NÃO SEJAS CURIOSO (Ecl 1, 8)
“O olho não se sacia de ver, nem o ouvido se farta de ouvir”.
Papírio Pretextato, quando menino de doze anos, foi com o pai ao Senado. Tratou-se ali, provavelmente, de algum assunto importante, porque a sessão se prolongou por muito tempo. Voltaram para casa fora de horas. A mãe de Papírio, intrigada e curiosa, chamou o filho à parte e: - Vem cá, filho, dize-me: De que é que trataram hoje no Senado? O pequeno, temendo o rigor excessivo com que, em Roma, se guardavam os segredos do Senado, recusa-se a dizê-lo. Isso, porém, aumentou mais ainda a curiosidade da mãe. Ela questionava e ele calava-se. Afinal, em vista dos pedidos, das carícias e ameaças, o menino fingiu aceder, e disse-lhe ao ouvido, baixinho: - Mãe, vou contar-lhe o que foi, mas a senhora há de guardar rigoroso segredo. - Pois sim, filhinho; eu me calarei, prometo, dize-me então o que foi? - Foi o seguinte: Houve entre os Senadores uma grande controvérsia. Discutiram longamente se seria mais conveniente um marido ter duas ou três mulheres ou se, ao contrário, uma mulher ter dois ou três maridos. - Está visto! E que é que resolveram? - Não ficou resolvido nada; houve muita discussão e o assunto ficou para ser resolvido amanhã, por votação secreta. - Bem, filhinho, não tenhas medo; saberei guardar segredo, como sempre. Durante a tarde e à noite a correria dos criados foi enorme: Criados saem e criados voltam; recados vão e recados chegam a todas as principais damas de Roma. “Olhe, Dona Fulana, venho comunicar-lhe sob rigoroso segredo que, amanhã, o Senado tratará do seguinte assunto, que já está para ser votado... É absolutamente necessário que nos reunamos todas e vamos ao Senado defender os nossos direitos. Entendida?” No dia seguinte, estando os Senadores reunidos, e entre eles Papírio com seu pai, de repente entra um batalhão de senhoras, que, sem mais preâmbulos e em altas vozes, expõem e defendem com energia que é mais conveniente que cada esposa tenha dois ou três maridos, e não o contrário... Os Senadores estavam atônitos. - Que é isto? – diziam, olhando uns para os outros . – Estas mulheres enlouqueceram? Que significa isto? Então Papírio, aproveitando um instante de silêncio, contou-lhes o que se passava com ele no dia anterior e como ele, para guardar segredo e livrar-se das insistências de sua mãe, forjara aquela história. Ela, portanto, traindo o segredo, teria causado todo aquele alvoroço. Os Senadores riram-se; e as damas, bastante envergonhadas, abandonaram o recinto.
I Influência da curiosidade sobre os extravios da imaginação
A curiosidade representa todos os objetos exteriores na imaginação, como em um espelho em que se refletem todas as nossas sensações, e em que elas se conservam muito tempo ainda depois que passaram, porque, deixando de ver os objetos, não deixamos de os imaginar. Uma vez percebidos, ficam interiormente depositados na imaginação que, guarda fiel, no-los representa, sem esperar que lhe peçamos, muitas vezes até nos momentos em que não o quiséramos. Em outro tempo ofereceu-se à nossa vista um objeto curioso, um belo espetáculo. Relaxados que éramos, olhamos o espetáculo com uma avidez, que parecia paixão; e em castigo desta imprudência, a imaginação no-lo representa na oração, nos nossos diversos exercícios espirituais, tão viva e exatamente, que julgamos vê-lo ainda a falar com as pessoas, até mesmo depois de decorrerem meses e anos, porque tem o funesto talento de prolongar sem limites a existência das coisas que já não existem, e de tornar presentes os fatos ainda os mais remotos. Dai, o custar-nos tanto a rezar bem, a viver no retiro, a conservar a paz interior, a adquirir uma verdadeira e sólida piedade. Examinemo-nos sobre um objeto tão importante. Quem quiser adquirir paz interior deve deixar de ser curioso. O curioso que olha para todos os lados... que deseja saber notícias de tudo e de todos... transforma