QUE ME BEIJE COM BEIJOS DE SUA BOCA! (Ct 1, 1-17)
“1O mais belo cântico de Salomão. 2 Que me beije com beijos de sua boca! Teus amores são melhores do que o vinho, 3 o odor dos teus perfumes é suave, teu nome é como um óleo escorrendo, e as donzelas se enamoram de ti... 4 Arrasta-me contigo, corramos! Leva-me, ó rei, aos teus aposentos e exultemos! Alegremo-nos em ti! Mais que ao vinho, celebremos teus amores! Com razão se enamoram de ti... 5 Sou morena, mas formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Cedar e os pavilhões de Salma. 6 Não olheis eu ser morena: foi o sol que me queimou; os filhos da minha mãe se voltaram contra mim, fazendo-me guardar as vinhas, e minha vinha, a minha... eu não a pude guardar. 7 Avisa-me, amado de minha alma, onde apascentas, onde descansas o rebanho ao meio-dia, para que eu não vague perdida entre os rebanhos dos teus companheiros. 8 Se não o sabes, ó mais bela das mulheres, segue o rastro das ovelhas, leva as cabras a pastar junto às tendas dos pastores. 9 Minha amada, eu te comparo à égua atrelada ao carro do Faraó! 10 Que beleza tuas faces entre os brincos, teu pescoço, com colares! 11 Far-te-emos pingentes de ouro cravejados de prata. 12 — Enquanto o rei está em seu divã meu nardo difunde seu perfume. 13 Um saquinho de mirra é para mim meu amado repousando entre meus seios; 14 meu amado é para mim um cacho de cipro florido entre as vinhas de Engadi. 15 — Como és bela, minha amada, como és bela!... Teus olhos são pombas. 16 — Como és belo, meu amado, e que doçura! Nosso leito é todo relva. 17 — As vigas da nossa casa são de cedro, e seu teto, de ciprestes”.
Em Ct 1, 1-4 diz: “O mais belo cântico de Salomão. Que me beije com beijos de sua boca! Teus amores são melhores do que o vinho, o odor dos teus perfumes é suave, teu nome é como um óleo escorrendo, e as donzelas se enamoram de ti... Arrasta-me contigo, corramos! Leva-me, ó rei, aos teus aposentos e exultemos! Alegremo-nos em ti! Mais que ao vinho, celebremos teus amores! Com razão se enamoram de ti...”
O Cântico dos Cânticos é um semitismo para indicar o Cântico por excelência da Sagrada Escritura (Bíblia). É atribuído a Salomão, porque era o sábio por excelência, e porque havia gozado como ninguém do amor das mulheres. Segundo a gramática hebraica, o título do livro seria um superlativo: O melhor canto e o mais belo canto. Neste maravilhoso POEMA dramático do Cântico dos Cânticos, tudo é ANÔNIMO e MISTERIOSO, e temos de ceder às exigências da POESIA PURA. Nele é cantado os AMORES dos DOIS ESPOSOS que se BUSCAM e, depois de uma ausência momentânea, VOLTAM a UNIR-SE para NÃO VOLTAR a SEPARAR-SE. Seguindo a tradição judaica – baseada no simbolismo profético – veremos no ESPOSO a DEUS (Yahvé) e na ESPOSA a ISRAEL, justamente nos momentos de seus primeiros amores juvenis, quando se encontraram no deserto e se fizeram promessas de mutua fidelidade e assistência. O poeta, pois, canta estes primeiros amores ideais que não deverão ser manchados com as múltiplas infidelidades da parte de Israel, e que terão seu cume na nova aliança dos tempos messiânicos. “Que me beije com beijos de sua boca!” (Ct 1, 2): São estes, com efeito, os toques que a Esposa começou por pedir no Cântico dos Cânticos, dizendo: Que me beije com beijos de sua boca! (Ct 1, 2). Por ser coisa que se passa em tão íntima união com Deus, onde a alma com tantas ânsias deseja chegar, por isto estima e cobiça mais um destes toques da Divindade, do que todas as demais