 53); e tão difícil é — acrescenta São Bernardo de Claraval — converter-se quem habitualmente peca, como ao homem sepultado debaixo de enormes pedras e destituído de forças para movê-las, é o livrar-se do peso que o esmaga.

Estou, portanto, condenado e sem esperança? — perguntará, talvez, algum destes infelizes pecadores… Não, se deveras quiseres emendar-te. Mas os males gravíssimos requerem remédios heróicos. Fala-se a um doente em perigo de vida, e se não quer tomar medicamentos, porque ignora a gravidade da moléstia, o médico lhe diz que, se não usar o remédio receitado, morrerá indubitavelmente. Que responderá o enfermo? “Estou pronto a obedecer em tudo. Disso depende a minha vida”.

Católico, a mesma coisa hás de fazer. Se incorres habitualmente em qualquer pecado, estás enfermo e atacado daquele mal que, segundo diz São Tomás de Vilanova, raras vezes se cura. Achas-te em grande risco de condenação. Se quiseres, entretanto, curar-te, eis aqui o remédio. Não deves esperar um milagre da graça. Impende evitar resolutamente as ocasiões perigosas, fugir das más companhias e resistir às tentações... recomendando-te a Deus. É preciso que te confesses a miúdo, que faças cada dia leitura espiritual e te entregues à devoção da Virgem Santíssima, pedindo-lhe continuamente que te alcance forças para não recair. É necessário que te domines e empregues violência. Do contrário incorrerás na ameaça do Senhor: “Morrereis em vosso pecado” (Jo 8,21). Se não aplicares agora o remédio, quando Deus te ilumina, mais tarde dificilmente poderás remediá-lo. Ouve a voz do Senhor que te diz como a Lázaro: “Vem para fora”. Pobre pecador já morto! Sai do sepulcro de tua má vida. Responde depressa e entrega-te a Deus. Teme que não seja este o último apelo que te faz.

 

Eis alguns remédios contra os maus hábitos.

 

Aquele estrambótico filósofo que era Diógenes tomou, um dia, um homem que tinha o hábito de roubar, e começou a ralhar com ele e a lhe mostrar o mal que cometia e a necessidade de se corrigir. Por acaso, passou por aquelas bandas um amigo do filósofo que lhe perguntou: “Diógenes! Que estás dizendo, que assim falas com tanto calor?”

O filósofo volveu um olhar para o amigo que passava e lhe disse: “Estou lavando a cara ao mouro”.

Eu não sou tão pessimista como o antigo sábio, mas estou convencido de que não é coisa fácil corrigir-se de um mau hábito. Assim como a ave percebe estar presa ao fio quando tenta voar, assim também o homem deixa-se enlear pelo mau hábito sem o perceber; mas, quando tenta libertar-se dele, acha-se diante de dificuldades gravíssimas.

E, antes de tudo, é preciso vencer as dificuldades que o demônio suscita contra os que querem recomeçar uma vida nova. Aquele grande monte do áspero Lazio, por muitos anos foi a sede dos deuses do demônio; e, mesmo quando em toda a Itália o culto idolátrico desaparecera, lá permaneciam ainda os bosques consagrados a Vênus e o simulacro de Apolo. Um dia subiu àquele monte uma companhia de homens vestidos de preto e cingidos de couro: eram São Bento e os seus primeiros companheiros, os quais, a golpes de machado, cantando hinos de glória a Cristo vitorioso, derrubaram todo resíduo de paganismo. Dizem que, enquanto os monges trabalhavam, o demônio excogitava as suas vinganças. Uma vez, enquanto eles derrubavam do seu pedestal um ídolo, levantou-se por toda a volta uma chama viva que ameaçava incendiar a montanha. De outra vez, pedras despencaram do cimo da montanha abaixo, esmagando tudo e atroando espantosamente. Horrorizados, os monges quiseram fugir, mas São Bento, tranquilo, deteve-os e encorajou-os com a oração.

Católicos, quando deixastes o monte da vossa alma por anos e anos em poder do demônio; quando permitistes ao demônio erguer dentro de vós um pedestal para nele ser adorado; quando no vosso coração deixastes que a impureza implantasse os seus bosques; não vos admireis se, no momento em que tomardes o machado para abater em vós o reino do demônio, este venha espantar-vos, para não deixar escapar uma presa que ele já acreditava sua. E serão incêndios de paixões que se desenvolverão à primeira tentativa de conversão; e serão pedras que rolarão contra a vossa alma, para abatê-la, toda vez que ela tentar levantar-se do vício e da lama. E também a nós faltará a coragem, como aos primeiros monges beneditinos na conquista de Montecassino. Não desesperemos. Não é fácil vencer um mau hábito, mas também não é uma coisa desesperada como lavar a cara ao mouro.

Vencidos os enganos do demônio, apeguemo-nos à oração com aquela ânsia com que o náufrago se apega à tábua de salvação. A oração é o alimento da nossa alma; e, assim como o corpo que não come se debilita e morre, assim também a alma que não reza debilita-se e sucumbe. O demônio é muito mais astuto e mais forte do que nós; porém, se rezarmos, Deus descerá para o nosso lado; e, se Deus estiver conosco, quem pode estar contra nós?

Ainda mais necessária do que a oração, para os que querem libertar-se do hábito mau, é a frequência aos sacramentos da Confissão e da Comunhão: um purifica e o outro fortifica. Antes de fazer o paralítico  andar, Jesus Cristo o libertou  dos seus pecados: “Confia, filho: teus pecados te são perdoados”. Antes de darmos o primeiro passo na trilha do bem, precisamos libertar-nos do fardo do mal na santa Confissão. A Comunhão, depois, robustecerá as nossas forças e tornar-nos-á temíveis até mesmo ao demônio.

Enfim, precisamos agir contra a inclinação que o mau hábito formou em nós. Quem se desviou da trilha justa deve refazer em sentido oposto todo o caminho errado: assim é também nas coisas espirituais: “Age contra!” Até agora foste demasiado indulgente com o teu corpo? Pois de hoje em diante começa a castigá-lo com alguma mortificação dos olhos, da língua... Até agora foste muito inclinado à avareza? Pois desde hoje seja mais generoso com os pobres, com os que te pedem auxílio, e mais justo contigo e com tua família.

 

 

Pe. Divino Antônio Lopes FP.

Anápolis, 22 de fevereiro de 2009

 

 

Bibliografia

 

Bíblia Sagrada

São Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota

Concílio de Trento, Decr. De peccato original, sess. V

Pe. Francisco Alves, Tesouro de exemplos

Catecismo Romano, II, 2, 48

Santa Catarina de Sena, O Diálogo

Pe. João Colombo, Pensamentos sobre os Evangelhos e sobre as festas do Senhor e dos Santos

Santo Afonso Maria de Ligório, Preparação para a morte

 

 

 

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Pe. Divino Antônio Lopes FP. “Tudo despreza”

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