o coração num depósito de lixo: “Não queirais ver tudo, mesmo as coisas lícitas; assim vos habituareis a desviar prontamente os olhos, quando baterem em coisas ilícitas” (Bem-aventurado José Allamano). Católico, é preciso também mortificar a imaginação: “A imaginação não pode estar ociosa, convém, portanto, tê-la ocupada sempre em coisas de proveito, e para isso podem servir-te os avisos seguintes: 1. Procura tê-la sempre ocupada em pensamentos úteis e proveitosos, cuidando com toda diligência evitar os maus pensamentos; porque, se os deixares entrar uma vez, não poderás depois lançá-los fora tão facilmente. 2. Guarda as portas dos sentidos corporais, tendo-as fechadas àquelas coisas que possam prejudicar a alma; porque debalde trabalha em mortificar a imaginação aquele que não procura antes mortificar os sentidos corporais. 3. Nunca estejas ocioso; procura estar sempre ocupado em coisas do serviço de Deus, do bem do próximo e naquilo que exigem as obrigações de teu estado; porque assim ocupada a imaginação, não se divertirá em coisas inúteis ou nocivas. 4. Recorda que estás na presença de Deus, que é o juiz que há de julgar, não só tuas palavras e obras, senão também teus pensamentos; e diante de Deus juiz, ousarias pensar naquilo a que não te atreverias diante de um homem que penetrasse teus pensamentos?” (Santo Antônio Maria Claret). Lembre-se continuamente de que os dois sentidos internos que é preciso mortificar, são a imaginação e a memória, que geralmente atuam de harmonia, pois que o trabalho da memória é acompanhado de imagens sensíveis. São duas faculdades preciosas, que não somente fornecem à inteligência os materiais de que esta necessita para trabalhar, senão que lhe permitem expor a verdade com imagens e fatos que a tornam mais perceptível, mais viva e, por isso mesmo, mais interessante: um resumo pálido e frio não teria encantos para o comum dos mortais. Não se trata, pois, de atrofiar estas faculdades, senão de as disciplinar e subordinar a sua atividade ao império da razão e da vontade; aliás, deixadas a si mesmas, povoam a alma de um sem número de lembranças e imagens que a dissipam, desperdiçam as suas energias, fazem-lhe perder tempo precioso na oração e no trabalho, e criam mil tentações contra a pureza, caridade, humildade e demais virtudes. É, pois, necessário discipliná-las e pô-las ao serviço das faculdades superiores. Regras que se devem seguir. A) Para reprimir os extravios da memória e da imaginação, aplicar-nos-emos, antes de tudo, a afugentar implacavelmente, desde o princípio, isto é, logo que a consciência nos adverte, as imagens ou lembranças perigosas que, recordando-nos um passado escabroso, ou transportando-nos no meio das seduções do presente ou do futuro, seriam para nós uma fonte de tentações. Mas, como há muitas vezes uma espécie de determinismo psicológico, que nos faz passar por devaneios fúteis aos perigosos, premunir-nos-emos contra esta engrenagem, mortificando os pensamentos inúteis, que já nos fazem perder tempo precioso, e preparam o caminho a outros mais perigosos ainda: a mortificação dos pensamentos inúteis, dizem os Santos, é a morte dos pensamentos maus. B) Para melhor chegar a este resultado, o meio positivo mais conducente, é aplicar inteiramente a alma toda ao dever presente, aos nossos trabalhos, estudos e ocupações habituais. É, afinal, o melhor meio de conseguir fazer bem o que se faz, concentrando toda a atividade na ação presente. Lembrem-se os jovens que, para progredirem nos estudos, como nos demais deveres do próprio estado, é mister dar mais lugar ao trabalho da inteligência e da reflexão, e menos às faculdades sensíveis: deste modo assegurarão o futuro e evitarão os devaneios perigosos. C) É utilíssimo, enfim, servir-se da imaginação e da memória para alimentar a piedade, buscando nos Livros Santos, nas orações litúrgicas e nos autores espirituais os mais belos