mercês feitas a ela por Deus (São João da Cruz). “Que me beije com beijos de sua boca!” (Ct 1, 2): Santa Teresa de Jesus comenta: Tenho notado muito que parece que a alma está – ao que se dá aqui a entender – falando com uma pessoa e pede a paz de outra; porque diz: Que me beije com beijos de sua boca! (Ct 1, 2). Sua Majestade dá-se a sentir aos que gozam desta mercê, de muitas maneiras. Uma é: menosprezar todas as coisas da terra e estimá-las em tão pouco como elas de verdade são. Não querer seus bens, por já terem entendido sua vaidade. Não se alegrar senão com os que amam a seu Senhor. A Santa diz que a ESPOSA pede nesse beijo a santa paz que faz aventurar a alma a pôr-se em guerra com todos os do mundo, ficando ela com toda a segurança e em paz... e juntar-se com a vontade de Deus, de maneira que não haja divisão entre Ele e ela, senão que seja uma mesma vontade; não por palavras, não só por desejos, mas posto em obra. “Teus amores são melhores do que o vinho” (Ct 1, 2): Santa Teresa de Jesus explica: Grande é, Esposo meu, esta mercê, saboroso banquete; precioso vinho me dais, que com uma só gota me faz olvidar todo o criado e sair das criaturas e de mim mesma para já não querer os contentos e presentes que até aqui queria a minha sensibilidade. Grande é este dom, não o merecia eu. Depois que sua Majestade o fez maior e a chegou mais a si, com razão diz a alma: Melhores sãos teus amores do que o vinho... Se não estou junto de Vós, que valho? Se me desvio de Vossa Majestade, onde vou parar? Ó Senhor meu, Misericórdia minha e meu Bem! Que maior bem quero eu nesta vida do que estar tão junto de Vós que não haja divisão entre Vós e mim? Está claro que o amor de Deus vale mais do que o vinho, isto é, as coisas passageiras desse mundo. Deus é o ESPOSO e a ESPOSA pode ser também a pessoa que busca fervorosamente a Deus: Escuta o Cântico dos Cânticos e apressa-te a entendê-lo, e a dizer com a amada o que disse a amada, de modo que assim ouças o que ouve a amada (Orígenes). Orígenes escreve sobre o Cântico dos Cânticos 1, 3: Estão, por outra parte, os perfumes do esposo, com cuja fragrância se deleita a esposa que disse: o odor dos teus perfumes é suave (Ct 1, 3). São os aromas uma espécie de perfumes. A esposa, por sua parte, tem já usado e conhecido alguns aromas, isto é, as palavras da Lei e dos Profetas, com os quais, entretanto, antes de chegar o esposo, ela se havia instruído, ainda que moderadamente, e se havia exercitado no culto a Deus, realizando como menina, sob tutores, administradores e pedagogos, pois a Lei tem sido nosso pedagogo até Jesus Cristo (Gl 3, 24). Tudo isso era aromas com os quais a esposa parecia nutrir-se e preparar-se para seu esposo. Porém, quando chegou a plenitude dos tempos e ela cresceu e o Pai enviou o seu Unigênito, ungido pelo Espírito Santo a este mundo, a esposa aspirou a fragrância do perfume divino e, percebendo que todos os aromas que antes havia usado eram inferiores em comparação com a suavidade deste novo e celestial perfume, disse: O cheiro do teu perfume é superior a todos os aromas. “Teu nome é como um óleo escorrendo” (Ct 1, 3): O Nome de Jesus é um nome divino, anunciado a Maria da parte de Deus por São Gabriel: e tu o chamarás com o nome de Jesus (Lc 1, 31). Por isso foi chamado nome acima de todo outro nome (Fl 2, 9), no qual só se acha a salvação (At 4, 12). Este grande nome é comparado pelo Espírito Santo com azeite (óleo): Teu nome é como um óleo escorrendo (Ct 1, 3). E com razão, diz