JESUS NO CALVÁRIO

(Mc 15, 25)

 

“Era a terceira hora quando o crucificaram”.

 

 

Católico, subamos com Cristo Jesus ao Calvário; testemunhemos as cenas de sua crucifixão, da crucifixão dos dois ladrões; ouçamos as vociferações dos judeus, os insultos que atiram ao rosto da divina Vítima, as blasfêmias horrendas com que ofendem o Salvador do mundo. Firmes ao pé da cruz, junto com Maria Santíssima, São João Evangelista, Santa Maria Madalena e as santas mulheres, com profundo respeito e máxima atenção, ouçamos as palavras que Jesus Cristo proferiu nas três longas horas da sua agonia.

 

1.ª Palavra

 

“Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34).

 

Após longa e penosa caminhada chega ao Calvário a multidão, no meio Jesus, arquejado sob o peso da cruz: “Agora compreendes quanto fizeste sofrer Jesus, e te enches de dor: que simples pedir-Lhe perdão e chorar as tuas traições passadas! Não te cabem no peito as ânsias de reparação! Muito bem. Mas não esqueças que o espírito de penitência consiste principalmente em cumprir, custe o que custar, o dever de cada instante” (São Josemaría Escrivá), e: “O Gólgota não estava longe, mas foi uma eternidade chegar até lá. A rua era acidentada e pedregosa. A oscilação do madeiro em seu ombro faz correr mais sangue da cabeça coberta de espinhos. O sangue toma-Lhe a vista e Ele mal pode ver onde coloca os pés” (Clarence J. Enzler).

Enquanto os verdugos concluem os preparativos para a execução dos três sentenciados, Jesus fica retido numa grota ali existente, ainda hoje visível na igreja do Santo Sepulcro. Nesse calabouço foi que Nosso Senhor se recolheu para o início do seu sacrifício da cruz. Prontos esses trabalhos de preparar as cruzes, Jesus é conduzido para perto do instrumento do seu martírio. Tiram-lhe as roupas, uma por uma, a modo de algozes: sem dó, sem contemplação, rude, barbaramente, não cuidando que com esta manobra abrem e rasgam de novo as mil feridas no corpo da pobre Vítima: “Depois, tendo-se a multidão se colocado em círculo ao redor de Nosso Senhor, os soldados arrancaram-Lhe as vestes, pegadas ao corpo todo chagado e dilacerado, e com as vestes Lhe arrancaram também pedaços de carne” (Santo Afonso Maria de Ligório). Jesus Cristo passa pelo indizível vexame de, assim descomposto, ser alvo dos olhares de todos os assistentes. Provável é que lhe deixaram um pano apenas para se defender da humilhação máxima. Entre os Romanos havia esta praxe, e aos judeus repugnava qualquer falta de modéstia. Quem poderá imaginar que suplício não teria sido para o pobre Jesus esta cena indigna e sumamente humilhante! Sempre havia pessoas compassivas, que cuidavam para que não faltasse aos pobres sentenciados uma bebida narcótica, que se lhes dava antes da crucifixão. Era vinho forte misturado com essências de aloés, mirra, cálamo e acoron. Jesus não a rejeitou, mas, apenas levou-a aos lábios, sem beber. Não queria fugir da dor, mas, pelo contrário, com toda a lucidez, oferecer a seu Pai o grande sacrifício da expiação: “... deram-lhe de beber vinho  misturado com fel. Ele provou, mas não quis beber” (Mt 27, 34), e: “Deram-lhe vinho com mirra, que ele não tomou” (Mc 15, 23). Fechou-se ao redor de Jesus Cristo um pequeno círculo de soldados e algozes. Só em espírito podemos assistir a esta cena horrível da crucifixão. Ouvir as terríveis marteladas que acompanharam as operações crudelíssimas. Ferem os nossos ouvidos os gritos, os urros, as imprecações e palavrões dos dois ladrões e da bárbara soldadesca: “E até os ladrões, que foram crucificados junto com ele, o insultavam” (Mt 27, 44), e: “Os soldados também caçoavam dele; aproximando-se, traziam-lhe vinagre, e diziam: ‘Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo” (Lc 23, 36-37). No meio distinguimos perfeitamente os doces e profundos gemidos de Cristo Jesus, Nosso Senhor. Em profunda adoração e com a maior compaixão observemos e acompanhemos as pulsações do seu Coração. Com a maior reverência curvemo-nos sobre o seu sacrossanto Corpo e beijemos as sagradas chagas: da mão direita, da mão esquerda e dos pés. Com todo o amor de que somos capazes, contemplemos o Corpo de Jesus, horrivelmente esticado, coberto de sangue, a sagrada face desfigurada e de uma palidez impressionante: “Os soldados furiosos tomam os pregos e os martelos, e transpassando as mãos e os pés de nosso Salvador, pregam-no na  cruz... Eis que levantam a cruz com o Crucificado e a deixam cair com força no buraco aberto no rochedo” (Santo Afonso Maria de Ligório).

Que sente e pensa Jesus no meio de tantas dores, numa situação forçada e indescritível? Suas palavras no-lo revelam: “Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23, 34).

José A. Marques comenta: “Jesus dirige-se ao Pai em tom de súplica (cfr Hb 5, 7). Podemos distinguir duas partes na oração do Senhor: a petição simples: ‘Pai, perdoa-lhes’, e a desculpa acrescenta: ‘porque não sabem o que fazem’. Em ambas nos mostra com quem cumpre o que prega (cfr At 1, 1) e como modelo a imitar. Tinha pregado o dever de perdoar as ofensas (cfr Mt 6, 12-15; 18, 21-35) e ainda de amar os inimigos (cfr Mt 5, 44-45; Rm 12, 14.20), porque tinha vindo a este mundo para se oferecer como Vítima ‘para remissão dos pecados’ (Mt 26, 28; cfr Ef 1, 7; Cl 1, 4) e alcançar para nós o perdão. Surpreendem à primeira vista as desculpas com que Jesus acompanha a petição de perdão: ‘Porque não sabem o que fazem’. São palavras do amor, da misericórdia e da justiça perfeita que apreciam até ao máximo as atenuantes dos nossos pecados. Não há dúvida que os responsáveis diretos tinham consciência clara de que estavam a condenar um inocente, cometendo um homicídio; mas não entendiam, naqueles momentos de paixão, que estavam a cometeu um deicídio. Neste sentido São Pedro diz aos Judeus, estimulando-os ao arrependimento, que agiram, ‘por ignorância’ (At 3, 17), e São Paulo acrescenta que se tivessem conhecido a sabedoria divina ‘não teriam crucificado o Senhor da Glória’ (1 Cor 2, 8). Nesta advertência se apóia Jesus, misericordioso, para os desculpar. Em toda a ação pecaminosa o homem tem zonas mais ou menos extensas de obscuridade, de paixão, de obcecação que, sem anular a sua liberdade e responsabilidade, tornam possível que se execute a ação má atraído pelos aspectos enganosamente bons que apresenta. E isto constitui uma atenuante no mal que fazemos. Cristo ensina-nos a perdoar e a buscar desculpas para os nossos ofensores, e assim abrir-lhes a porta para a esperança do perdão e do arrependimento, deixando a Deus o juízo definitivo dos homens”. Pede perdão para todos, que direta e indiretamente concorreram para o seu martírio; perdão para os Sumos Sacerdotes, perdão para o povo judeu, perdão para os que O trataram tão barbaramente. Apela para o amor de seu Pai; pede como Filho; oferece em satisfação sua obediência até a morte, suas chagas e todas as suas dores. Longe de condená-los e sobre eles chamar a vingança do céu, toma a ignorância dos seus algozes por motivo de perdão que implora, embora nos judeus a ignorância fosse    culposa e como tal a tivesse estigmatizado.

O Pe. Luis de la Palma escreve: “Jesus aproveitou o agradecimento do Pai  pela sua obediência e intercedeu por nós. Por todos, pelos justos e pelos  pecadores; por aqueles que ainda não o conhecem e pelos que estavam presentes na crucifixão; pelos que tinham compaixão e pelos que traziam um ódio implacável em sua perseguição. O Senhor procurava a salvação daqueles que lhe tiravam a vida; rogava a Deus por eles, e para que ninguém ficasse excluído do mérito de seu sacrifício. Assim é o Pontífice que nos convinha (Hb 7, 26), que fosse santo e o seu amor pudesse abarcar até os inimigos. Apesar de todo o sofrimento, a perdição dos pecadores lhe aumentava a dor, esquecendo-se de si mesmo, não pedia alívio para sua dor, mas perdão para os nossos pecados. Eles aumentavam os insultos, Jesus aumentava suas orações. Não te deixes vencer pelo mal, mas triunfa do mal com o bem (Rm 12, 21). Pediu muitas vezes ao Pai, pois o evangelista querendo indicar mais de uma vez, narra que ‘dizia’ estas palavras: ‘Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem’ (Lc 23, 34). É admirável que tivesse ficado em silêncio por tanto tempo no julgamento e durante sua Paixão, e agora intercedesse para defender os seus algozes. Este nosso advogado apresentou ao Pai todos os motivos que pudessem obter o nosso perdão; alegou a nossa ignorância e os seus próprios méritos a nosso favor. Pai, eu sou teu Filho e sei que me ama; olha o amor que tenho e como te obedeci; só pelo teu amor estou aqui na cruz. Não me negue o que te peço, sou teu Filho e valho-me disso para pedir que os perdoe a todos. Seria justo castigá-los, mas eu os absolvo e peço que faça o mesmo. Tenho por eles um amor de irmão e o Senhor um amor de Pai. O sangue que derramei foi por eles; chegou o tempo da entrega na cruz, mas também chegou o tempo do perdão e da misericórdia. Perdoa-lhes, Pai; a responsabilidade é grande, mas fazem por ignorância, foram enganados e não percebem a gravidade. Os seus líderes ficaram cegos diante da Luz, não quiseram conhecer a Verdade, confundiram o povo. Eles não percebem que      realmente sou teu Filho; suplico-Te que veja desta forma: eles não me matam, sou eu que morro por eles. ‘Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem’. No coração, Jesus pedia o mesmo para sua Mãe. Escutando a prece de seu Filho, sua alma ficou iluminada pela força do sentido desta oração. Atendendo a este rogo, com toda a força do Espírito Santo, abraçou todos aqueles pecadores em seu coração. Uniu sua oração com a de Jesus e intercedeu ao Pai que perdoasse os perseguidores de seu Filho. Com estes mediadores, muitos que estavam presentes se converteram. Logo após a Ascensão de Jesus, elevou-se a mais ou   menos três mil o número de adeptos (At 2, 41)”, e: “Pai! É a primeira palavra. Jesus diz ‘Pai’, como na ressurreição de Lázaro: ‘Pai, dou-Te graças porque me ouviste. Eu bem sabia que sempre me ouves’ (Jo 2, 42)... ‘Pai, perdoa-lhes...’ Não   é a sua dor que o preocupa; é o nosso pecado: antes de tudo, a ferida, a ofensa que faz a Deus; depois, o dano que nos faz... ‘Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. Sabem e não sabem. Algo sabem, se é que há pecado. E não   sabem tudo, o que é um título para o perdão. No entanto é desigual a responsabilidade” (Charles Journet), e também: “Não obstante, a sua ignorância não os impedia de serem criminosos, pois era de certo modo afetada. Viam, com efeito, sinais evidentes da divindade de Cristo, mas pelo ódio e inveja, deformavam-nos; de modo que não quiseram crer nas palavras de Jesus, com que se declarava Filho de Deus. Por isso Cristo disse deles: ‘Se eu não tivesse vindo e não lhes tivesse falado, não teriam culpa, mas agora não têm desculpa do seu pecado’ (Jo 15, 22). Mas, os pequenos (minores), a gente do povo (populares), que não estavam instruídos nos mistérios da Escritura, não conheceram plenamente  nem que era o Messias nem que era o Filho de Deus. Certamente muitos acreditaram nele, mas a maior parte não acreditou. Em certas ocasiões, ante a quantidade de milagres e a grandeza da sua doutrina, chegaram mesmo a perguntar-lhe se era o Cristo, como se vê no capítulo sétimo de São João; mas em seguida foram mal aconselhados pelos seus chefes e não compreenderam nem que era o Filho de Deus nem que era o Messias. Daí, as palavras de São Pedro no seu segundo discurso: ‘Sei que procedestes por ignorância’ (At 3, 17)” (Santo Tomás de Aquino).

