OS ÚLTIMOS TEMPOS DA VIRGEM MARIA

(Jo 19, 27)

 

“E a partir dessa hora, o discípulo a recebeu em sua casa”.

 

 

“Jesus, então, vendo sua mãe e, perto dela, o discípulo a quem amava, disse à sua mãe: ‘Mulher, eis aí o teu filho!’ Depois disse ao discípulo: ‘Eis aí tua mãe!” (Jo 19, 26-27).

Um autor do século III, Orígenes, faz notar que Jesus não disse a Maria “esse é também teu filho”, mas “eis aí o teu filho”; e como Maria não teve outro filho senão Jesus, as suas palavras equivalem a dizer-lhe: “esse será para ti doravante Jesus”. A Virgem vê em cada cristão o seu Filho Jesus. Trata cada um como se no seu lugar estivesse o próprio Cristo.

São Josemaría Escrivá comenta: “João, o discípulo amado de Jesus, recebe Maria em sua casa, na sua vida. Os autores espirituais viram nestas palavras do Santo Evangelho um convite dirigido a todos os cristãos para que Maria entre também nas suas vidas”.

Ora, se Maria tivesse filhos, ou se seu esposo ainda estivesse vivo, por que o Senhor a confiaria a João, ou João a ela? Mas, e também por que não a confiou a Pedro, a André, a Mateus, a Bartolomeu? Fê-lo a João, por causa de sua virgindade. Foi a ele que disse: “Eis aí tua mãe”.

Não sendo mãe corporal de João, o Senhor queria significar ser ela a mãe ou o princípio da virgindade: dela procedeu a Vida. Nesse intuito, dirigiu-se a João que era estranho a fim de indicar que sua Mãe devia ser honrada. Dela, na verdade, o Senhor nascera quanto ao corpo; sua encarnação não fora aparente, mas real. E se ela não fosse verdadeiramente sua mãe, aquela de quem recebera a carne, e que o dera à luz, não se preocuparia tanto em recomendá-la como a sempre Virgem. Sendo sua Mãe, não admitia mancha alguma na sua honra e no admirável vaso de seu corpo: “Acolhes a Deus como hóspede, concebendo aquele que é Deus e homem. No passado eras pura diante de Deus, no presente estás repleta do Deus-Homem e gerarás o Homem-Deus. Mãe e Virgem, cheia de júbilo, gloriosa por tua prole e por tua honestidade, fiel a teu filho e a teu esposo” (Santo Ildefonso de Toledo).

Mas prossegue o Evangelho: “E a partir dessa hora, o discípulo a recebeu em sua casa”.

O Pe. Francisco Fernández-Carvajal escreve: “O próprio São João escreve que desde aquele momento o discípulo a recebeu em sua casa. O apóstolo, ao cabo dos anos, quando Maria já não estava na terra, redigiria estas linhas com um doce tremor. Não nos quis deixar outros pormenores desta convivência diária com a Mãe de Deus. Mas podemos imaginar Maria, já anciã, agradecendo as pequenas atenções de João: a janela entreaberta, a água mais fresca no caloroso verão, os alimentos escolhidos, a almofada mais fofa...

Ora, se Maria tivesse esposo, casa e filhos, iria para o que era seu, não para o alheio.

Toledo escreve: “Esta frase (Jo 19, 27) pode ter um duplo sentido: a) Material, a levou à sua casa; b) A tomou entre seus bens espirituais mais estimados”, e: “A tradição fala que João viveu com a Mãe de Jesus desde este momento. É possível que João tivesse casa em Jerusalém... Ele a põe entre os tesouros mais queridos de seu coração, a toma e vive com ela” (Pe. Juan Leal), e também: “João não tinha bens materiais. Havia renunciado a todos por Jesus. Só possuía bens espirituais. Entre esses põe a Mãe de Jesus” (Toledo).

Temo, escreve Santo Apifânio, que isso de que falamos venha a ser deturpado por alguns, no sentido de que pareça estimulá-los a manter as mulheres que dizem companheiras e diletas - coisa que inventaram com péssima intenção.