São Bernardo de Claraval; pois, assim como o azeite (óleo) dá luz (ilumina), alimento e cura, assim o nome de Jesus é luz para o espírito, alimento para o coração e medicina para a alma (Santo Afonso Maria de Ligório). Quem possui o verdadeiro poder é o ESPOSO: Olha o que ele disse. Não podes seguir a Cristo se Ele não te atrai (Santo Ambrósio). São Bernardo de Claraval escreve: E se alguém quer compreendê-lo (Canto) tem que amar. O que não ama escutará ou lerá este Canto de amor em vão, pois suas palavras calorosas não podem ser compreendidas por uma alma fria. São Basílio Magno comenta: O livro do Cântico dos Cânticos ensina o modo de se aperfeiçoar as almas, porque nele se se contém a harmonia do Esposo e da Esposa, isto é, a familiaridade e a amizade da alma com o Verbo divino. “Arrasta-me contigo, corramos! Leva-me, ó rei, aos teus aposentos e exultemos!” (Ct 1, 4): São João da Cruz diz: Falando a Esposa no Cântico dos Cânticos ao Esposo, assim se exprime: Arrasta-me contigo, corramos! Leva-me, ó rei, aos teus aposentos e exultemos! (Ct 1, 4). O movimento para o bem, portanto, há de vir somente de Deus, segundo é dado a entender nessas palavras; mas o correr não é só dele nem só da alma, e sim de ambos juntos, significando a ação de Deus e da alma conjuntamente. Antes de iniciar os diálogos e monólogos, e fazendo intervir um coro de preenchimento, como nos dramas helenísticos, o autor faz um avanço das ideias centrais dos sete poemas que se sucederão num conjunto insuperável de harmonia e de beleza. O prelúdio, pois, é um primeiro esboço dos diálogos posteriores entre os dois protagonistas. A ESPOSA, em um fogo de amor, declara ex abrupto (de súbito) suas ânsias incontroláveis de se aproximar do ESPOSO e de gozar de sua intimidade recebendo o BEIJO do AMOR. Só a ela está reservado este privilégio. Por cima da suavidade do vinho – símbolo literário de todas as alegrias sensuais, porque alegra os banquetes e a vida do homem (Sl 104, 15; Eclo 31, 32) – está a atração amorosa do ESPOSO sobre a fascinada ESPOSA. Está presente já a presença de seu AMADO envolto em perfumes no dia de suas núpcias - o odor dos teus perfumes é suave - teu nome é como um óleo escorrendo, e as donzelas se enamoram de ti... Arrasta-me contigo, corramos! Este atrativo sobre a ESPOSA tem também sua parte nas donzelas que constituem o acompanhamento de honra da ESPOSA nos dias dos regozijos nupciais. Elas participam da admiração da ESPOSA e, na medida em que lhes é alcançável – sem ferir os direitos legítimos da que deve ser a legítima ESPOSA –, se sentem unidas à sua transbordante pessoa: e as donzelas se enamoram de ti... Ao ouvir esta declaração da ESPOSA, as donzelas, unidas à esta em um coro comum, declaram seus desejos de seguir ao ESPOSO até sua casa para celebrar os amores dos dois ESPOSOS, que para elas resultam também mais dignos de louvor que o vinho, que com seus versos tantas vezes tem celebrado nos banquetes nupciais. A ESPOSA – salvos seus direitos inalienáveis conjugais – se sente honrada com a atração que seu amado exerce sobre sua corte de honra, o que justifica sua escolha pelo ESPOSO: Com razão se enamoram de ti... O Pontifício Instituto Bíblico de Roma ensina: O nome compreende as qualidades intrínsecas da pessoa. As donzelas são as almas boas, atraídas pelas agradáveis qualidades da donzela. No meio das carícias de um rei, das seduções de uma corte, nós (a esposa e as donzelas do versículo 3) nos conservamos fiéis ao teu amor.