A oliva triturada dá o seu azeite; da uva esmagada escorre o doce vinho e o bálsamo destila suave perfume. Assim a dor atroz. Assim, a maldade  dos inimigos do Divino Coração não conseguiram espremer senão esta magnífica oração: “Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem”.  Para nós luminoso exemplo de como nos havemos de haver com os nossos inimigos e perseguidores. Todos os que têm o espírito de Jesus Cristo sempre agiram assim: “E  apedrejaram a Estevão, enquanto este invocava e dizia: ‘Senhor Jesus, recebe meu espírito’. Depois, caindo de joelhos, gritou em voz alta: ‘Senhor, não lhes leves em conta este pecado” (At 7, 59-60).

Católico, repare como Jesus Cristo não tinha membro de que dispor a nosso favor, senão a língua. Ele não podia ajoelhar, nem ajuntar as mãos, porque estavam presas na cruz, só tinha a língua, e esta tão seca e amargurada; todavia a emprega a nosso favor. Ele nos tinha ensinado que se alguém fosse oferecer algum sacrifício, tendo alguma indisposição contra seu próximo, fosse primeiro se reconciliar; por isso, vendo o ódio mortal que os judeus tinham contra Ele, tratou de reconciliá-los com o Pai Eterno, tratou de lhes alcançar o perdão, e não podendo sair da cruz onde estava pregado, a fim de nos ensinar com o exemplo a doutrina que nos  tinha pregado, cumpriu este preceito do melhor modo que lhe era possível, rogando instantemente a seu Pai que perdoasse a seus inimigos. Eis o modo com que Jesus vingou tantos insultos, bofetadas, pontapés, escárnios, irrisões, açoites e todas as demais injúrias!

Muitos são aqueles que se atrevem a receber a Santíssima Eucaristia com indisposições, ódios, inimizades... É preciso imitar a Cristo Jesus.

Tal excesso de caridade não teve exemplos nos séculos passados. O Patriarca Noé, escarnecido por seu filho, lança sobre ele a maldição do Senhor; o Profeta Elias, insultado pelos oficiais e soldados, obtém do céu um fogo exterminador; Eliseu, chasqueado por uma multidão de meninos foi vingado por dois ursos que devoraram a muitos meninos... Entretanto, estas e outras injúrias nenhuma proporção tinham com as injúrias que recebeu Jesus, todavia, não só não chama castigos, mas até dissimula... não só dissimula, mas até pede perdão... 

 

2.ª Palavra

 

“Ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

 

Esta palavra se liga à conversão inesperada do Bom Ladrão. Testemunha de tudo que se passava ao redor de Jesus Cristo; ouvindo ele os insultos, os escárnios com que os judeus cobriam Nosso Senhor moribundo, caiu em si, penitenciou-se de uma maneira surpreendente e sumamente edificante. No modo dele fazer penitência reparamos quatro momentos: 1.° Censura seu companheiro e na pessoa deste também os judeus e o modo indigno com que tratam o Senhor. Chama sua atenção ao justo castigo que ambos estão sofrendo e aponta a justiça divina que maiores castigos reserva para os que se negam a fazer penitência: “Nem sequer (como os outros judeus) temes a Deus, estando na mesma condenação?” (Lc 23, 40). Isto é, embora tenhas, como nós, de comparecer perante Deus? Eis aí a expressão do   temor de Deus, que é o princípio da verdadeira penitência. 2.° Confessa publicamente seu pecado; diz-se culpado e reconhece justo o castigo que lhes foi infligido: “Quanto a nós, é de justiça; estamos pagando por nossos atos” (Lc 23, 41). 3.° Proclama a inocência de Jesus e acusa os judeus de clamorosa injustiça: “... mas ele não fez nenhum mal” (Idem.). De tudo isto ele tinha pleno conhecimento; a esta conclusão ele chegou devido à insuperável paciência de Jesus, da oração deste pelos  seus inimigos dirigida a Deus, a quem chama de Pai. 4.°  Reconhece a Divindade de Jesus, pois chega a implorar-Lhe que dele se lembre no seu reino: “Jesus, lembra-te de mim, quando vieres com teu reino” (Lc 23, 42). Acredita, pois, no poder de Jesus Cristo no céu e na sua soberania como rei das almas e da felicidade eterna. Este Jesus, crucificado, por todos abandonado, desprezado e ludibriado é, na sua convicção, o Senhor do céu e da eternidade. Impressionado pela oração que Jesus fizera por seus algozes, vem ele agora pedir que o salve e que o tire do triste estado de pecador. Pede apenas, que em seu reino se lembre do seu nome; tudo o mais confia à sua misericórdia. Temos, portanto, o exemplo da mais perfeita penitência, de uma penitência que sobremodo honra e glorifica Cristo, Nosso Senhor.

José A. Marques comenta: “Ao responder ao bom ladrão, Jesus manifesta que é Deus, porque dispõe da sorte eterna do homem; que é infinitamente misericordioso e não rejeita a alma que se arrepende com  sinceridade. De igual modo com essas palavras, Jesus revela-nos uma verdade fundamental da nossa fé”, e: “Cremos na vida eterna. Cremos que as almas de todos aqueles que morreram na graça de Cristo – tanto as que ainda devem ser purificadas com o fogo do Purgatório, como as que são recebidas por Jesus no Paraíso a seguir à separação do corpo, como o Bom Ladrão -, constituem  o Povo de Deus depois da morte, a qual será destruída por completo no dia da Ressurreição, em que estas almas se unirão com os seus corpos” (Paulo VI).

Jesus Cristo, se bem que Ele mesmo mergulhado num abismo de sofrimentos, acolhe atenciosa e benignamente a penitência do Bom Ladrão, dá-lhe infinitamente mais do que este pedira. Perdoa-lhe os pecados e lhe diz: “... hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43). Quanta generosidade! Quanta caridade!

Esta grandiosa cena da conversão do Bom Ladrão é a revelação da generosidade, da bondade e da majestade de Nosso Senhor. Como Jesus é compassivo, bondoso e poderoso! Tudo ele repara, a tudo atende... os suspiros de uma alma arrependida ele percebe.

O Pe. Luis de la Palma escreve: “Entre as pessoas que foram tocadas pela  oração de Jesus, estava um dos crucificados ao seu lado. Pelas palavras dirigidas  a Jesus, notamos que os dois eram judeus. E os ladrões, crucificados com ele, também o ultrajavam (Mt 27, 44). A princípio os dois o insultavam. Mesmo sofrendo a mesma pena de Jesus, não eram mais compassivos. Enfurecido pela tortura que recebia e impaciente com todos aqueles gritos e escárnios, um dos malfeitores, ali crucificados, blasfemava contra ele: ‘Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo e salva-nos a nós’ (Lc 23, 39). Esta é a ocasião para demonstrar o que dizes ser! Os teus inimigos quiseram Te comparar a nós, salve-se e vingue-se deles! Mas como é um mentiroso, não há esperança para nós’. Assim este ladrão insultava Jesus e esquecia-se de que realmente era um criminoso e merecia a punição. Mas o outro que escutou tudo e notou a paciência e dignidade com que Jesus rogava a seu Pai para que lhes perdoassem, movido pelo Espírito Santo, compreendeu que além de inocente, Ele era verdadeiramente o Rei de Israel. Confiou que poderia ser salvo, mas não da maneira que seu companheiro tentava. Por isso repreendeu-lhe: ‘Nem sequer temes a Deus, tu que sofres no mesmo suplício? Para nós isto é justo: recebemos o que mereceram os nossos crimes, mas este não fez mal algum’ (Lc 23, 40-41). Estando o Senhor na cruz, iluminou com a verdade um de seus companheiros de suplício. O outro que foi repreendido, talvez, agora pudesse abrir-se para a salvação. Este venturoso ladrão, depois de ter reconhecido os seus próprios pecados e aceitar o castigo, mostrou a seu companheiro onde estava a verdade. Então virou o rosto e disse: ‘Jesus, lembra-te de mim quando tiveres entrado no teu Reino!’ (Lc 23, 42). Com toda simplicidade, reconheceu-O como Rei; de uma maneira maravilhosa acreditou na ressurreição. Chamando-Lhe pelo nome, não pedia mais nada para esta vida, somente o perdão e a vida eterna; sentindo-se indigno, disse: ‘Lembra-te de mim’. Vendo-O padecer ao seu lado, escutando todas as acusações que os sacerdotes lançavam; tudo levava a pensar que Jesus tinha crimes iguais aos seus, ou até piores. Mas a força da graça e a luz do céu foram abundantes, pois mesmo nestas circunstâncias acreditou em Jesus. Ninguém falava bem do Senhor; o sol ainda não tinha escurecido; a terra também não havia tremido. Não foram estes acontecimentos que o moveram a crer, mas a força da cruz. Viu Jesus padecer na cruz e acreditou n’Ele como o  Senhor do universo; acreditou no reino celestial a pediu-Lhe o céu. Emocionado, o Senhor escutou no meio de tanta zombaria e insultos, aquela voz que o reconhecia como Deus. Vinha de um ladrão que mesmo estando Deus tão oculto, soube confessar em alta voz. Declarando essa verdade ao outro ladrão, podemos dizer que este foi o primeiro apostolado de fato. Como reconhecia a divindade e defendia-O, dizendo que era santo e inocente; o Senhor concedeu-lhe muito mais do que pedia. O Senhor alegrou-se pelo primeiro fruto de seu sangue derramado; a primeira conversão de um pecador, que imediatamente se fazia de apóstolo. Como Sacerdote lhe concedeu perdão, como Rei deu-lhe a riqueza: ‘Em verdade te digo: hoje estarás  comigo no paraíso’ (Lc 23, 43)”, e: “A sorte destes dois homens que sobem com Jesus para o Calvário é misteriosa. Toda a vida que se aproxima de Jesus, para O rejeitar ou para O aceitar, alcança de repente a profundidade do seu mistério. Pretendem misturar o nome de Jesus com o dos culpados, dissipar a sua memória com a de homens desprezíveis, porque crucificam os três juntos, Ele no meio... Mas para as gerações vindouras, o nome de Jesus não cai no esquecimento nem se perde a sua memória. Sucede o contrário; fica fixa para sempre à recordação destes dois malfeitores e da sua diferente morte. O destino desigual destes dois homens representa as duas posições extremas ante o sofrimento. A dor pode libertar as almas e pode também rebelá-las. Deus orienta para a santidade, mas as almas podem levantar-se contra Deus e encher-se de amargura. Há cruzes de blasfêmia e cruzes de paraíso... Um daqueles malfeitores que estavam crucificados com Ele insultava-O, dizendo: Se és o  Cristo, salva-Te a Ti mesmo e a nós...  Haveria ódio neste homem? Tinha vivido totalmente à margem das leis que ele julgava injustas; tinha sido um revolucionário. Agora estava apanhado, sem possibilidade de escapar, cravado numa cruz. Definitivamente tinha perdido a partida. E invade-o uma veemente cólera. Se ao menos este homem crucificado à sua beira tivesse algum poder! Porque chamar-se Messias quando se é impotente tanto frente aos homens como frente ao sistema social! Se foi este o seu caso, então sem dúvida disse com  despeito, com ódio: ‘Não és o Messias? Salva-Te a Ti mesmo e a nós’. Mas talvez a rebeldia deste homem fosse mais profunda. Talvez se tenha rebelado contra a vida fazendo-se bandido. Sabia ao que se expunha, tinha aceitado de antemão qualquer eventualidade. Agora estava agarrado; era uma regra do jogo. Não restava mais que morrer em silêncio para sair de um mundo sem esperança. Como este iluminado, este débil de espírito, que morre a seu lado não compreendeu o nada de toda a existência? Como pode crer na possibilidade de um Messias e de uma salvação? Não é já tempo de que desperte do seu sono? Se foi assim, então ter-se-iam de considerar como fruto de uma piedade burlona aquelas palavras: ‘Não és o Messias? Salva-Te a Ti mesmo a e nós’. Qual destas duas formas de desespero minou o coração do primeiro crucificado? Em qualquer hipótese, o certo é que passa, sem a reconhecer junto de uma salvação que nunca mais voltará. Entrou assim com esta consciência na morte? Ter-se-á eternizado o seu ódio, o seu desafio? Ou dissipou a sua noite um clarão de luz no último instante, talvez depois das sete palavras, até mesmo depois da morte de Jesus?” (Charles  Journet), e  também: “Muitos sofrem na terra pelos seus pecados e pelos seus crimes. Por isto é necessário discernir com muito cuidado não o sofrimento, mas a causa. A pena de um criminoso pode ser igual à de um mártir, mas a causa é diferente. Há três homens crucificados, um dá a salvação, outro recebe-a e outro despreza-a; para os três é igual a pena, mas diferente a causa” (Santo Agostinho).