Obs: “Santo Epifânio, tendo em vista os ‘antidicomarianitas’ de sua época, defende energicamente a virgindade perpétua de Maria, citando como prova o fato de ter sido ela entregue ao apóstolo João. Mas imediatamente teme que certos clérigos aleguem o exemplo do apóstolo para viver com as chamadas ‘diletas’ (agapétes). Passa a negar então que, após o cumprimento da recomendação de Jesus, Maria tenha residido longamente com João. Essa negação leva o autor a falar do fim de Maria, pois logo ocorreria a pergunta: - Então, João não estava com Maria no momento de sua morte? Para responder à dificuldade, Epifânio alude ao silêncio da Escritura sobre o fim de Maria”.

Com efeito, escreve o santo, ali (no caso de João e da Santíssima Virgem) tudo foi disposto por uma providência especial, que tornava a situação desligada das obrigações comuns que, conforme a lei de Deus, se devem observar. Aliás, depois daquele momento em que João a levou consigo, não permaneceu ela longamente em sua casa.

Se alguém julgar que estamos laborando em erro, pode consultar a Sagrada Escritura, onde não achará a morte de Maria, nem se foi morta ou não, se foi sepultada ou não. E quando João partiu para a Ásia, em parte alguma está dito que tenha levado consigo a santa Virgem: sobre isso a Escritura silencia totalmente, o que penso ocorrer por causa da grandeza transcendente do prodígio, a fim de não induzir maior assombro às mentes.

São Dionísio Areopagita escreve sobre uma visita feita à Virgem Maria, mas não menciona o lugar. Ele fala sobre a beleza física de Nossa Senhora: “Confesso na verdade, que não pensava que fora de Deus fosse possível beleza tão sublime e celestial, como a que contemplei. Eu vi a Maria Santíssima! Pude ver e rever com meus próprios olhos a Mãe de Jesus Cristo! Confesso mais uma vez que, quando João me levou à presença deífica da Virgem altíssima, fiquei deslumbrado por um esplendor tão grande, que me desfaleceu o coração e faltou a respiração, oprimido como estava pela glória de tamanha majestade” (Santo Afonso Maria de Ligório, Meditações).

São Cirilo de Alexandria diz que São João Evangelista esteve na Ásia (Éfeso): “Salve, bem-aventurado João, apóstolo e evangelista, glória da virgindade, mestre da honestidade, exterminador de toda fraude diabólica, destruidor do templo de Diana, porto e defesa de Éfeso, conforto dos pobres, refúgio dos aflitos, refrigério e descanso da cidade e de seus moradores. Salve, vaso puríssimo da temperança! A ti virgem, confiou, na cruz, nosso Senhor Jesus Cristo a Mãe de Deus, sempre virgem!”, e: “Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribulação, na realeza e na perseverança em Jesus, encontrava-me na ilha de Patmos...” (Ap 1, 9). Santo Irineu julga que o Apocalipse foi escrito no fim da época de Domiciano, pelo ano 96. Victorino, no século III ou fins do II, escrevia que o imperador Domiciano enviou São João para o desterro, recluindo-o na ilha de Patmos. O mesmo é relatado por São Jerônimo e Eusébio.

Temo, escreve Santo Epifânio, falar nisso e procuro impor-me silêncio a este respeito. Porque não sei, na verdade, se podem achar indicações, ainda que obscuras, sobre a incerta morte da santíssima e muito bem-aventurada Virgem. Pois de um lado temos a palavra proferida sobre ela: “Uma espada transpassará tua alma, para que sejam revelados os pensamentos de muitos corações” (Lc 2,35). De outro lado, todavia, lemos no Apocalipse de João (12), que o dragão avançou contra a mulher, quando dera à luz um varão; e que foram dadas a ela asas de águia, de modo a ser transportada para o deserto, onde o dragão não a alcançasse. Isso pode ter-se realizado nela. Embora eu não o afirme totalmente. Nem digo que tenha ficado imortal nem posso afirmar que tenha morrido. A Sagrada Escritura, transcendendo aqui a capacidade da mente humana, deixa a coisa na incerteza, em atenção ao Vaso exímio e excelente, de sorte que ninguém lhe atribua alguma sordidez própria da carne. Portanto, se ela morreu, não sabemos. E mesmo que tivesse sido sepultada, jamais teve comércio carnal: longe de nós essa blasfêmia!