Em Ct 1, 5-7 diz: “Sou morena, mas formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Cedar e os pavilhões de Salma. Não olheis eu ser morena: foi o sol que me queimou; os filhos da minha mãe se voltaram contra mim, fazendo-me guardar as vinhas, e minha vinha, a minha... eu não a pude guardar. Avisa-me, amado de minha alma, onde apascentas, onde descansas o rebanho ao meio-dia, para que eu não vague perdida entre os rebanhos dos teus companheiros”.
As ânsias da ESPOSA revelam sua inquietação para assegurar o amor do seu ESPOSO e gozar de sua intimidade. Inesperadamente, o ESPOSO parece haver se ausentado, quando parecia que o tinha já perto de seus braços, já tendo sentido o cheiro de seus perfumes. Não se sabe o porquê dessa inesperada ausência. Ele foi desprezado, não gostou do rosto dela ou foi atormentado pelos raios solares? Estaria o ESPOSO querendo provar o amor de sua ESPOSA fazendo-a provar a amarga ausência? Em todo o livro encontramos esse julgar o amor, escondendo-se os amantes para fazer mais sensível a mútua atração com a ausência. O poeta julga maravilhosamente com todos os recursos da psicologia dos amantes em suas relações para encenar seu drama de amor espiritual entre DEUS (Yahvé) e ISRAEL. Cada poema parece ter a uma unidade, pois sete vezes parecem reproduzir-se no livro os desejos da ESPOSA por ver o seu ESPOSO, a mútua contemplação de ambos, e, finalmente, a mútua posse, conforme o esquema do prólogo. D. Buzy comenta: Sete vezes, no Cântico dos Cânticos, tudo se acaba, e sete vezes começa de novo do mesmo modo, seguindo as leis de uma mesma evolução. Este feito elimina todo sistema histórico, alegórico ou dramático que queira prolongar o mesmo relato ou a mesma ação desde o princípio até o fim. São poemas distintos e convergentes; não há nem história, nem alegoria, nem drama seguido. Esta repetição sete vezes do mesmo tema desenvolvido de um modo paralelo parece fundar-se na distribuição dos sete dias dos festejos nupciais do folclore ambiental. O hagiógrafo cantou os amores de DEUS (Yahvé) e ISRAEL em sete poemas nos que se repete substancialmente o mesmo processo conceitual. Neste primeiro poema encontramos, com efeito, um diálogo dos esposos, as confidências da ESPOSA, a contemplação recíproca de ambos os esposos, e, finalmente, a mútua plácida (tranquila) posse. A ESPOSA, muito excitada por suas ânsias amorosas, declara em voz alta suas íntimas inquietações às filhas de Jerusalém – o coro das donzelas –, suas confidentes que lhe acompanham especialmente nestes festejos nupciais. Elas formam uma escolta de honra, e durante dias vão cumprir sua missão de declarar as belezas da ESPOSA e de acalmar suas angústias e temores até que os festejos culminem com a entrega definitiva no matrimônio da ESPOSA ao ESPOSO. O hagiógrafo dramatiza maravilhosamente, no diálogo da mais alta poesia, as declarações de amor de ambos desposados. Na ausência do seu amado, a amada pensa em suas possíveis imperfeições físicas que motivaram a separação. Reconhece que não possui a cor rosada da donzela que passou seus anos tranquilamente em casa, mas possui a cor de uma lavradora que levou uma vida dura guardando videiras, porque seus irmãos – os filhos de minha mãe – lhe trataram mal depois da morte do seu progenitor. Ao invés de guardá-la em casa cuidadosamente até que chegasse o momento do seu casamento, deram-lhe um trabalho duro, próprio de mercenários: guardar videiras. Por isso está morena. Sua cor escura não obedece a uma fealdade física, mas ao que está tostada pelo sol quente do Oriente. Seu rosto atual de lavradora reflete uma história de