No Monte Calvário, sentenciado Ele mesmo e condenado pela justiça humana, Jesus se revela juiz das almas, perdoa e retém os pecados, dá o céu e condena ao inferno. Quem não vê no espetáculo do Gólgota a prelúdio do Juízo Final?

Das sombras da morte de um vil criminoso, Ele traz à luz um arauto da sua inocência e da sua divindade.

A conversão do Bom Ladrão (São Dimas) evidencia de um lado o poder da graça divina, como também demonstra a tenebrosa autonomia e liberdade da vontade humana. A graça divina se oferece aos corações dos dois ladrões e pede entrada e pronto acolhimento.

O mau ladrão (Gestas) ouve os gemidos do seu Salvador; o sangue divino se espraia ao redor da sua cruz como se quisesse assediar-lhe o coração pecador e dele afastar os raios da divina justiça; não obstante, o infeliz se detém firme na sua maldade e impenitência.

 

3.ª Palavra

 

“Mulher, eis aí teu filho” (Jo 19, 26).

 

O Pe. Luis de la Palma escreve: “Quando Jesus viu sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: ‘Mulher, eis aí teu filho’. Depois disse ao    discípulo: ‘Eis aí tua mãe’ (Jo 19, 26). Para aqueles homens sem fé, esta cena representava a desonra de um filho perante sua mãe. Olhando para sua mãe que estava perto, se comoveu. O Senhor relembrou os momentos que havia passado junto de sua mãe: as alegrias durante todos aqueles anos e do respeito que tinham por ela ser a mãe de Jesus. Agora tudo estava tão diferente. Viu o seu rosto sofrido e as lágrimas que escorriam; partiu-Lhe o Coração presenciar sua mãe sofrendo tanto. O Senhor chorou também, suas lágrimas se misturavam com seu sangue e os seus soluços  à sua dor. Mas ao mesmo tempo, se alegrava por dentro, por ter sua mãe perto naquele momento e agradeceu sua presença. Sua mãe demonstrava: fé, lealdade, fortaleza, humildade e obediência. Foi tão unida e parecida com seu Filho, que podemos dizer que foi obediente até a morte e por amor afogou-se nas águas do sofrimento. Com aquele olhar, Jesus repartiu com sua mãe todos os bens que conquistaria com sua morte. Elegeu-a Rainha do Céu, Advogada dos pecadores e distribuidora de todas as graças. Ela que já havia recebido antes, por um favor de Deus, a preservação do pecado original e a plenitude da graça. Por isso foi a criatura mais pura entre todos os nascidos. Mas, além disso, quis agradecer-lhe por estar presente junto à cruz. Olhou-a e não deixou que ela ficasse desamparada, apontou com o olhar ao discípulo e disse: ‘Eis teu filho’. Depois disse ao discípulo: ‘Eis tua mãe’. Estava morrendo na cruz, mas não se esqueceu de sua mãe. Deixou alguém que cuidasse dela e lhe fizesse companhia, um novo filho, em lugar daquele que perdia. Poderia ter feito isto depois da ressurreição, mas não queria que sua mãe ficasse nem um minuto desamparada. Fazendo em público, na frente de todos, foi como um testamento perante as testemunhas. Eu sou teu filho, todo o tempo que vivemos juntos te   obedeci e respeitei, mas agora devo obedecer a meu Pai. Mas não ficará sozinha, pois deixo meu querido discípulo, a quem quero honrá-lo com este doce presente. Ele cuidará da senhora, como se fosse eu; peço que o ame como se fosse a mim. Parto, mas não ficará desamparada, tem agora um novo filho. Que felicidade a de João! Todos devemos ter muita devoção a São João Evangelista, porque a Virgem Maria o olhou como seu filho, e nós temos Maria como nossa mãe. Lembra-te, ó Virgem Maria, de que és minha Mãe. Este foi o melhor presente que recebemos na cruz. Agora somos todos irmãos, filhos adotivos de Deus e filhos da Senhora. Quando Jesus disse a João ‘eis a tua mãe’, devemos ouvir, como se fosse para cada um de nós em particular. Abramos os olhos, ela é nossa Mãe! Mãe, refúgio dos pecadores, agora e na hora da nossa morte. Jesus Redentor, conseguiu com o seu sangue, que Maria fosse nossa Mãe. Não podemos chamar Eva de mãe, pois pela cobiça pelo fruto proibido, tornou-se mãe do pecado. Mas tu, Virgem Maria, viu com dor o fruto pendurado na árvore da cruz, olhou com amor o fruto da vida, por isso se tornou Mãe de todos os homens. Nós somos os filhos da tua dor e seremos sempre agradecidos. E dessa hora em diante o discípulo a levou para a sua casa (Jo 19, 27). João ficou muito bem pago pelo seu amor e lealdade a Jesus. Desde àquela hora, recebeu e a considerou como sua mãe, assim se cumpria a promessa feita: ‘receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna’ (Mt 19, 29). A Virgem Maria foi para João este  cem por um. Era como um prêmio imerecido pela sua generosidade em deixar  tudo para seguir Jesus, considerou-se muito bem pago”, e: “Cristo põe São João nas mãos de Maria; ao fazê-lo, entrega-nos a todos como filhos dela; de todos vai ser ela doravante a Mãe responsável ante Jesus. Isto significa que Ele promete a Maria escutar toda a súplica que ela Lhe dirija por nós, tão maravilhosamente  como o tinha feito em Caná da Galiléia, se nós não pomos obstáculo” (Charles Journet).

Entre os espectadores no Calvário achavam-se parentes e conhecidos de Jesus: “Todos os seus amigos, bem como as mulheres que o haviam acompanhado desde a Galiléia, permaneciam à distância, observando essas  coisas” (Lc 23, 49), e: “Estavam ali muitas mulheres, olhando de longe” (Mt 27, 55). Nomeadamente os santos Evangelhos os mencionam: a Mãe do Senhor com João, Maria Cleofa, Maria Madalena e Salomé. Formavam eles diversos grupos, algo distanciados da cruz, porque os soldados e os judeus não permitiam que se aproximassem. Parece, entretanto, que Maria Santíssima, São João, Maria Madalena e Salomé conseguiram, aos poucos, chegar-se bem perto de Jesus sem que alguém os molestasse, e lá ficarem até o fim: “Perto da cruz de Jesus, permaneciam de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cleofas, e Maria Madalena” (Jo 19, 25). – Tinham vindo da Galiléia, para, em companhia do Mestre, em Jerusalém, festejarem a Páscoa. Que triste Páscoa não veio a ser para eles todos! Inseparáveis de Jesus Cristo, acompanharam-nO na sua última caminhada. Viram tudo: a crucifixão, a elevação da cruz... todos mergulhados em imensa dor.

Mais do que todos era Maria, a Mãe de Jesus, que sofria. Quem descreverá o seu padecimento? Quanto não sofre uma mãe à cabeceira dum filho agonizante! Leito mortuário igual ao de Jesus, nunca se viu, além de doloroso, coberto de ignomínia e amaldiçoado pela multidão. Nunca houve um Filho tão dedicado à sua mãe, como Jesus, e mãe igual a Maria Santíssima, tão rica em amor e graça, o mundo não conheceu até hoje. Grande no amor, o coração de Maria não se deixava vencer pela dor e arrastava-a com firmeza, resoluta e heroicamente. Do horrível cenário no Calvário ela foi testemunha ocular e dos pormenores  da crudelíssima execução nada escapava à sua observação. Via os cravos, as chagas; as marteladas soaram sinistramente nos seus ouvidos; ouviu as imprecações, as pragas soltadas contra seu Filho e percebeu-Lhe os gemidos e palavras entrecortadas de soluços. Acercou-se da cruz e longamente contemplou o rosto desfigurado e agonizante de seu Filho amado. Quem poderá fazer idéia da dor que lhe ia na alma?