textos, as mais formosas comparações e imagens; utilizar a imaginação para andar na presença de Deus, e representar-se por miúdo os mistérios de Cristo Senhor Nosso e da Santíssima Virgem. E assim, em lugar de atrofiarmos a imaginação, a povoaremos de piedosas representações que desterrarão as que poderiam ser perigosas e nos porão em condições de melhor compreender e explicar aos nossos ouvintes as cenas evangélicas. Católico, os sentidos internos não são menos perigosos que os externos, e, ainda quando baixamos os olhos, as lembranças importunas e as imagens impuras não cessam de nos perseguir. São Jerônimo lamentava-se disso na sua solidão, onde, a despeito do ardor do sol e da pobreza da cela, se via transportado pela imaginação ao meio das delícias de Roma. E, por isso, recomenda com instância que se afugentem imediatamente essas imagens. É necessário afogar o inimigo antes dele crescer e arrancar a cizânia antes dela se desenvolver; aliás, quando a alma é invadida e sitiada pela tentação, o templo do Espírito Santo torna-se um antro de demônios. Para evitar essas imagens perigosas, importa fugir da leitura desses romances ou peças de teatro, onde se descrevem em cores vivas e realistas as paixões humanas, sobretudo, a paixão do amor. Essas descrições não podem deixar de perturbar a imaginação e os sentidos; avivam-se com persistência nos momentos de devaneio, dão à tentação uma forma mais viva e sedutora, e por vezes arrastam o consentimento. Ora, como nota São Jerônimo: “A virgindade perde-se não somente pelos atos externos, mas também pelos internos”.
II Necessidade e maneira de corrigir a curiosidade
Dar largas à curiosidade, procurar ver, saber e ouvir tudo... e depois disso queixarmo-nos das divagações da imaginação, das faltas de atenção na oração, das imagens importunas que nos perseguem e nos conservam numa incessante distração, é imitar o menino que, pondo um objeto diante de um espelho, se agastasse de o ver ali representado. Ler uma carta com um zelo muito humano, deixar a vista errar livremente pelas ruas ou praças públicas, receber com avidez e pedir por curiosidade notícias de tudo o que se diz ou se fazem, ler com empenho os periódicos, os escritos que contêm as narrações mais ou menos interessantes de acontecimentos pitorescos... e querer, depois disso, que o interior esteja apto para a oração, que a oração nos deixe tranquilos, é querer tirar das trevas a luz, da agitação a ordem e a paz: é querer o impossível. Por isso lemos a respeito de São Carlos que, quando lhe falavam das coisas do mundo, se conservava precavido para não se deixar preocupar com as mesmas. Todos os santos têm feito o mesmo. Cuidando da sua alma e dos deveres do seu estado, não desejavam nem buscavam saber noticias; e era assim que se preservavam da maior parte dos extravios da imaginação. A seu exemplo, devemos vigiar sobre os nossos olhos, conservá-los sempre modestos e privá-los de ver o que não precisamos ver; devemos vigiar sobre as nossas palavras e não pedir noticias, nem fazer perguntas acerca do que não necessitamos de conhecer; devemos vigiar sobre os nossos pensamentos e não os deixar divagar por mil ninharias ou objetos fantásticos; do contrário, a imaginação toma-os como realidades, apresenta-os à alma com as suas formas e circunstâncias, e no-las põe em cena com as coisas e pessoas. Vemo-las, ouvimo-las, gozamos da sua companhia, abrasamo-nos em desejos, buscando alcançar o fantasma que nos persegue; e nada mais é necessário para distrair o nosso interior e interromper os nossos exercícios de piedade. O espírito do mundo é querer saber tudo e encher-se de milhares de coisas vãs. O espírito de Deus, ao contrário, induz a que se ignore tudo o que de nada serve ao nosso adiantamento espiritual ou aos deveres do nosso estado. Bem-aventurada ignorância, que facilita à alma o conhecimento das coisas divinas, que a desprende do que poderia