trabalho e de provação. As donzelas, pois, devem perceber a sua situação para julgar sua atual beleza. Sua cor morena se assemelha às tendas de Cedar, feitas de pele de cabras negras, como ainda se vê nos acampamentos dos beduínos (Cedar é o segundo filho de Ismael – Gn 25, 13 –, e deu nome a uma tribo de nômades do deserto arábico). Uma segunda comparação realça mais sua beleza morena: pavilhões de Salma (Salomão). O poeta tem interesse em relacionar os seus protagonistas com a magnificência do suntuoso rei de Israel, que com seu numeroso harém parecia aos olhos do povo hebreu como o modelo do monarca feliz oriental. Estas alusões do Cântico dos Cânticos aos palácios de Salomão dão um marco de grandeza a toda a obra que tem especial importância para os leitores judeus, os quais viam no reinado se Salomão a idade de ouro da história de Israel. “Não olheis eu ser morena: foi o sol que me queimou” (Ct 1, 6): É fácil compreender que a tradição cristã vê nesse trecho uma imagem da alma que, purificada de seus pecados pelo Batismo e pela Penitência, recobra sua beleza original. Porém, também se aplicou esta imagem à Igreja: A Igreja, vestida com estas vestes que recebeu pelo banho da regeneração, disse no Cântico dos Cânticos: Sou morena, mas formosa, ó filhas de Jerusalém. Morena, pela fragilidade da condição humana, bela pela graça; morena, porque venho dentre os pecadores, bela pelo sacramento da fé (Santo Ambrósio). “... eu ser morena” (Ct 1, 6): E se, aos olhos do mundo, ignorante e maligno, a alma eleita que passa a sua vida adejando (esvoaçando) qual abelha em torno do Tabernáculo e a girar qual outra terra em volta do seu sol; se aos olhos do mundo, digo, parece uma tal alma bem mesquinha, uma beleza descorada e sem brilho, bem poderá ela repetir-se: Não repareis em seu ser morena, porque o sol (eucarístico) me mudou a cor (Ct 1, 5). As almas, com efeito, devotadas ao amor de Jesus Sacramentado, são como as flores que, levadas à Igreja, murcham e fenecem junto do tão querido Tabernáculo (Frei Antonino Castellammare). A frase: não era minha videira que guardava, parece recarregar o ritmo e é considerada por não poucos críticos como adição de um copista que queria explicar e justificar o abandono por parte da ESPOSA das videiras de seus irmãos para dedicar-se à própria, que é de seu amado. Os alegoristas Robert, Ricciotti, Joüon e Feuillet, veem nestes detalhes literários alusões à história de Israel. O coro de donzelas representa as nações gentílicas que admiram a sorte histórica de Israel. As câmaras do rei são os departamentos do templo de Jerusalém. Os irmãos da esposa que a obrigaram a guardar as vinhas são os caldeus (o antepassado Abraão era oriundo da Mesopotâmia). Os trabalhos de lavradora deixaram-na morena trabalhando para os caldeus (guardando suas videiras); em mudança, não foi possível guardar a sua própria videira, o território da Palestina, que lhe pertencia. Arrependida, vai buscar Israel, seu ESPOSO, o pastor de seu rebanho; e deseja não mais extraviar-se atrás de outros pastores, que são os cultos idolátricos das nações estrangeiras. Uma vez declarada a desculpa de sua cor – que possivelmente afastara a presença do seu amado –, a ESPOSA decide abandonar a casa paterna onde seus irmãos a tratam com desconsideração, e lançar-se com ânsias naquele que constitui seu verdadeiro e único amor. Ela que exerceu também o ofício de pastora se lança no meio dos pastores esperando encontrar ao amado de sua alma. Ela sabe que em determinadas horas os rebanhos se colocam à sombra das palmeiras nos oásis quando o calor do meio-dia está muito forte. É a