Tudo isto ela sofreu voluntariamente, impelida pelo amor natural de mãe, mas também pelo desejo de participar do sofrimento do Filho, de cooperar diretamente na grande obra da Redenção, que se ia realizando naquela hora. Como Co-Redentora do gênero humano sabia que lá era o seu lugar. Da cruz não se afastou, unindo o seu sacrifício com o do Sumo Sacerdote, do Eterno Rei, que do alto da cruz governa o mundo.

Jesus, vendo-se acompanhado por Maria, compreendeu-lhe todo o amor tão fiel, tão maternal, levado ao heroísmo; lendo na sua alma, consolou-a e providenciou para o longo tempo que devia sobreviver.

Olhando para João, disse a Maria: “Mulher, eis aí o teu filho”(Jo 19, 26). Teu Filho morre e não mais poderá cuidar de ti. João o substituirá e nada te deixará faltar. Ele para ti será o que até hoje eu fui: “Como derradeira lembrança deu-nos a ela por filhos na pessoa de São João... Começou desde então a  Senhora a exercer para conosco esse ofício de mãe...” (Santo Afonso Maria de Ligório).

Dirigindo-se a João, disse: “Eis aí tua Mãe”. Ficarás em meu lugar, e perto dela, com teu amor, teus cuidados e tua dedicação... para ela farás o que eu até agora fiz.

O efeito que esta palavra produziu na alma de Maria foi uma nova e cruciante dor. Era para ela a separação definitiva, a renúncia suprema. Tudo se desvanece dos seus olhos, o que até este momento tinha sido a alma, o centro da sua vida. Jesus se despediu. Em seu lugar, está João, o discípulo predileto, de todos o mais dedicado, é verdade, mas apenas discípulo, não o Mestre; o filho de Zebedeu, e não o filho de Deus. Que troca desigual! Que comutação desproporcionada e dolorosa! Com a mesma humildade filial, porém, que demonstrou no dia da anunciação, agora conforma sua vontade com a de Deus: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a sua palavra” (Lc 1, 38).

Em João observamos a mesma atitude de humildade e submissão à vontade de seu Senhor, e a prontidão, para com amor e dedicação a executar. No mesmo dia entrou na posse da sua doce herança, recebendo em sua casa a Mãe de Jesus, sua Mãe agora, e dispensando-lhe todas as atenções e cuidados que acostumada estava a receber de seu Divino Filho.

Admirável é a maneira de que Jesus soube recompensar a virtude de seu Apóstolo, e premiar a fidelidade que demonstrou ao seu Mestre e o amor filial à Mãe de Deus.

Do mistério dessa palavra poderemos deduzir praticamente quatro coisas: 1. Jesus Cristo dá um magnífico exemplo de obediência ao quarto mandamento. Não quer morrer enquanto não ver humanamente garantido o futuro de sua mãe. 2. Por esta palavra fica patente que já não mais vivia São José; assim Maria, estando sozinha, precisava de um amparo na vida; faltando-lhe também Jesus, se explica e se compreende a revelação dessa sua última vontade. Está provado por esta palavra de Jesus que Maria não tinha outro filho. 3. Deste mistério, conclusão lógica é que devemos muito amar a Maria Santíssima. Na pessoa de João vemos representada a cristandade toda, a qual tem a ventura de receber Maria Santíssima como sua mãe. A palavra de Jesus é o seu testamento, em que aos Apóstolos, à Igreja e a todos os fiéis legou o que de mais precioso possuía, com o desejo que todos nos esforçássemos em adquirir os sentimentos filiais mais profundos e sinceros para com a sua Santíssima Mãe. 4. A palavra de Jesus contém um precioso ensinamento sobre a grande vantagem que há em seguirmos firmes a Jesus no caminho da cruz. Que prêmio maior e mais glorioso São João poderia esperar e receber em recompensa da sua fidelidade e do seu amor a Jesus agonizante! De discípulo e Apóstolo tornou-se irmão de Jesus e filho da Santíssima Mãe de Deus.

 

 4.ª Palavra

 

“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46).

 

Perto do meio-dia, isto é, pouco depois da crucifixão (na sexta hora dos judeus), o céu começou a ficar escuro; e esta escuridão crescia de momento a momento, a ponto de se estabelecer eclipse solar completo que durou três horas, até à morte de Jesus. É claro que não se tratava de um eclipse natural e comum, pois era lua cheia e teve duração de três horas. Se foi universal, não é certo. Provável é que só à Palestina se restringiu.

Sem dúvida foi um sinal extraordinário, para testemunhar a inocência e a dignidade divina de Jesus. Sendo Ele a cabeça da humanidade, era de toda a conveniência que a criação inteira fosse avisada da sua morte, justamente no momento em que, para salvá-la, foi preciso Ele se sujeitar a uma humilhação quase inacreditável.

Para os judeus, em particular, o escurecimento do sol foi de uma significação única. Foram eles, que por diversas vezes tinham exigido (Lc 11,16) fosse lhes dado um sinal do céu. Tiveram-no agora e formidável; um sinal eloquente para convencê-los da sua grande culpabilidade, movê-los a fazer penitência para, convertendo-se, desarmar a tremenda justiça de Deus, cujos anunciadores, no falar da Sagrada Escritura, são as trevas e a escuridão (Ex 10,22; Is 5,30).

O efeito imediato do inesperado e tão prolongado escurecimento deve ter sido um grande pavor entre os animais e os homens. Aqueles, pressurosos, procuraram os seus abrigos. Os homens, estes que há pouco se ufanaram da sua vitória sobre o Nazareno e O cobriram de vitupérios, encheram-se de medo e  emudeceram; muitos, é verdade, se converteram, quando outros se empederniram mais ainda, e procuraram explicar tudo muito naturalmente.

No meio do silêncio que reinava no Gólgota e na escuridão que o envolvia, quase no fim das três horas, cheias de dores e angústias, Jesus exclamou em alta voz:“Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?” Palavras estas que traduzem o sofrimento de Nosso Senhor em toda sua profundidade e extensão, sofrimento que teve sua razão no completo abandono da parte da divindade, e na ausência absoluta de consolo e de proteção experimentada pela humanidade de Jesus. A segunda pessoa nunca se afastou da humanidade, e a união hipostática nunca se viu interrompida. Mas desta união, a humanidade de Jesus, fora da visão imediata, nada experimentava de consolo, de proteção e de alegria. Estava ela mergulhada num abismo tenebroso de sofrimentos indizíveis e universais. Era o abandono em extremo grau, tanto exterior como interior.

Expulso da sociedade, o Salvador, vemo-lo pendente da cruz entre o  céu e a terra. Nenhuma comunicação com a terra lhe resta. Seus vestidos os algozes os partilham entre si. A própria Mãe já não lhe pertence. Abandonado por todos, ao seu lado nem vê seus Apóstolos e discípulos; muitos dos que se diziam seus amigos afastaram-se e se dispersaram. O povo em massa repudiou-O. O que vê só é para aumentar-Lhe a dor: uma multidão de inimigos, gente que o odeia; outros que se escarnecem do seu lamentável estado; ainda outros que O insultam e ultrajam. Tudo que vê e ouve é doloroso, inspirado pelo ódio e animado do espírito de vingança (Mt 27, 47-49; Mc 15, 35). É afastado o pequeno grupo dos seus fiéis. Nada podem fazer em seu favor, para seu alívio e consolo. Pelo contrário: sua tristeza, sua aflição e angústia ainda contribuem para aumentar-Lhe a dor.

Seu corpo também se ressente da ausência completa da proteção divina. Esticado se acha sobre o duro madeiro, sobre o leito horrível da cruz. Ombros e costas machucados. Da cabeça até a planta dos pés perfurados por duros e grossos pregos, causando-lhe feridas dolorosíssimas. A cabeça cingida de uma coroa, cujos espinhos se cravam nas têmporas e na testa, provocando cruciantes dores. A posição a que o corpo todo é forçado a se manter durante três horas, sem possibilidade alguma de encontrar uma mudança aliviada, produz o entorpecimento das articulações e implica poderosa e fatalmente a circulação. A sua respiração torna-se difícil devido ao afluxo irregular do sangue aos pulmões. O Coração trabalha penosamente, aumentando de minuto a minuto a ânsia da morte. Três horas são suficientes para produzir nas chagas dores insuportáveis de inflamação. Assim sofre, e morre Nosso Senhor, sem esperança alguma de receber o menor alívio dos que o rodeiam. Não lhe resta senão seu Pai celeste.

Também este, o refúgio e consolo de todos os aflitos e abandonados: o Pai da misericórdia, da bondade de todo o amor no céu e na terra, também Ele O abandonou.

Com este conhecimento a Paixão de Jesus chegou ao seu auge. Posto que nos vejamos abandonados por todos, fica-nos o recurso a Deus. O consolo divino supera tudo o que o mundo nos pode proporcionar. Faltando também este, a desgraça está completa e irremediável. Com a ausência desse consolo, apaga-nos a última estrela de esperança; a vida é sepultada nas trevas – é a morte; mais que a morte: é o quase inferno.

Alma não é possível que houvesse igual à de Jesus, tão unida a Deus no mais perfeito e acendrado amor, e em virtude desta união gozasse de uma felicidade, de uma bem-aventurança sem par. Na hora da agonia veio a faltar-lhe completamente esta doçura da paz e do conforto, o que nos leva a compreender que nunca alma humana passou pelas angústias de desolação iguais àquelas que Nosso Senhor sofreu, e que este abandono para Ele foi de todas as torturas a mais dolorosa, a mais cruciante.

Este sofrimento de Jesus nos apresenta qual mistério insondável.  Comparado com a tristeza por Ele experimentada no Horto das Oliveiras (e que disse ter sido de morte), a desolação foi muito maior, muito mais dolorosa. No Horto se dirigia a seu Pai; no Gólgota clama a Deus. Foi o grito da sua alma ao supremo e eterno Bem.

Impressionantes são as expressões dos profetas em referência ao estado da alma do Salvador na cruz (Cf. Sl 21. Threno, cap. III).

Ó tenebroso Calvário, onde o Salvador do mundo sofreu horrorosa agonia! Tão odiado era Jesus, que todos se julgavam com direito de magoá-lO; tão desprezado Ele é, que ninguém lhe quer fazer um bem; tão abandonado se acha, que  Deus o deixa nessa terrível solidão, e justamente no momento, que ao mesmo Deus dá a prova máxima do seu amor e sua vida oferece para sua honra e glória.

Esta exclamação, “Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” não é, e não podia ser da parte de Jesus um protesto contra seu Pai, nem tão pouco devemos interpretá-la como manifestação de uma revolta interior ou de repugnância ao sofrimento excessivamente grande: é, antes, e só isto podia ser: um gesto grandioso da divina vítima no intuito de nos revelar a prontidão com que tomara sobre si esta desolação interior, e que de fato sofria sem a mínima assistência, capaz de O consolar.

