OFEREÇAIS VOSSOS CORPOS COMO HÓSTIA VIVA (Rm 12, 1)
“Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual”.
I. PONTO
POUCOS ENTENDEM ESTA LINGUAGEM
No Novo Testamento faz-se um claro apelo ao oferecimento dos cristãos, já não por meio de animais, como aconteceu na Antiga Lei para os Judeus, mas de si mesmos. O novo culto há de ser espiritual – como recordou Jesus Cristo à Samaritana –, não puramente material; há de ser vivo, santo (não simplesmente exterior e formal) e agradável a Deus Jo 4, 23. Com efeito, o Povo de Deus é convocado e reunido pela virtude da mensagem apostólica, de tal modo que todos quantos pertencem a este Povo, uma vez santificados no Espírito Santo, se ofereçam como hóstia viva, santa e agradável a Deus. Encontramos o fundamento deste sentido sacerdotal da vida do cristão no Sacramento que nos incorpora em Jesus Cristo como membros seus, pois pelo Batismo, fomos todos constituídos sacerdotes da nossa própria existência, para oferecer vítimas espirituais que sejam agradáveis a Deus por Jesus Cristo (1 Pd 2, 5), para realizar cada uma das nossas ações em espírito de obediência à vontade de Deus, perpetuando assim a missão do Deus-Homem. Dia a dia, o cristão pode e deve oferecer-se juntamente com Cristo na Santa Missa, pois para que a oblação, com a qual neste Sacrifício os fiéis oferecem ao Pai Celestial a vítima divina, alcance o seu pleno efeito (...) é preciso que se imolem a si mesmos como hóstias (...) e, desejosos de se assemelharem a Jesus Cristo, que sofreu tão acerbas dores, ofereçam-se como hóstia espiritual com o próprio Sumo Sacerdote e por meio d’Ele mesmo. A consequência será que toda a vida cristã e a luta que comporta ficarão empapadas de um profundo sentido sacerdotal: Se eu renuncio a tudo o que possuo, se levo a cruz e sigo a Cristo, ofereci um holocausto no altar de Deus. Ou se dou a queimar o meu corpo no fogo da caridade (...) ofereci um holocausto no altar de Deus (...); se mortifico o meu corpo e me abstenho de toda a concupiscência, se o mundo está crucificado para mim e não para o mundo, então ofereci um holocausto no altar de Deus e torno-me sacerdote do meu próprio sacrifício (Orígenes). Cada um de nós há de sentir a responsabilidade de trazer – com a sua luta interior, com as suas virtudes – nova seiva ao resto dos membros do Corpo Místico de Cristo. Portanto, não são de todo exatas essas formas de pensar que distinguem as virtudes pessoais das virtudes sociais. Não há virtude alguma que fomente o egoísmo. Cada uma redunda necessariamente no bem da nossa alma e das almas dos que nos rodeiam (...). Temos de sentir-nos solidários e, na ordem da graça, estamos unidos pelos lações sobrenaturais da Comunhão dos Santos. O Pe. Juan Leal comenta: Eu os exorto, disse São Paulo, pela misericórdia de Deus, a oferecer vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Todo o contexto tem um sentido litúrgico. Talvez tenha São Paulo diante dos olhos o culto judeu e projeta sobre a vida cristã os elementos cultuais: ministro e vítima. A vontade do cristão é, neste caso, o oferente; a vítima é o corpo, matéria mais nobre que os animais imolados no culto de Israel. Porém, toda a vítima deve ser viva, santa e agradável a Deus. O cristão, partícipe de Cristo, é vítima viva, com uma vida superior à das vítimas dos sacrifícios judeus e pagãos; a união a Cristo, única vítima verdadeiramente grata a Deus, faz do cristão uma vítima santa, sem mancha e, por isso mesmo, agradável aos olhos de Deus. Pondo seus corpos ao serviço de Deus e fazendo de sua vida uma liturgia, os cristãos rendem a Deus o culto justo que se lhe deve. Culto justo, porque é um culto conforme não só às exigências da razão natural, que reflexiona sobre as relações entre Deus e o homem, mas às exigências da razão iluminada pelo Espírito de Cristo. Como é lamentável ver alguns, que poderiam fazer de seus corpos um belíssimo sacrifício a Deus, desconhecerem o bem que deles se esperava. Ricos, delicados, dotados de nobres disposições, seriam vítimas escolhidas se oferecidas ao Senhor. No entanto, mergulham nos falsos deleites do mundo. Não maravilhará então esta exclamação do Apóstolo: “Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como hóstia”. Sabe o Apóstolo que se muitos não o fazem é por ignorância: por isso não censura, mas suplica. De outro lado, se alguém pudesse desejar na terra ter nascido filho de rei, graciosíssimo, garbosíssimo, atraentíssimo, por que o haveria de desejar? Para entregar-se ao prazer como um Adonias ou um Absalão, ou para poder ser um êmulo de Isaac? Poucos, todavia, entendem esta linguagem: este último ponto, sobretudo, pouquíssimos o compreendem. Fazem da vida um sacrifício a si mesmos, não a Deus. E é mais comum entregarem-se generosamente a Deus homens de origem pobre, que pessoas da chamada nobre linhagem. E tu? Em que sentido amas teu corpo? Vítima a Deus que te outorgou? Pensa que São Paulo se dirige a ti pessoalmente: “Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como hóstia”.