hora do descanso dos pastores, e, portanto, a ocasião de encontrá-lo. Depois, ao cair do sol, terá que guiar de novo seu rebanho pela estepe entre problemáticos pastores. A ESPOSA tem pressa em localizar o seu amado, que sem dúvida descansa junto ao rebanho e dos pastores; porém, na geografia da Palestina é muito fácil de extraviar-se. Os temores da ESPOSA são, pois, explicáveis: antes de começar a caminhar, procura descobrir em alta voz o caminho do amado, para não seguir pastores estranhos e perigosos. Os poetas de todos os tempos têm buscado na vida livre pastoril o marco adequado para cantar os amores dos protagonistas de suas obras literárias. O hagiógrafo nisto não é uma exceção. Existia uma razão para situar os amores de DEUS (Yahvé) e de ISRAEL num ambiente pastoril, pois o povo eleito foi guiado no deserto por Deus como solícito pastor ao serviço de seus interesses até levá-lo aos pastos da terra prometida. São Gregório de Nissa contemplando a Jesus Cristo como Amado e Bom Pastor escreve: Onde pastoreias Bom Pastor, Tu que carregas sobre os ombros a todo o rebanho? Mostra-me o lugar de repouso, guia-me até o pasto nutritivo, chama-me por meu nome para que eu, ovelha tua, escute sua voz, e tua voz me conduza à vida eterna: indica-me, amor da minha alma, onde pastoreias. Chamo-te deste modo, porque teu nome supera qualquer outro nome e qualquer inteligência, de tal maneira que nenhum ser racional é capaz de pronunciá-lo ou de compreendê-lo. Este nome, expressão de tua bondade, expressa o amor de minha alma para ti. Como posso deixar de te amar, a ti que de tal maneira me tens amado, apesar da minha negrura, que tens entregado a sua vida pelas ovelhas do teu rebanho? Não pode imaginar-se um amor superior a este, o de dar a tua vida em troca da minha salvação.
Em Ct 1, 8-11 diz: “Se não o sabes, ó mais bela das mulheres, segue o rastro das ovelhas, leva as cabras a pastar junto às tendas dos pastores. Minha amada, eu te comparo à égua atrelada ao carro do Faraó! Que beleza tuas faces entre os brincos, teu pescoço, com colares! Far-te-emos pingentes de ouro cravejados de prata”.
Às perguntas inquietas da desposada em busca do seu amado, responde o coro dando a entender que sabe onde se encontra este. Não tem mais que seguir as pegadas do rebanho, ainda que tenha que andar por vales e colinas em busca do seu dileto ESPOSO. Para realizar mais frutuosamente a sua viagem, deve ela mesma conduzir sua manada de cabritos para os lugares de reunião nos oásis, onde estão os rebanhos de todos os pastores da região. Entre eles há de aparecer o amado. A imagem pastoril desaparece inesperadamente, e o poeta faz entrar em cena o ESPOSO, sem detalhar as cenas do encontro. Este, ao ver avançar seu belo busto erguido com seu peito carregado de colares policromados, a compara à égua atrelada ao carro do Faraó. A mútua admiração dos ESPOSOS há de entender-se dentro da fraseologia da poesia oriental, cujos gostos não coincidem com os nossos. O primitivismo das metáforas resulta encantador para o intérprete que trata de explicá-las em seu antigo marco bíblico. A menção do cortejo do faraó tem especial encanto por seu exotismo. As mentes simples dos israelitas em Canaã haviam ouvido falar das suntuosidades da corte faraônica. O poeta não encontra algo semelhante mais atraente para descrever a majestade e ricos adornos da ESPOSA que o da égua atrelada ao carro do Faraó. Que beleza tuas faces entre os brincos, teu pescoço, com colares! (Ct 1, 9-10). Passando da metáfora (guardiã de videiras, pastora de cabras e égua do faraó) à realidade, o poeta põe na boca do ESPOSO umas