Além disto, queria Ele, com esta sua palavra demonstrar o cumprimento das profecias a seu respeito, referentes às circunstâncias da sua morte; por isso citou textualmente as palavras iniciais do Salmo depositário desta profecia (Sl 21).

Intenção sua também era consolar-nos, quando o sofrimento nos visita, não acompanhado de consolo humano ou divino. Na sua completa desolação fundou um tesouro preciosíssimo, de que poderão aproveitar todos os que sofrem nos dias presentes e do futuro. Com o desamparo que experimentou na hora suprema mereceu-nos a força de que necessitamos para não nos entregarmos ao desânimo, quando nos vemos desamparados no deserto da vida ou quando nos sentimos envoltos nas trevas da morte. O caminho que palmilhamos, Jesus já o percorreu antes e plantou nele a sua cruz para o nosso consolo e conforto. No seu brado ao céu reconhecemos a voz dum guia amigo, dum protetor poderoso, que no deserto intransitável anuncia a sua presença e oferece-nos sua assistência.

A exclamação de Jesus provocou da parte dos inimigos novos insultos e novos escárnios: “Este chama por Elias. E logo correndo um deles, tendo tomado uma esponja, ensopou-a em vinagre, e a pôs sobre uma cana e lhe dava de beber. Porém, os outros diziam: Deixa, vejamos se vem Elias livrá-lo” (Mt 27,47-49). Não é certo, se foram judeus ou romanos, que assim falaram. É provável que não tenham compreendido bem a palavra “Eli” e a transformaram em “Elias”, nome daquele profeta, por todos considerados arauto do Messias e protetor do povo de Deus. De qualquer maneira as palavras por eles ditas são expressões de desprezo e de escárnio.

Bem diferentemente o brado de Jesus calou no espírito e na alma de Maria Santíssima e de São João. Viam patentes aos seus olhos os abismos da desolação, do abandono e da agonia de Jesus Crucificado. Com Ele se mergulharam naquele mar de dores, e com Ele, em perfeita conformidade com a vontade e o amor do Pai Eterno, assim agiram por amor a nós, pobres pecadores, que ainda à espera nos achamos daquele momento, em que também nós nos veremos colocados naquele deserto, e de descer haveremos no abismo que nas suas trevas nos sepultará.

O Pe. Luis de la Palma escreve: “O Senhor estava por mais de três horas na cruz. Durante este tempo rogava ao Pai e oferecia seu sacrifício pelos nossos pecados. Próximo da hora nona, Jesus exclamou em voz forte: ‘Eli, Eli, lammá sabactáni?’ – o que quer dizer: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’ (Mt 27, 46). Todos o ouviram se dirigir ao Pai, usando as palavras do rei Davi (cf. Sl 21, 2). Estava o Senhor com o corpo chagado, a alma amargurada, perseguido e abandonado, sentia falta de tudo, não tinha onde repousar sua cabeça, tinha somente a cruz. Todas estas coisas aconteciam com o Filho de Deus. Ser aparentemente desamparado, justamente por obedecer a seu Pai, tudo isso, escapa à nossa compreensão humana. Devemos agradecer ao Espírito Santo por iluminar os escritos para que nos transmitissem este comportamento de Jesus, queixando-se de seu abandono, assim podemos meditar muito nesta passagem. Foi surpreendente que o Senhor quase morto, debilitado pela perda de sangue, quase sem forças, exclamasse em alta voz, mostrando toda sua angústia e solidão: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’ É um segredo da justiça e misericórdia de Deus. O justo é desamparado na sua tristeza, para que fossem protegidos os pecadores. A razão humana leva a pensar que a justiça, pela morte de seu Filho, seria a destruição de todas as nações. Mas não foi isso que aconteceu, o Pai abandona o Filho e faz com que sinta a pena que mereciam os nossos pecados. Tudo isso, Deus fez para nos consolar, para que tivéssemos uma esperança na sua misericórdia, uma vez que se cumpriu toda a justiça. Jesus nunca tinha sentido este desamparo de Deus. Estava constantemente na presença de Deus, face a face sempre de uma maneira direta, porque o Pai e o Filho são um único Deus. Mas o homem pode se separar de Deus, e para nossa salvação, quis Deus Pai que na cruz, Jesus sentisse a ausência de Deus. Mas em nenhum momento Jesus perdeu a confiança em seu Pai. Pouco antes confiantemente havia pedido perdão para a humanidade,    depois, também com muita confiança entregaria seu espírito nas mãos do Pai. Era impossível que o Pai abandonasse o Filho tão querido e obediente, que somente buscava a glória de Deus e em tudo se submeteu a sua vontade. Já havia declarado esta total confiança dizendo: ‘Aquele que me enviou está comigo; ele não me deixou sozinho, porque faço sempre o que é do seu agrado’ (Jo 8, 29). No entanto, desamparou-O durante esses últimos momentos da Paixão, deixando-O sentir toda amargura e solidão. Podia ter impedido a flagelação, a coroa de espinhos, os cravos, aniquilar os que queriam crucificá-lO, calar os que O insultavam; mas nada impediu. Sabemos que os mártires recebem de Deus uma graça especial para poderem suportar toda tortura e aceitar com alegria uma morte tão cruel em nome de Jesus. O Pai poderia conceder uma graça maior ainda para proteger seu Filho, por exemplo, poderia colocar à sua disposição um exército de anjos. Mas como havia dito a Pilatos, não convinha, pois o seu reino não é deste mundo. Deviam se cumprir as Escrituras, por isso Deus deixou que a hora e o poder das trevas agissem livremente sobre Jesus. O Senhor havia pedido no horto, que se fosse possível, se afastasse aquele cálice, mas entendeu completamente que a vontade divina já estava escrita. Morreria sem nenhuma defesa, não seria poupado de nenhum sofrimento, e isso se cumpriu com tanta dureza, que não pode reprimir este grito de angústia: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’ Podia Deus conceder um consolo interior na alma. Mesmo sofrendo a dor física, preservaria a dor em seu coração. É normal Deus conceder esta graça aos seus fiéis, sentem-se alegres por poderem sofrer por Ele; sentem-se tão perto de Deus, parece-lhes que nada os poderá atingir (cf. Sl 90, 10). Mas não era necessário algo novo, bastaria não lhe tirar a visão face a face que tinha de Deus.  Muitas vezes Deus faz assim: desampara os seus desta consolação e proteção, deixa que sintam a sua fraqueza. Fez assim com Jesus, para podermos aprender com o exemplo. Se Jesus não tivesse sofrido essa solidão, nós teríamos ficado sem consolo na nossa debilidade. Por esta razão foi conveniente ocultar sua glória e mostrá-lo somente com sua natureza humana, deixá-lO com sua dor, como se fosse apenas um homem. Este terrível desamparo, somente os que receberam esta especialíssima revelação de Deus,  sabem o peso e a dor destas palavras: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?’ É admirável que durante todo o julgamento, não se defendeu e guardou silêncio, e agora que já estava na cruz, e não tinha mais retorno, se lamentasse. Mas o que parece tão surpreendente está guardada uma lição para nós. Tinha sofrido tudo calado e pacientemente, mas, alguém poderia pensar que tinha a fortaleza das pedras e a carne de bronze (Jó 6, 12), e não sentia realmente dor ou sofrimento. Para que não ficasse dúvida que sofreu muito, queixou-se com aquele grito. Bastava olhá-lO, para saber que seu corpo não era de bronze: estava com o rosto desfigurado e o seu corpo todo ensanguentado. Bastava ouvir seus gemidos de dor para perceber que sua alma não era de pedra. Gritou e mostrou que era de carne e osso, com sentimentos, e que as ofensas O magoaram. No horto, havia mostrado estes sentimentos, mas apenas três apóstolos presenciaram este momento. Quando os seus inimigos ficaram satisfeitos, e o Senhor já tinha sofrido tudo que era necessário; manifestou os sentimentos de seu Coração, para que soubéssemos que embora tenha sofrido muito em seu corpo, maior ainda foi a dor em sua alma. Aquele grito representava toda sua dor. Não se queixou da traição de Judas, não reclamou de Pedro, nem dos sacerdotes, nem das falsas testemunhas, nem dos soldados, nem dos executores nem de Pilatos. Não se lamentou de ninguém. Queixou-se ao Pai, somente Ele poderia responder o motivo de seu desamparo. Aprendamos com Jesus que nos momentos de dificuldade encontraremos muito pouco apoio nos homens, e pelo contrário, muito em Deus, pois, ‘não se vendem dois passarinhos por um asse? No entanto, nenhum cai por terra sem a vontade de vosso Pai’ (Mt 10, 29). E se as nossas contrariedades são consequência e castigo dos nossos pecados, Ele é o juiz que sentencia, ainda que sejam os homens que a executem. Se as contrariedades são remédios das nossas doenças espirituais, Ele é o médico que receita, ainda que sejam os homens a dar o medicamento. Para aumentar o nosso mérito e a glória no céu, é Ele quem luta por nós e nos dá a coroa da vitória. O condenado não suplica ao carrasco, mas ao juiz; o doente não se trata com o farmacêutico, mas com o médico; os soldados não mostram suas feridas a outros soldados, mas ao comandante. Igualmente não devemos lançar a culpa e nem vingar-nos, naqueles que são motivo da nossa contrariedade, mas levantar os olhos a Deus, que é o nosso Comandante, nosso Médico e nosso Juiz. Naquele momento Jesus se sentia sozinho e chorava sua tristeza: ‘Falam de mim os que assentam às portas da cidade, escarnecem-me os que bebem vinho. Minha oração, porém, sobe até vós, Senhor, na hora de vossa misericórdia, ó Deus. Na vossa imensa bondade escutai-me, segundo a fidelidade de vosso socorro’ (Sl 68, 13-14). No horto havia pedido que o Pai não desamparasse, sujeitando-se totalmente à sua vontade, mas aparentemente foi abandonado e se queixou. Perguntou-Lhe a causa pelo abandono. Com os homens, a causa é pelo ódio e egoísmo, mas os motivos de Deus nascem do amor e são para o nosso proveito. Se soubéssemos os motivos não nos queixaríamos; somente agradeceríamos pela sua sabedoria. Por isso, perguntar-Lhe com humildade por esses motivos, significa desejo de submeter-se completamente à vontade de Deus. Os nossos pecados, que Ele tomou para si, exigiam esse abandono e morte. O Senhor foi abandonado para que nós não fôssemos abandonados por Deus e condenados à morte eterna. Não havia motivo para Deus O abandonar, mas Ele estava no nosso lugar, e recebeu o abandono e a morte que eram para nós. Alguns dos que escutavam o lamento de Jesus: ‘Eli, Eli, lammá sabactáni?’ começaram a fazer um jogo de palavras, dizendo que chamava Elias. Era uma zombaria, porque Elias deveria vir a anunciar o Messias, e como achavam que Jesus era um falso messias, parecia que pedia que Elias viesse a anunciá-lO como Cristo. Mas Elias já tinha vindo na pessoa de João Batista (Mt 17, 13). Em seguida, sabendo Jesus que tudo estava consumado, para se cumprir plenamente a Escritura, disse: ‘Tenho sede’ (Jo 19,  28)”.

“Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46).

José A. Marques escreve: “Com estas palavras manifesta o Senhor o sofrimento físico e moral que padece nesses momentos. De nenhum modo estas palavras são uma queixa contra os planos de Deus”.

 Santo Tomás de Aquino escreve: “Jesus sofreu na cruz umas dores de intensidade inigualável. Padeceu as dores corporais mais intensas, porque a sua sensibilidade era a mais delicada que jamais existiu, a sensibilidade de um corpo formado imediatamente pelo Espírito Santo na Virgem Maria; e a vida que ia deixar era de um preço inestimável, posto que tinha sido assumido pela divindade. Sofreu também as mais acerbas dores espirituais. A sua alma estava como destroçada, dividida entre a visão, por uma parte, da santidade infinita de Deus e, por outra, da onda incessante de pecado que provém da terra. Pela visão beatífica, via com um só olhar no espelho do Verbo todo o desenvolvimento da história, todos os pecados do gênero humano pelos quais oferecia em satisfação os seus próprios padecimentos. Via também todas as rejeições das almas, e a força divina de um amor lacerava o seu coração”.

Charles Journet comenta: “O clamor: meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes? é um grito de dor, não de desespero. Como os violentos soluços de Jó e de Jeremias, exprime a angústia da alma que sente ter chegado ao limite último da sua própria resistência, e que concita as suas forças para gritar a Deus que a medida está cheia. Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? No coração do salmista é um grito de angústia, não de rebelião, e o começo de um canto de esperança messiânica”.

 

5ª. Palavra

 

“Tenho sede” (Jo 19, 28).

 

O Pe. Luis de la Palma escreve: “Imediatamente um deles tomou uma esponja, embebeu-a de vinagre e apresentou-Lhe na ponta de uma vara para que bebesse. Os outros diziam: ‘Deixa! Vejamos se Elias virá socorrê-lo’ (Mt 27, 49). Apesar de todo sofrimento na cruz e toda zombaria, o Senhor cumpriu tudo o que estava estabelecido na Escritura. Dizendo que tinha sede, confirmava o salmo: na minha sede deram-me vinagre para beber (Sl 68, 22). Estava com uma sede que O atormentava, pois havia perdido muito sangue. Minha garganta está seca qual barro cozido, pega-se no paladar a minha língua (Sl 21, 16). Não pediu   água, apenas disse que tinha sede. Havia ali um vaso cheio de vinagre (Jo 19, 29), que era uma bebida usada pelos romanos e deram-Lhe para beber. A Virgem Maria gostaria de saciar a sede de seu Filho, mas os soldados não deixaram que se aproximasse, e ela continuou sofrendo ali a mesma sede de seu Filho. Mais do que esta sede que resseca a garganta, o Senhor tem sede pela nossa salvação. Senhor, gostaria que minhas lágrimas de arrependimento matassem sua sede, mas, eu que sou muitas vezes, mais cruel que seus inimigos, sou incapaz de Te dar esse alívio. Porque tinha sede de mim, o Senhor, desejou padecer muito por mim, por isso não reclamou da tortura da cruz, porque seu amor era maior e vencia os teus tormentos. Depois daquele cálice de amargura que bebeu no horto, aceitando a vontade de Deus, ainda estava com sede. Bendito seja, as torrentes não poderiam extinguir o amor, nem os rios o poderiam submergir (Ct 8, 7). Foi uma loucura o que o Senhor fez, é como se tivesse bebido toda a água de um rio e ainda tivesse sede. É maravilhosa a tua sede de sofrer por nosso amor. A tua sede de amor meu Deus, foi tanta, que entrou mar adentro e as ondas te submergiram, afundou num mar de dor até morrer. Em alto mar do sofrimento ainda diz que tem sede, parece pouca a tua dor? Basta, meu Deus, Basta! Os soldados que guardavam tinham que esperar até que os condenados estivessem mortos. Por isso, levavam com eles para acalmar a sede, uma mistura  de água com vinagre, chamada de posca, traziam também para dar aos condenados, porque um dos maiores tormentos na cruz, é a sede. Quando o Senhor disse que tinha sede, um dos soldados espetou uma esponja na ponta de sua lança, molhou-a na posca e deu de beber a Jesus. Os outros que não tinham piedade, disseram para deixar, pois Elias iria salvá-lO. Que se poderia fazer por minha vinha que eu não tenha feito? Por que, quando esperava vê-la produzir uvas, só deu agraço? (Is 5, 4). Em vez de vinho, produziu vinagre. Havendo Jesus tomado do vinagre, disse: ‘Tudo está consumado’ (Jo 19, 30)”.  

Muito grande devia ter sido o sofrimento de Jesus causado pela sede. De outras dores, por atrozes que foram: da flagelação, da coroação de espinhos, da própria crucificação não se queixa, mas do tormento da sede se lastima, pedindo fosse-lhe aliviado.

As circunstâncias em que Jesus se queixa da sede, dão-nos uma ideia da extensão do seu sofrimento. Grandes dores geralmente são acompanhadas também de veemente sede, e é a sede que mais atormenta os pobres crucificados. Desde a hora da última ceia nenhuma gota de água refrigerara os lábios de Jesus. Grande tinha sido a perda de sangue na flagelação, na coroação de espinhos, e maior ainda na crucifixão. Mirrada estava a fonte da vida, e o corpo todo estremecia em dolorosos arrancos de febre, expostas que se achavam as feridas todas, desde a cabeça até os pés. Assim os lábios estavam ressequidos, a língua como que carbonizada, a boca seca e dolorida. Que náufrago houve que tanto, como Nosso Senhor, fosse atormentado pela sede? A sede pode chegar a ser um verdadeiro martírio, capaz de levar ao desespero homens de forte resistência, e morte mais dolorosa que a provocada pela sede, dificilmente pode haver.

Reparemos com quanta humildade Jesus proferiu sua queixa. Nada pede, e só muito tarde, decorridas muitas horas, manifestava o quanto sofre.

Se fala, diz apenas estas duas palavras “tenho sede”, é mais para demonstrar que completo está o martírio da crucifixão; que não se recusa a beber até a última gota o cálice da dor e do sofrimento; fala para provar que cumpridas se achavam as profecias (Jo 19, 28; Sl 68, 22): “E deram-me fel por comida, e na minha sede apresentaram-me vinagre”. - Fala para revelar ao mundo, que outra sede o torturava, uma sede de outra espécie, da qual a sofrida na cruz é apenas imagem apresentava: a sede pela salvação dos homens, inclusive dos judeus. O desejo que O devorava de possuir suas almas, era muito mais intenso do que deles obter um leve lenimento que não lhe negariam, embora inimigos e algozes desalmados que eram. Em espírito Ele via todos os homens, que só e unicamente por Ele podiam achar sua salvação. Seu coração ardia em desejo de salvar a todos, e esta sede o cruciava infinitamente mais que a forte sensação da sede corporal e física. Outra não foi e não podia ser a finalidade de toda a sua Paixão e Morte, senão a salvação do gênero humano: Tenho sede!’ Estas palavras acendiam em mim um ardor estranho e acendrado... Queria dar de beber ao meu Bem-Amado” (Santa Teresa do Menino Jesus), e: “Além da natural desidratação que produzia o suplício da cruz, pode também ver-se na sede de Jesus uma manifestação do seu desejo ardente por cumprir a vontade do Pai e salvar todas as almas” (José A. Marques), e também: “Do alto da cruz clamou: tenho sede. Sede de nós, do nosso amor, das nossas almas e de todas as almas que lhe devemos levar pelo caminho da Cruz, que é o caminho da imortalidade e da glória do Céu” (São Josemaría Escrivá).

O seu pedido foi atendido imediatamente, se bem que de uma maneira assaz precária e humilhante. Ainda fosse um gole de água fresca ou de vinho reconfortante; - mas não: ofereceram-Lhe uma esponja embebida em vinagre, e não sem adicionar zombarias indignas e ofensivas.

“Correndo um, e ensopando uma esponja em vinagre – relata São Marcos, - e atando-a numa cana, deu-lhe de beber, dizendo: ‘Deixai, vejamos se Elias vem livrá-lo” (Mc 15, 36). Foi este o refrigério único, que já nas vascas da agonia foi oferecido Àquele que aos homens deu e dá tudo e em abundância: água deliciosa, vinho saboroso e bebidas agradáveis! Nem um gole d’água as suas criaturas Lhe deram! A água ficou longe dos seus lábios, como longe ficou dos lábios do mau e amaldiçoado rico. Também a sua sede espiritual não teve tão desejada satisfação. Nem o mau ladrão mitigou o seu sofrimento com a dádiva de sua alma. Ele a negou, preferindo entregá-la a Satanás. Assim é até hoje. Todos passam pela cruz de Cristo e quantos não lhe negam a sua alma, preferindo lançá-la ao inferno. -la ao inferno!

Grande foi também a dor de Maria Santíssima e das santas mulheres, que assistiram bem de perto esta cena tristíssima e desoladora. Não lhes faltaria a coragem e a prontidão de, com perigo de vida, buscar um pouco           d' água, como o fizeram os guerreiros de Davi (1 Cr 11, 18). Nada, porém, podiam fazer. Era-lhes vedada qualquer intervenção a favor do crucificado. Acompanhando-O na sua dor, lendo  nos seus olhos a luz da vida se apagar, vendo sua boca entreaberta e seus lábios mirrados de sede ardente, nenhum socorro Lhe podiam prestar, senão o da sua boa vontade, da sua alma e do seu amor.

 

6.ª Palavra

 

“Tudo está consumado” (Jo 19, 30).

 

Já ia para três horas dolorosíssimas que Jesus pendia na cruz. Lentamente a morte se aproximava. O corpo de Nosso Senhor, todo já sem força, começou a ceder no seu peso natural, parecendo que os pregos não mais o pudessem segurar. O rosto se recobria da lividez cadavérica. Das chagas corriam filetes de sangue escuro, quase preto. O semblante se alongava; a fisionomia se afilava toda, as faces se encovavam, os lábios arroxeados e semi-abertos deixavam aparecer a língua, os olhos, injetados de sangue, ainda se moviam vagamente e sem fixidez. - Profundo silêncio... Entre sofrimentos indizíveis, misteriosos e colóquios com o Eterno Pai vinha chegando a morte.

Ainda uma vez Jesus levantou a cabeça coroada de espinhos e exclamou: “Tudo está consumado” (Jo 19, 30). Com isto queria Ele dizer: “Estou no fim da minha vida: esgotaram-me as torturas e maus tratos. A morte entra nos seus direitos. Minha tarefa está cumprida; cumpridas estão as profecias, feita está a vontade de meu Pai, nada me resta a fazer. Exterminado está o pecado, satisfeita a justiça divina. Garantidas estão a graça e a glória, terminada se acha a minha missão; repleto está o tesouro dos merecimentos...”