alterar a sua paz e a torna senhora de si. Examinemo-nos: Quantas vezes fomos perturbados e inquietados por havermos perguntado o que não necessitamos de saber, e nos termos preocupado com assuntos de que podíamos muito bem abster-nos? Católico, é preciso mortificar rigorosamente os olhos. É parte da inocência ser a pessoa cega, dizia Sêneca, e em verdade, por uma triste experiência sabemos que são muitos os que se precipitaram nos vícios e crimes, perdendo a inocência, pela vista; essa consideração fez que um filósofo pagão arrancasse os olhos com suas próprias mãos, como conta Tertuliano. É verdade que um cristão não pode, nem deve imitar a este infeliz, que com um crime pretendeu evitar outros crimes; mas deve mortificar a vista à imitação de Jesus Cristo Senhor Nosso, que sempre a levou modestamente recolhida; e, por isso, os Evangelistas nos referem as vezes que Ele a levantou, como coisa singular e não acostumada. Procura tu, pois, mortificá-la nos seguintes casos: 1. Abster-te-ás de olhar para os objetos que poderiam suscitar em tua alma pensamentos pecaminosos, como sejam: figuras desonestas, comédias pouco decentes, especialmente se forem acompanhadas de danças, que pela circunstância do modo de vestir e saltar deve considerar-se como coisa provocativa de pensamentos feios. Muitos, que no decurso da comédia estavam com a concupiscência adormecida, ao começar o baile sentiram-se acometidos de um sem número de pensamentos impuros que, abrasando-os no fogo das deleitações morosas, foram causa de que cometessem outros tantos pecados mortais. São muitos os que experimentam o mesmo que Alípio, de quem nos conta Santo Agostinho, que foi ao teatro com propósito de não olhar nenhuma coisa ruim, mas, assim que entrou: olhou, pecou e fez que os outros pecassem. Não vás, pois tu, àquelas reuniões em que os assistentes vestem com pouca modéstia... aos bailes... a certos salões... E quando fores pelas ruas e praças, nunca fites os olhos nas pessoas de outro sexo, especialmente se estiverem vestidas com menos decência, e para que teu cuidado e receio seja maior, devo advertir-te que há certas pessoas de quem o demônio se serve como de bandeiras de alistamento, cujo ofício é recrutar almas para o inferno. 2. Também apartarás a vista das coisas vãs, curiosas e não necessárias, dizendo com o Profeta: Apartai, Senhor, meus olhos para que não vejam a vaidade. Saber mortificar-se nestas e outras coisas, por inocentes e honestas que em si sejam, é um meio poderosíssimo para adiantar na perfeição. De São Francisco de Borja lemos que quando caçava com falcões, no ato destes lançarem sobre a presa, baixava ele os olhos e se privava desse tão procurado espetáculo; e de São Luís Gonzaga conta sua história, que se privava de olhar até os espetáculos curiosos aos quais devia assistir por precisão. Faze tu o mesmo algumas vezes, especialmente quando por dever houveres de andar pelas ruas, praças e lugares públicos. 3. Quando não quiseres mortificar-te, mas dar apenas algum recreio e satisfação à vista: olhando para as flores, árvores, jardins, edifícios e outras coisas honestas... por esta forma, que não tem em si nenhum perigo de pecar, acostuma-te a levantar o coração ao Criador, pensando que Ele é o manancial e origem de toda beleza e ordem, e que d’Ele receberam aquelas criaturas ou objetos quanta beleza, graça e ordem vês neles brilhar, e dando um passo, diz: Se tanta é a beleza das coisas do mundo que é um desterro, qual será a da pátria celeste?
Pe. Divino Antônio Lopes FP. Anápolis, 13 de março de 2009
Bibliografia
Bíblia Sagrada Pe. Francisco Alves, Tesouro de exemplos M. Hamon, Meditações para todos os dias do ano Adolfo Tanquerey, Compêndio de Teologia Ascética e Mística Bem-aventurado José Allamano, A Vida Espiritual Santo Antônio Maria Claret, O Caminho Reto e Seguro para chegar ao Céu
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