expressões admirativas no sentido direto: seu pescoço está transbordante de beleza, adornado de joias de toda espécie. A face de sua ESPOSA está entre joias e pedrarias, destacando-se por sua cor atraente. O poeta passa com toda liberdade da descrição de uma pastora morena, tostada pelo sol, à de uma rainha rosada oriental, adornada com as mais preciosas joias. Estas mudanças bruscas são frequentes no livro. O hagiógrafo escreve com liberdade a poesia pura. A imaginação ardente prevalece sobre o discurso frio da lógica. Por ele, o poeta bíblico apresenta prontamente as cenas no marco do idílio (entre os antigos gregos, qualquer poema curto, descritivo, narrativo, dramático, épico ou lírico) pastoril como dentro dos palácios salomônicos, segundo as conveniências de cada cena. O ESPOSO, entusiasmado com a beleza de sua ESPOSA, promete aumentar os adornos atuais com pingentes de ouro e recamados de prata: Far-te-emos pingentes de ouro cravejados de prata (versículo 11). “Far-te-emos pingentes de ouro cravejados de prata” (Ct 1, 11): A Esposa, nos Cânticos dos Cânticos, quando desejava a posse do Amado, recebeu de Deus a promessa de que lhe daria tanto quanto fosse possível nesta vida, dizendo ele: Far-te-emos pingentes de ouro cravejados de prata (Ct 1, 11). Com isto prometia dar-se a ela encoberto pela fé (São João da Cruz).
Em Ct 1, 12-17 diz: “— Enquanto o rei está em seu divã meu nardo difunde seu perfume. Um saquinho de mirra é para mim meu amado repousando entre meus seios; meu amado é para mim um cacho de cipro florido entre as vinhas de Engadi. — Como és bela, minha amada, como és bela!... Teus olhos são pombas. — Como és belo, meu amado, e que doçura! Nosso leito é todo relva. — As vigas da nossa casa são de cedro, e seu teto, de ciprestes”.
À busca angustiosa e incerta sucedeu o encontro agradável. Ambos os ESPOSOS se declaram mutuamente sua admiração em metáforas cheias de lirismo oriental. O ESPOSO, que antes era apresentado como pastor, agora é chamado de rei por sua amada, exatamente como ela, antes pastora, era apresentada como rainha ou princesa adornada com ricos adornos. Agora o ESPOSO-REI está sentado em seu divã do palácio, e a ESPOSA se aproxima trêmula espalhando o seu perfume de nardo (Nardo: do persa nardin e sânscrito nalada, era um perfume de excepcional preço – Lc 7, 37-38; Jo 12, 3). Quando já o tem em seus braços, lhe parece sentir o aroma balsâmico da mirra, goma resinosa que exala um perfume forte. Na antiguidade, as donzelas levavam no pescoço, entre seus seios, uma bolsinha de plantas aromáticas que exalavam seu fragor constantemente. Para a amada, seu amado é esta bolsinha de mirra que perfuma seu corpo de um modo permanente. É também cacho de cipro florido entre as vinhas de Engadi, localidade famosa na costa ocidental do mar Morto; famoso oásis onde haviam de estabelecerem-se os essênios no primeiro século do cristianismo (Engadi significa em hebraico, fonte do cabrito). O poeta nomeia esta localidade fazendo-se eco da fertilidade legendária desta região, como antes havia mencionado o cortejo do faraó. O cipro em forma de cachos perfumados devia de ser famoso naquela região. “Um saquinho de mirra é para mim meu amado repousando entre meus seios” (Ct 1, 13): Ruperto Abade contempla Maria Santíssima dizendo ao Filho enquanto o alimentava: Um saquinho de mirra é para mim meu amado repousando entre meus seios (Ct 1, 13). Meu Filho, eu te aperto entre meus braços porque muito te amo; mas quanto mais te amo, tanto mais para mim te transformas em ramalhete de mirra e de dor, pensado em tuas penas. Tu és a fortaleza dos Santos, e