II. PONTO
FELIZ DE TI SE SOUBESSES SACRIFICAR TEU CORPO A DEUS
Três os elementos do sacrifício: a vítima, a oblação da vítima, a sua morte. Todos os três se acham expressos pelo Apóstolo: “o corpo”, - a vítima; “ofereçais” – a oblação, “como hóstia” – a imolação da vítima. Não se trata, é verdade, de sacrifício real, mas metafórico. Por esta razão se diz de apresentar-se a Deus como “hóstia viva”. Feliz de ti se soubesses sacrificar teu corpo a Deus, como fizeram os mártires! Talvez não estejas destinado ao martírio, mas deves substituir o sacrifício de morte pelo sacrifício de mortificação. Este é um martírio contínuo: teu corpo deverá ser, ao mesmo tempo, vivo e vítima. Talvez penses somente em sustentá-lo, em regalá-lo, não em sacrificá-lo. Entretanto, esta a única razão para sustentá-lo: poder mais longamente sacrificá-lo. Se te não é dado morrer de uma vez por Deus, como Santo Estêvão, São Pedro, São Paulo e São Lourenço; deves alegrar-te de viver para tornar a morrer cada dia: “Morro cada dia” (1 Cor 15, 31). Quais as maneiras, no entanto, de oferecer a Deus o teu corpo como vítima? Três: 1) Os padecimentos exigidos para dar a Deus o culto devido, como seja levantar-te prontamente para a oração, permanecer ajoelhado durante a recitação do ofício, curvar-se, e mil outros ritos a fazer com decoro. Este é o sacrifício da religião: “O sacrifício de louvor me honrará” (Sl 49, 23). 2) As penitências que escolheres como réu da ira divina, para punir-te a ti mesmo, em tua carne rebelde: a penitência contra o teu corpo. É sacrifício de justiça: “Oferecei sacrifício de justiça e esperai no Senhor” (Sl 4, 6). 3) Fadiga aceita a serviço do próximo: consumindo-te no estudo, pregando ou exercitando as obras de misericórdia, espirituais ou corporais. É o sacrifício da caridade: “Quem usa de misericórdia oferece um sacrifício” (Eclo 35, 4). Em qual destes três sentidos te encontras disposto a sacrificar-te? Ou desdenhas de todos? Nesse caso, não serás hóstia ofertada ao teu Deus.
III. PONTO
ASSASSINAR O PRÓPRIO CORPO
Há os que sacrificam seu corpo: mas a que Deus? Ao deus de sua paixão: os gulosos, míseros, tem por deus “o próprio ventre” (Fl 3, 19); os avaros têm por divindade o dinheiro, os ambiciosos a dignidade, os libidinosos suas obras reprováveis. Esses tais entregam seus corpos como vítimas sujeitando-se até aos sofrimentos e cansaços muito maiores dos que haveriam de suportar por Cristo. Gostarias de perder teu corpo dessa forma? Jamais! Quero que teu corpo seja vítima, mas de maneira diversa da escolhida pelos mártires do diabo. Quero que sejas vítima santa: “Exorto-vos a oferecerdes o vosso corpo como hóstia viva e santa”. Santo é o que é consagrado a Deus. Mas ao Deus verdadeiro, não aos falsos. Por isso as antigas vítimas dos gentios, embora imoladas e oferecidas à maneira dos judeus, não eram santas, mas imundas, profanas e pútridas: não eram oferecidas ao Deus que convinha. Pois então examina particularmente tua vida: verifica se te convém fazer sacrifícios que não sejam todos em honra do Deus verdadeiro, totalmente a seu gosto, para sua glória, para seu reconhecimento. Se procedes de outra maneira, teu corpo será vítima, sim, mas não santa. Não santa? Iniquíssima até, pois subtrairás o que é devido a Deus em favor de outrem. Não és todo dele? Por que, então, te consumires em prol de outros? Mantêm-te na tua dignidade, não te entregues como vítima a quem quer que seja. Coortes? Tribunais? Negócios? Prazeres? Deves ser vítima, mas do verdadeiro Deus. Aquele que imola um boi – de maneira diferente daquela pela qual deveria ser imolado – é como o que mata um homem (Is 66, 3). Assim sendo, considera como será o que imola um homem. Toda vez que te consomes por algo que não seja o serviço divino, não sacrificas o teu corpo, mas o assassinas.