O Pe. Luis de la Palma escreve: “O Senhor foi enviado com duas missões: ser o Messias e o Redentor, e as cumpriu perfeitamente. Na última ceia orou ao Pai: ‘Eu te glorifiquei a terra. Terminei a obra que me deste para fazer. Agora, pois, Pai, glorifica-Me junto de Ti, concedendo-Me a glória que tive junto de Ti, antes que o mundo fosse criado. Manifestei o Teu nome aos homens que do mundo Me deste’ (Jo 17, 4-6). Antes de sofrer, havia dito: ‘Eis que subiremos a Jerusalém. Tudo o que foi escrito pelos profetas a respeito do Filho do Homem será cumprido’ (Lc 18, 31). Agora tudo estava cumprido, até a última letra que escreveram os profetas. Na cruz tudo se cumpriu, para que os eleitos de Deus soubessem que na cruz está a força de Deus, a plenitude e perfeição de todas as coisas. O que é mistério para o homem, o que é escândalo para os judeus e loucura para os gentios, é onipotência de Deus. Tudo está consumado: bebi o cálice de Minha Paixão, sem deixar uma gota nele; as profecias foram cumpridas e toda a Escritura encontrou seu sentido em Mim; paguei a dívida dos homens e comprei-os, para lhes dar a glória; a amizade de Deus com os homens foi restabelecida. Eu venci, termina Minha vida na terra e começa o triunfo de Minha glória. Consummatum est. Palavras misteriosas que encerram tudo o que Jesus Cristo realizou para nossa redenção. Somente quem a realizou conhece o sentido profundo. Devemos nos colocar junto da cruz para chegar a conhecer esse mistério. Na presença do Senhor, com a ajuda da sua graça, meditaremos como era grande a dívida que Adão transmitiu aos seus filhos em desobedecer a Deus. Por ser o nosso pai, estava obrigado a pagar a dívida. Mas nem ele, nem nós, mesmo juntando toda a riqueza do mundo, poderíamos pagar. Pelos pecados voluntários dos homens, a dívida aumentava a cada instante. Os demônios estavam preparados para levar as almas dos homens para o inferno, onde ficariam eternamente, pois não teriam condições de quitar a dívida. Mas o Senhor é misericordioso, desceu do céu para resgatar nossa dívida, pagar o que não tinha roubado (Sl 68, 5). Pagou com seu sangue na cruz, rasgou nossas promissórias e nos anistiou. Converteu-se em nosso Senhor e deu-nos a liberdade, tirando do demônio o direito que tinha sobre nós. Antes de partir deu a boa notícia: Tudo está cumprido, a dívida foi paga, estão todos livres. Foi tão generosa a sua redenção; pagou excessivamente acima da nossa dívida, que além de nos libertar do inferno, conseguiu-nos a vida eterna. A Paixão do Senhor mereceu a glória para todos; antes, os nossos solitários sofrimentos não conseguiam pagar, mas, agora unidos aos de Cristo, fazem jus ao pagamento de nossos pecados. Com o pagamento na Cruz, o homem que era pobre, ficou enriquecido com a misericórdia de Deus. Antes tremíamos em pensar na justiça de Deus, agora podemos pedir o prêmio, pois nenhum atleta será coroado, se não tiver lutado segundo as regras (2 Tm 2, 5). Perante o tribunal divino, podemos reivindicar, porque pelas palavras de Cristo, tudo está pago. Os homens com seus pecados desobedeciam a Deus, estavam em uma situação miserável. Como poderiam se esconder da justiça divina? Ninguém podia estar em paz com Deus; não havia consolo. Quem poderia ser mediador entre Deus e os homens para poder alcançar o perdão? Por outro lado, não se pode fazer a paz, se não há satisfação dos agravos feitos. O homem era fraco, não tinha poder de desagravar e nem forças para não voltar a ofender a Deus. Esta é a causa pela qual não se alcançava a paz entre Deus e os homens. Uma guerra contra Deus, somente poderia levar o homem à condenação eterna. Mas, Deus tem um coração piedoso. Enviou um mediador, Jesus Cristo, para ajudar a salvar os homens. ‘Porque aprouve a Deus fazer habitar nele toda a plenitude e por seu intermédio reconciliar consigo todas as criaturas, por intermédio daquele que, ao preço do próprio sangue na cruz, restabeleceu a paz a tudo quanto há na terra e nos céus”   (Cl 1, 19-20). Estava o príncipe da paz cravado na cruz, levantado entre o céu e a terra, garantindo a paz eterna. E este tratado de paz foi assegurado na presença da corte celeste, pois o Senhor vê a Deus face a face. Oferecia da parte dos homens o Seu sangue e a Sua vida para saldar as dívidas e desagravar as injúrias cometidas contra Deus. Dirigiu preces e súplicas, entre clamores e lágrimas, Àquele que podia salvar da morte, e foi atendido pela sua piedade (Hb 5, 7), e pelo imenso amor que o Pai sente pelo Filho. Firmado este acordo de paz eterna, Consummatum est. Ao morrer na cruz, o Senhor se fez autor e consumador de nossa fé (Hb 12, 1). Na cruz realizou a consumação do que acreditamos e deu firmeza para as que esperamos; mostrou o caminho para alcançar as coisas do alto, e animou-nos para deixar por Ele, todas as coisas materiais. Na cruz se tornaram realidades todas as promessas de Deus. ‘Porque todas as promessas de Deus são ‘sim’ em Jesus’ (2 Cor 1, 20). Pois a lei nada levou à perfeição (Hb 7, 19), estava cheia de cerimônias inúteis e vazias. ‘Agora, porém, conhecendo a Deus, ou melhor, sendo conhecidos por Deus, como é que tornais aos rudimentos fracos e miseráveis, querendo de novo escravizar-vos a eles?’ (Gl 4, 9). ‘Por uma só oblação ele realizou a perfeição definitiva daqueles que recebem a santificação’ (Hb 10, 14).  Tudo está consumado, tudo está perfeito, tudo foi cumprido. Levei até o fim o que a eterna sabedoria tinha fixado. Paguei o que pedia sua justiça e tudo foi feito em favor do homem, porque Deus é piedoso e cheio de misericórdia. Tudo o que os patriarcas prometeram, tudo que os profetas anunciaram, todas as imagens e símbolos a meu respeito, tudo está cumprido. Ensinei tudo, para que deixem a ignorância e corrijam os erros; dei o remédio para curar o mal. Não falta nada para os tíbios, para que se tornem fervorosos e fortes; todo consolo foi deixado, para que se tornem santos. Venci o mundo, agora podem também triunfar sobre as forças demoníacas, porque tudo está consumado. Com seu exemplo, aprendemos a não desistir nunca daquilo que começamos para a glória de Deus. Por muitas dificuldades que se apresentem, por muitos inconvenientes que nos ponham, não devemos nunca voltar atrás. Para que não digam de nós; ‘este homem começou a edificar, mas não pode terminar’ (Lc 14, 30). Desse modo, cercados como estamos de uma tal nuvem de testemunhas, desvencilhemo-nos das cadeias do pecado. ‘Corramos com perseverança ao combate proposto, com o olhar fixo no autor e consumador de nossa fé, Jesus. Em vez de gozo que se lhe oferecera, Ele suportou a cruz e está sentado à direita do trono de Deus. Considerai, pois, atentamente aquele que sofreu tantas contrariedades dos pecadores, e não vos deixeis abater pelo desânimo. Ainda não tendes resistido até o sangue na luta contra o pecado’ (Hb 12, 1-4). ‘Combate pela justiça a fim de salvar tua vida; até a morte, combate pela justiça’ (Eclo 4, 33). ‘Sê fiel até a morte e te darei a coroa da vida’ (Ap 2, 10). Não devemos fugir da cruz, mas perseverar nela, até que se cumpra em nós, inteiramente a vontade de Deus. Com o tempo, todas as contrariedades e penas terminam. O que no começo parece insuportável, se sofrermos um pouco e voltarmos nosso pensamento ao Senhor, tudo passa rapidamente. Nunca nos faltará o consolo de Cristo. A Virgem Maria levantou os olhos ao escutar que tudo estava consumado. Tentou erguer a cabeça do Senhor, mas suas mãos não o alcançavam, caíram seus braços sem poder abraçar seu Filho; Jesus morria, e ela não podia morrer com Ele. O seu corpo desfalecia; sua alma estava tão unida à de seu Filho, que morria na dor com Ele. De repente, viu-O tomar o último fôlego e exclamar suas últimas palavras. Jesus deu então um grande brado e disse:   ‘Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito. E dizendo isso, expirou” (Lc 23, 46)”.

Charles Journet escreve: “Jesus não veio para cumprir as profecias; veio para fazer a vontade de seu Pai: Desci do céu, não para fazer a  minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou... (Jo 6, 38). Não busco a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou... (Jo 5, 30). O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar a sua obra (Jo 4, 34). Mas ao fazer a vontade do Pai, cumpre as profecias. Ele sabe-o. No fim da sua vida, quando a obra de Seu Pai está realizada, todas as profecias estão cumpridas, até mesmo a que anunciava que ao justo lhe dariam a beber vinagre, e pôde dizer: Tudo está consumado. Tudo se cumpriu, tudo está consumado: isto significa não só que as profecias se cumpriram, mas também que o foram de uma maneira tão elevada, tão plena, tão divina, que ultrapassa a esperança de Israel”.

 

7.ª Palavra

 

“Pai, em tuas mãos encomendo o meu espírito” (Lc 23, 46).