um dia entrarás em agonia; és a beleza do paraíso, e um dia serás desfigurado; és o Senhor do mundo, mas um dia serás preso como um réu; és o Criador do universo, mas um dia te verei desfigurado pelas pancadas; numa palavra, tu és o Juiz de todos, a glória dos céus, o Rei dos reis, mas um dia serás sentenciado, desprezado, coroado de espinhos, tratado como rei de escárnio e pregado num patíbulo. E eu que sou tua Mãe, eu, que te amei mais que a mim mesma, terei de ver-te morrer de dor, sem te poder dar o menor alívio: Um saquinho de mirra é para mim meu amado. Orígenes e São Gregório de Nissa dizem que os perfumes e as fragrâncias representavam os dons de Deus com os quais a amada torna-se bela; na tradição ascética representam as virtudes da amada que vem também de Deus. O ESPOSO declara a beleza de sua amada: Como és bela, minha amada, como és bela!... Teus olhos são pombas. O olhar doce e encantador da pomba é o melhor reflexo da pura e extasiada olhada da ESPOSA. Esta responde proclamando a formosura do seu amado e se referindo à câmara nupcial, onde se havia de consumar o amor marital: Como és belo, meu amado, e que doçura! Nosso leito é todo relva. Os ESPOSOS haviam sido apresentados primeiro como pastores vagando com seus rebanhos pela selvagem campina, e depois como personagens régios. A ESPOSA contentando com o mais humilde, fala de um leito silvestre feito de relva verde em que se dispõe em passar a noite: Nosso leito é todo relva. Porém, o ESPOSO, julgando como personagem régia, fala de um palácio cujas vigas da nossa casa são de cedro, e seu teto, de ciprestes; justamente como era o famoso palácio de Salomão (1 Rs 5, 22-24; 7, 2-8). “Como és bela, minha amada, como és bela!... Teus olhos são pombas. — Como és belo, meu amado, e que doçura!” (Ct 1, 15-16): São João da Cruz comenta: Os amorosos presentes feitos pelo Esposo à alma neste estado são inestimáveis; os louvores e requebros de amor divino que se trocam frequentemente entre os dois são indizíveis. Ela se emprega em louvar e agradecer a ele; ele, em engrandecer, louvar, e agradecer a ela. O Pontifício Instituto Bíblico de Roma comenta (Ct 1, 12-17). Recusa da ESPOSA; para ela toma o lugar de tudo o amado que sempre se apossa do seu coração. O perfume suave do nardo denota as amáveis qualidades da esposa, ou talvez, em melhor sentido, o seu amado, que logo a seguir é chamado bolsinha de mirra. A mirra era uma resina olorosa, guardada em pequenas caixas ou bolsinhas. Alquena (do árabe alhena), a lawsônia dos botânicos, da família das litráceas, arbusto que atinge dois ou três metros de altura, com ramos opostos, que termina num belo cacho de flores brancas, perfumadíssimas, das quais se extrai, ainda hoje, no Oriente, uma essência usada para tingir a cútis (película que recobre a pele das pessoas). ESPOSO e ESPOSA confirmam-se o afeto mútuo, satisfeitos com sua união na vida simples dos campos.
Pe. Divino Antônio Lopes FP (C) Anápolis, 09 de julho de 2015
Bibliografia
Sagrada Escritura Pe. Maximiliano Garcia Cordero, Bíblia Comentada D. Buzy, o. c. 299-300 EUNSA São Bernardo de Claraval, In Cantica Canticorum 79, 1 São Basílio Magno, In principium Proverbiorum 1 Orígenes, In Canticum Canticorum 1; 1, 1, 2-3 Santo Ambrósio, De Sacramentis 5, 10; De mysteriis 35 São Gregório de Nissa, In Canticum Canticorum commentarius 2 Frei Antonino de Castellammare, A alma eucarística Santo Afonso Maria de Ligório, Meditações Ruperto, Escritos São João da Cruz, Obras Completas Santa Teresa de Jesus, Obras Completas Pontifício Instituto Bíblico de Roma
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