IV PONTO
NÃO É BASTANTE SACRIFICAR O CORPO
Os judeus, após a vinda de Cristo, imolavam vítimas ao verdadeiro Deus, vítimas certamente santas: para que, no entanto? Não eram agradáveis, já havia o Senhor repudiado seus sacrifícios: “Que farei da multidão de vossas vítimas? Delas estou farto” (Is 1, 11). Não é bastante que sacrifiques teu corpo vítima ao verdadeiro Deus, como aqueles padecimentos, fadigas e penitências acima referidos. É necessário ainda que, ao fazeres a oferta, estejas em graça, pois do contrário a vítima não será aceita apesar de ser santa. Eis o que diz o Apóstolo: “Exorto-vos a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus”. Quer ele que a tua vítima se distinga das dos gentios e por isso diz: “santa”. Também da dos judeus: “aceita por Deus”. Não te iludas, portanto, considerando boas em si mesmas as tuas vítimas, pois não é bastante: é mister que sejam boas também quanto ao ato de as fazeres. Valerá muito fazer uma grande Quaresma de jejum, mas em pecado, esperando para livrar-se do pecado pela Páscoa? “As vossas vítimas não me agradam” (Jr 6, 20) diz o Senhor. Seja: tais vítimas são boas em si mesmas, e não levam a contaminação dos sensuais, dos ambiciosos, dos avarentos, dos glutões, que sacrificam a um deus falso. Por isso não desagradam propriamente, mas deixam de agradar enquanto está presente o pecado: é preciso confessar-se quanto antes. Então as obras se tornarão santas não somente, mas aceitas. Darão então fruto de graça e de glória. Alcançarão sua alta finalidade. Poderás lamentar que teu campo não produz, se primeiramente o semeias e só depois o cultivas? “Preparai-vos uma terra nova e não pretendais semear sobre os espinhos” (Jr 4, 3). Não te contentes, todavia, com que sejam tuas obras agradáveis a Deus de qualquer maneira; esforça-te para que lhe agradem em sumo grau. E assim, sempre que sacrificares o teu corpo, acompanha o sacrifício com os atos mais perfeitos do amor divino; porque também a esta disposição desejava aludir o Apóstolo quando ajuntava: “uma hóstia aceita a Deus”. Quer ele que o teu sacrifício seja feito, conforme a antiga expressão, “em odor de suavidade”.
V PONTO
A OBLAÇÃO DO JUSTO ENRIQUECE O ALTAR
Em consequência de tudo o que foi dito, acrescenta o Apóstolo que o teu obséquio “deve ser racional” – pois a homenagem de teu corpo a Deus, quando lhe é ofertado como vítima, não é o obséquio brutal com que se ofereciam os animais. Deve ser totalmente racional: antes de executá-lo, no ato de oferta, e depois de ofertado. a) Racional antes: significa compreender a honra que te é feita por Deus ao escolher-te como vítima, de modo que não vais ao sacrifício à força, como os animais que eram imolados, mas vais imolar-te alegremente, animosamente. Isto é o sacrifício racional. Não quererás, por certo, sacrificar-te a Deus como se te levassem ao matadouro! “Oferecerei o sacrifício espontâneo a ti” (Sl 53, 8). b) Racional no ato: pois não se efetuará uma imolação de caráter puramente material, ao empreender qualquer penitência, sofrimento ou fadiga; pelo contrário, tudo será tornado íntimo com atos de religião, de compunção, de caridade, pois somente isto dará à obra o valor devido: “A oblação do justo enriquece o altar” (Eclo 35, 8). c) Por fim, racional depois: porque, com a experiência que fazes em ti mesmo, deves tornar-te cônscio da possibilidade de resistir no sacrifício. Sabes que a vítima deste sacrifício deve continuar “viva” para continuar a ser imolada. Isto requer, pois, um racional equilíbrio: não poupar o corpo, nem arruiná-lo: “A honra do Rei aprecia a justiça” (Sl 98, 4). De modo que farás uma justa distinção entre a honra externa e a interna, contida no sacrifício. A honra interna não somente não admite lei: o máximo possível na fé, na esperança, no amor; a honra externa não somente admite uma lei, mas a exige, como toda vítima pedia o sal: “O vosso obséquio seja racional”. Portanto esta a regra: fazer tanto do bem externo que te ajude o interno, mas não te torne incapaz: o interno é fim, o externo, é meio. Ora, quem não sabe que somente o fim se deve procurar sem medida, como desejam os enfermos a saúde; enquanto o meio se deverá buscar dentro dos limites que não prejudiquem o fim, da mesma forma que os doentes querem os remédios?
Pe. Divino Antônio Lopes FP (C) Anápolis, 10 de julho de 2016
Bibliografia
Sagrada Escritura Pe. Paulo Segneri, Temas Bíblicos para a meditação de todos os dias Edições Theologica Presbyterorum ordinis, 2 São Josemaría Escrivá, Cristo que passa, 96; Amigos de Deus, 76 Pio XII, Encíclica Mediator Dei, 25 Orígenes, In Lev hom., 9, 9 Pe. Juan Leal, A Sagrada Escritura
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