EU VOS TENHO BATIZADO COM ÁGUA “1 Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. 2 Conforme está escrito no profeta Isaías: Eis que eu envio o meu mensageiro diante de ti, a fim de preparar o teu caminho; 3 voz do que clama no deserto: preparai o caminho do Senhor, tornai retas suas veredas. 4 João Batista esteve no deserto proclamando um batismo de arrependimento para a remissão dos pecados. 5 E iam até ele toda a região da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém, e eram batizados por ele no rio Jordão, confessando seus pecados. 6 João se vestia de pêlos de camelo e se alimentava de gafanhotos e mel silvestre. 7 E proclamava: ‘Depois de mim, vem o mais forte do que eu, de quem não sou digno de, abaixando-me, desatar a correia das sandálias. 8 Eu vos tenho batizado com água. Ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo”.
Em Mc 1, 1 diz: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”.
São Jerônimo escreve: “Marcos evangelista, levita segundo sua linhagem, sendo sacerdote de Israel, convertido ao Senhor, escreveu o Evangelho na Itália. Assinalava o princípio da ordem da eleição levítica, ao dizer: ‘Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus’. E começava o Evangelho com uma exclamação profética sobre João, filho de Zacarias” (No Prólogo), e: “Se chama Evangelho (euaggelion), em grego, o que em latim significa boa nova. Porque se refere propriamente ao reino de Deus e à remissão dos pecados, e porque é pelo Evangelho por onde vem a redenção dos fiéis e a bem-aventurança dos santos. Os quatro Evangelhos, na realidade, não formam mais que um, já que em cada um se contém os quatro. Em hebraico se diz Jesus, em grego Soter (swthr), e em latim Salvador. Cristo se diz em grego cristo, que em hebraico é Messias e em latim Ungido, isto é, Rei Sacerdote” (Idem., No Princípio do Comentário), e também: “Se há de comparar, pois, o princípio deste Evangelho com o princípio de São Mateus, que diz: ‘Livro da geração de Jesus Cristo, Filho de Davi, Filho de Abraão’. Ele é chamado em São Marcos: ‘Filho de Deus’. Porém devemos entender que Nosso Senhor Jesus Cristo é chamado indistintamente Filho de Deus e Filho do homem. E com razão o chama Filho do homem o primeiro evangelista, e o segundo Filho de Deus, a fim de que nosso pensamento se eleve pouco a pouco do menor ao maior e chegue pela fé e os sacramentos da humanidade ao conhecimento da eternidade divina. Com razão também o que havia de descrever a geração humana começou pelo Filho do homem, isto é, Davi ou Abraão. Igualmente, o que começava seu livro desde o princípio da pregação evangélica, quis chamar Filho de Deus a Jesus Cristo, porque era de natureza humana o tomar verdadeiramente a carne da descendência dos patriarcas, e foi de potência divina pregar o Evangelho ao mundo” (São Beda), e ainda: “Não confirmou, pois, a Cristo Filho de Deus só no nome, mas também em sua natureza. Nós somos filhos de Deus, porém não o somos como Ele, já que Ele o era por princípio, em sentido próprio e verdadeiro, e não por adoção. O era por verdade, não por promessa; por origem, não por criação” (Santo Hilário, De la Trindade, lib. 2 ante medium).