 

O Pe. Luis de la Palma escreve: “Quando colocamos algo valioso nas mãos de outro, é porque confiamos que esta pessoa cuidará bem, como se fosse seu. Se isso acontece conosco, que somos muitas vezes mentirosos e fazemos as coisas mal feitas; muito mais razoável e sensato é que confiemos em Deus, pois ‘o Senhor é fiel nas suas palavras e Santo em tudo o que faz’ (Sl 144, 13). Por acaso conhecemos alguém que esperou algo de Deus e não foi atendido? Tudo o que temos é de Deus; devemos considerar e crer que é bom tudo o que faz em nós, amar e obedecer o que dispõe sobre nós.  É mais valiosa esta confiança em Deus, quando estamos a sofrer uma contrariedade. Nestes momentos, além de confiar, devemos nos colocar em Suas mãos e dizer: seja feita a Vossa vontade. Assim, manifestamos que Ele é justo e santo em tudo, ainda que nos levasse à morte. ‘Se ele me mata, nada mais tenho  a esperar, e assim mesmo defenderei minha causa diante dele’ (Jó 13, 15). Assim, ensinou o Mestre, confiou sempre em Deus, mesmo no meio dos tomentos. Antes de começar sua Paixão, colocou nas mãos de Deus sua vida e sua honra: ‘Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice! Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres. Meu pai, se não é possível que esse cálice passe sem que eu beba, faça-se a tua vontade!’ (Mt 26, 39-42). Tendo certeza que essa era a vontade de Deus, quando Pedro tentou persuadi-lO, disse: ‘Não hei de beber o cálice que o Pai me deu?’ (Jo 18, 11). O Senhor se colocou totalmente nas mãos de seu Pai, mesmo depois de ver a morte e vergonha que sofreria; da flagelação e dor e das horas angustiantes na cruz. Ainda assim, confia plenamente e entrega seu espírito ao Pai. Chamou de Pai antes de sofrer, e continuou chamando de Pai quando estava para morrer. Sabia com certeza que ressuscitaria ao terceiro dia, que esta vitória Lhe era devida pelos seus méritos; no entanto, não quis fazer justiça por Suas mãos, se colocou nas mãos de Deus, esperando pelos três dias, onde retomaria seu corpo, já glorioso e imortal. As mãos de Deus era o lugar mais seguro, nelas nada poderia a morte. ‘As almas dos justos estão nas mãos de Deus, e nenhum tormento os tocará’ (Sb 3, 1). Os que tem fé, sabem que para onde for a alma, lá ficará para sempre. Não há outra saída, só Deus pode salvar o homem. Não podemos fazer outra coisa, a não ser se colocar nas mãos de Deus e confiar na sua misericórdia e dizer: ‘Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito’. O senhor com esse brado mostrou a confiança e segurança com  que morria, o triunfo que conquistava sobre seus inimigos. Foi um clamor de vencedor. Demonstrou que era Senhor da vida e da morte, que morria por seu próprio desejo; como teve forças para dar esse grito, também poderia estender sua vida o tempo que quisesse. Tanto que o centurião que estava diante de Jesus, ao ver que Ele tinha expirado assim, disse: ‘Este homem era realmente o Filho de Deus’ (Mc 15, 39). Jesus na cruz falou sete vezes, ao contrário do silêncio em sua defesa durante todo o julgamento. Tanto que a própria escritura pondera seu silêncio: ‘Eis o meu servo que eu amparo, meu eleito ao qual dou toda minha afeição, faço repousar sobre ele meu espírito, para que leve às nações a verdadeira religião. Ele não grita, nunca elevará a voz, não clama nas ruas’ (Is 42, 1-2). ‘Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca’ (Is 53,7). Não se defendeu perante as acusações, inclusive disse ao pontífice: ‘Por que me perguntas? Pergunta àqueles que ouviram o que lhes disse. Estes sabem o que ensinei’ (Jo 18, 21). Sete vezes falou na cruz, não em sua defesa, mas para nosso proveito; três vezes falou com Deus, nas outras quatro, falou com os homens: a primeira foi para perdoar o ladrão; a segunda vez, com sua Mãe e João; a terceira foi para dizer que tinha sede, e que bebia o único fruto da sinagoga, o vinagre; a quarta vez dirigiu-se à nova Igreja, proclamando que tudo estava terminado, e que tinha conseguido a sua salvação. A primeira vez que falou na cruz foi com Deus, depois falou com Ele, uma vez no meio e por fim, dirigiu-lhe as últimas palavras. Foi um exemplo de como devemos recorrer a Deus em todas as ocasiões. Ele deve ser o princípio e o fim, e estar no meio das nossas ações. A  Deus não é preciso gritar, pois ouve o mais silencioso desejo de nossa alma. Mas, Jesus bradou para que soubéssemos e ficássemos seguros, de que suas preces tinham sido ouvidas por Deus. ‘Eu bem sei que sempre me ouves, mas falo assim por causa do povo que está em volta para que creiam que tu me  enviastes’ (Jo 11, 42). Nos dias de sua vida mortal, dirigiu preces e súplicas entre clamores e lágrimas, àquele que o podia salvar da morte, e foi atendido pela sua piedade. ‘Embora fosse filho de Deus, aprendeu a obediência por meio dos sofrimentos que teve’ (Hb 5, 7-8). ‘Porque vós não abandonareis minha alma na habitação dos mortos, nem permitireis que vosso Santo conheça a corrupção’ (Sl 15, 10). Pedia o que já estava anunciado simbolicamente em Jonas, que ao terceiro dia voltaria. Jesus, depois de se dirigir ao Pai, ‘inclinou a cabeça e rendeu o Espírito’ (Jo 19, 30). Com tudo que sofreu, desde a noite anterior, sem descansar ou dormir, ainda resistiu por mais de três horas. Ele mesmo havia dito: ‘O Pai me ama, porque dou a minha vida para retomar. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou de mim mesmo e tenho o poder de reassumi-la. Tal é a ordem que recebi de meu Pai’ (Jo 10, 17-18). Os que odeiam a minha vida armam-me ciladas; os que me procuram perder ameaçam-me de morte; não cessam de planejar traições (Sl 37, 13). Mesmo assim, ninguém lhe tirou a vida, somente quando desejou. Só quando toda a Escritura tinha se cumprido deu o grito e entregou sua alma. Morreu erguido como um valente. A cruz sustentava aquele corpo sagrado, que representava para Deus o preço da nossa salvação; e para os homens o consolo dos nossos sofrimentos; o exemplo para a nossa vida, o guia do nosso caminho, a nossa esperança, o nosso amor e a imagem dos escolhidos. Jesus na cruz também é o desespero dos demônios, o vencedor da morte e do pecado, o Santo. Do alto da cruz nos ensina, nos censura, nos alenta e nos ama, apesar de sua morte, ele ainda fala (Hb 11, 4)”.   

Exclamando em alta voz, elevado o olhar ao céu, com expressão de confiança filial e de completa conformidade, disse: “Pai, em tuas mãos encomendo o meu espírito!” Esta exclamação do Salvador contém para nós o ensinamento de aceitarmos a morte com oração, com os sentimentos de amor, de dedicação irrestrita e de confiança incondicional. Jesus reconhece no Pai o autor, a origem de todas as coisas, o Senhor da vida e da morte. Nas mãos do Pai, de quem a recebeu, entrega a sua alma. Mais: podia parecer dura a maneira de que o mesmo Pai O tinha abandonado na sua agonia. Mas este gesto de inexorável justiça não conseguira diminuir o seu amor filial. “Tu és o que me tiraste do ventre materno, és a minha esperança desde os peitos de minha mãe. Tu és o meu Deus desde o ventre materno” (Sl 21, 10-11). “Ainda que me mate, nele porei a minha esperança” (Jó 13, 15). Chama-O de Pai, e agora, prestes a entregar sua alma, não sabe a quem confiadamente se dirigir, senão ao Pai celestial. O que de mais precioso possui ao deixar esta vida, é ao Pai que o confia: sua alma.

Assim se avizinhou a morte, a morte, a mais dura das provações, a morte que constitui para a natureza dos sacrifícios o maior e mais doloroso; a morte; a humilhação máxima, que quais criminosos cúmplices desapiedadamente separam corpo e alma; a morte, o combate último e desesperado, em que a vida, sitiada e rebatida de todos os lados opõe a última resistência; a morte, a dor mais profunda, cujo amor que às vezes se revela numa última lágrima que se desprende dos olhos, ou numa contração dolorosa e característica nas comissuras dos lábios; a morte, o triste fruto do pecado, que com seu cetro aniquilador acena a todos os descendentes de Adão e os converte em pó; esta morte se aproximou de Jesus. Teria ela poder sobre o Santíssimo, sobre o autor de toda a vida; obrigá-lO a se sujeitar ao seu império duro e tenebroso? Assim aconteceu, porque Ele mesmo assim o quis.

“E inclinando a cabeça, rendeu o espírito” (Jo 19,30).

 Eram três horas da tarde. Morreu, porque Ele assim determinara. O Evangelista que nos relata a morte de Jesus parece ver na inclinação da cabeça, no momento da morte, a manifestação da livre vontade de Nosso Senhor; porque ordinariamente a morte do crucificado se dá de modo inverso: a vítima morre, e, morto, inclina a cabeça. Três Evangelistas (Mt 27, 50; Mc 15, 37; Lc 23, 46) dizem que Jesus, no momento de exalar o último suspiro, soltou um alto e vigoroso grito, circunstância esta que deu ao capitão romano a convicção de Jesus ser realmente o Filho de Deus, e desta convicção deu testemunho. Assim a morte de Jesus revela não só toda a fraqueza de sua verdadeira natureza humana, como também traz o estigma da sua autonomia divina, de Deus-Homem.

Jesus morreu em sua majestade do Filho de Deus, sua morte tem todos os característicos de santidade perfeitíssima, na execução das mais belas virtudes, na submissão incondicional à suprema vontade de Deus Pai, pela obediência, pela confiança e pelo amor a Deus e aos homens. Sua morte não é só, como a morte de todo o justo é, “preciosa é aos olhos do Senhor” (Sl 115, 6), mas o modelo, a coroa, a consumação, a fonte de toda morte santa, como de toda a vida. Nós vivemos na sua morte vivificadora. Tudo isto Ele nos mereceu com sua morte dolorosa e amaríssima.

Coloquemo-nos ao lado de Maria Santíssima, de São João e das santas mulheres, testemunhas que foram da morte de Jesus e lhe assistiram até o último momento. Sigamos o seu exemplo e unamo-nos aos seus sentimentos, à sua angústia e profunda dor. Com Maria Santíssima e as demais santas pessoas professemos a divindade de Jesus e O adoremos. Choremos, choremos os nossos pecados, cuja vítima vemos pagar o mais alto e mais doloroso resgate.

Ensina-nos o Puríssimo Coração de Maria celebrar dignamente a morte de Jesus no íntimo de nossa alma. Foi o Puríssimo Coração de Maria o altar vivo, sobre o qual o Cordeiro se imolou pelos pecados do mundo, e ninguém acompanhou aquele tremendo sacrifício com tanto amor e com tão admiráveis sentimentos e intenções como a Mãe de Jesus. Sendo ela, que na encarnação e no nascimento de Jesus, com o seu amor e sua adoração representou a humanidade toda, idêntica é a sua missão na morte de seu Filho. Foi ela a primeira a realizar a solene adoração da Cruz, que a Igreja anualmente, e de um modo tão comovedor renova na Sexta-Feira Santa, quando canta: “Eis o Lenho da Cruz, do qual pendeu a salvação do mundo! Vinde, adoremo-lo! Ó Deus Santo. Ó Deus forte. Ó Deus imortal, compadecei-vos de nós!”

 

Pe. Divino Antônio Lopes FP.

Anápolis, 27 de setembro de 2009

 

 

Bibliografia

 

São Josemaría Escrivá, Via-Sacra

Clarence J. Enzler, Cristo minha vida

Santo Afonso Maria de Ligório, Meditações

Pe. João Batista Lehmann, Euntes... Praedicate!

José A. Marques, Edições Theologica

Paulo VI, Credo do Povo de Deus

Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica

Santa Teresa do Menino Jesus, História de uma alma

 

 

 

 

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Pe. Divino Antônio Lopes FP. “Jesus no calvário”
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