Obs: “Talvez os antidicomarianitas invocassem o sepultamento de Maria para pôr em dúvida sua pureza virginal”.

 

Quem ousaria, em furor de loucura, impor esse opróbrio à santa Virgem, erguendo contra ela a voz, abrindo a boca para uma afirmação assim nefanda, ao invés de lhe entoar louvores? Quem iria desonrar assim o Vaso digno de toda honra?

São João Damasceno escreve: “Mas, então? Morreu a fonte da vida, a Mãe de meu Senhor? Sim, era preciso que o ser formado da terra à terra voltasse, para dali subir ao céu, recebendo o dom da vida perfeita e pura a partir da terra, após ter-lhe entregue seu corpo. Era preciso que, como o ouro no crisol, a carne rejeitasse o peso da mortalidade e se tornasse, pela morte, incorruptível, pura, e assim ressuscitasse do túmulo”.

Foi a ela que prefigurou Eva, ao receber o título um tanto misterioso de mãe dos viventes (Gn 3, 20). Sim, porque o recebeu depois de ter escutado a palavra: “Tu és terra e à terra hás de tornar”, isto é, depois do pecado.

Numa consideração exterior e aparente, dir-se-ia que de Eva derivou a vida de todo o gênero humano sobre a terra. Mas na verdade, é de Maria que deriva a verdadeira vida para o mundo, é ela quem dá à luz o Vivente, ela a Mãe dos viventes. Portanto, o título de “mãe dos viventes” queria indicar, na sombra e na figura, Maria.

Com efeito, não se aplica, porventura, às duas mulheres aquela palavra: “Quem deu a sabedoria à mulher, quem lhe deu a ciência de tecer?”

Eva, a primeira mulher sábia, teceu vestes visíveis para Adão a quem despojara. Fora condenada ao trabalho. Já que tinha sido responsável pela nudez dele, precisou confeccionar a veste que cobrisse essa nudez externa, que cobrisse o corpo exposto aos sentidos.

A Maria, porém, coube vestir o cordeiro e ovelha; com cujo esplendor e glória como se fora uma lã, foi confeccionada sabiamente para nós uma veste, na virtude de sua imortalidade.

Outra coisa, além disso, pode considerar-se em ambas - Eva e Maria - digna de admiração. Eva trouxe ao gênero humano uma causa de morte, por ela a morte entrou no orbe da terra; Maria trouxe uma causa de vida, por ela a Vida se estendeu a nós. Pois o Filho de Deus veio a este mundo, para que “onde abundara o delito, superabundasse a graça” (Rm 5,20). Onde a morte havia chegado, chegou a vida para tomar seu lugar; e aquele mesmo que nasceu da mulher para ser nossa Vida haveria de expulsar a morte, introduzida pela mulher.

Quando ainda virgem, no paraíso, Eva desagradou a Deus por sua desobediência. Por isso mesmo, emanou da Virgem a obediência própria da graça, depois que se anunciou o advento do Verbo revestido de corpo, o advento da eterna Vida do Céu.

 

Pe. Divino Antônio Lopes FP.

Anápolis, 01 de setembro de 2010

 

Bibliografia

 

Sagrada Escritura

Santo Epifânio, Os últimos tempos da Virgem Maria, P.G. 42, 714ss

Orígenes, Comentário sobre o Evangelho de São João

São Josemaría Escrivá, Cristo que passa, 140

Toledo, Escritos

São João Damasceno, III Homilia sobre a dormição da Mãe Santíssima de Deus, P.G. 96, 735-761

Santo Afonso Maria de Ligório, Meditações

Santo Irineu, Adversus haereses, V, 30

Victorino, In Apoc., 10, 11 e 17, 10

São Jerônimo, De viris illustribus, IX

Eusébio, História Eclesiástica, III, 18, 4

Edições Theologica

São Cirilo de Alexandria, Discurso pronunciado no Concílio de Éfeso, P.L. 77, 1029-1040

Santo Ildefonso de Toledo, A virgindade perpétua de Santa Maria, P.L. 96, 58

Pe. Juan Leal, A Sagrada Escritura, Texto e comentário

Pe. Francisco Fernández-Carvajal, Vida de Jesus

 

 

 

 

 

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