Edições Theologica comenta Mc 1, 1. Com estas palavras São Marcos dá-nos o título do livro. Ao mesmo tempo põe em relevo que Jesus é o Messias anunciado pelos Profetas e o Filho único do Pai por natureza. Nisto fica resumido o conteúdo do segundo Evangelho: Jesus Cristo, Deus e Homem verdadeiro. A palavra “evangelho” indica o feliz anúncio, a boa nova que Deus comunica aos homens por meio do Seu Filho. O conteúdo dessa boa nova é em primeiro lugar o próprio Jesus Cristo, as Suas palavras e as Suas obras. “Durante o Sínodo (refere-se ao Sínodo dos Bispos de 1974), muitas vezes os Bispos lembraram esta verdade: o próprio Jesus, ‘Evangelho de Deus’ (cfr Mc 1,1; Rom 1, 13), foi o primeiro e o maior dos evangelizadores. Ele foi isso mesmo até ao fim, até à perfeição, até ao sacrifício da Sua vida terrena” (Paulo VI, Evangelii Nuntiandi, n. 7). Os Apóstolos, escolhidos pelo Senhor para serem fundamento da Sua Igreja, cumpriram o mandato de apresentar a judeus e gentios, por meio da pregação oral, o testemunho do que tinham visto e ouvido: o cumprimento em Jesus Cristo das profecias do Antigo Testamento, a remissão dos pecados, a filiação adotiva e a herança do Céu oferecidas a todos os homens. Por isto, também a pregação apostólica pode chamar-se “evangelho”. Finalmente os evangelistas, movidos pelo Espírito Santo, puseram por escrito parte desta pregação oral. Deste modo, pela Sagrada Escritura e pela Tradição apostólica, a voz de Cristo perpetua-se por todos os séculos e faz-se ouvir em todas as gerações e em todos os povos. A Igreja, continuadora da missão apostólica, tem a tarefa de dar a conhecer o “evangelho”. Assim, por exemplo, fá-lo por meio da Catequese: “O objeto essencial e primordial da catequese é, empregando uma expressão muito familiar a São Paulo e à teologia contemporânea, ‘o Mistério de Cristo’ (...). Trata-se, portanto, de descobrir na Pessoa de Cristo o desígnio eterno de Deus que se realiza n’Ele. Trata-se de procurar compreender o significado dos gestos e das palavras de Cristo, os sinais realizados por Ele próprio, pois eles encerram e manifestam ao mesmo tempo o Seu Mistério. Neste sentido, o fim último da catequese é pôr cada um não só em contato, mas em comunhão, em intimidade com Jesus Cristo: só Ele pode conduzir-nos ao amor do Pai no Espírito e tornar-nos participantes da vida da Santíssima Trindade” (João Paulo II, Catechesi Tradendae, n. 5).
PIB comenta esse versículo. Princípio do Evangelho de Jesus Cristo: não se trata de simples título, mas quer dizer que o anúncio da boa nova começou com a pregação de João Batista. Reunindo os dois nomes, Jesus e Cristo, apresenta-nos o nome completo do Salvador, com o qual já era chamado desde as primeiras gerações cristãs e, acrescentando a expressão Filho de Deus, quer indicar-nos qual é a finalidade do seu trabalho: demonstrar que Jesus é o verdadeiro Filho de Deus.
Em Mc 1, 2-3 diz: “Conforme está escrito no profeta Isaías: Eis que eu envio o meu mensageiro diante de ti, a fim de preparar o teu caminho; voz do que clama no deserto: preparai o caminho do Senhor, tornai retas suas veredas”.
São Beda escreve: “Havendo de São Marcos escrever o Evangelho, cita, ante tudo, oportunamente o testemunho dos profetas, a fim de que mostrando o que havia sido predito por estes, admitiram todos sem escrúpulos nem dúvida alguma o que ele escrevesse. Começando assim seu Evangelho, moveu aos judeus, que haviam recebido a Lei e os Profetas, a receber a graça do Evangelho e os sacramentos que haviam sido preditos nas profecias. Justamente leva aos gentios, que pelas novas do Evangelho vieram ao Senhor, também a receber e venerar a autoridade da Lei e os Profetas. Pelo que disse: ‘Como está escrito no profeta Isaías: Eis aqui”, e: “Isto não se encontra em Isaías, mas em Malaquias, último dos doze profetas” (São Jerônimo, Del mejor modo de interpretar, a Pammach, epist. 101, cap. 3), e também: “Ou de outro modo: se diz que reuniu em uma, duas profecias anunciadas pelos dois profetas em diferentes lugares; pois no profeta Isaías, depois da história de Ezequias, se lê (Is 40, 3): ‘Voz que clama no deserto’; e em Malaquias (Ml 3, 1): ‘Eis que envio o meu anjo’. Abreviando, pois, o evangelista, pôs as duas profecias como de Isaías, e as refere a uma leitura, não expressando quem disse: ‘Eis que envio ao anjo” (São João Crisóstomo, Hom. 1 sobre São Marcos), e ainda: “Ou se há de entender de outro modo, porque, ainda que não se encontram estas primeiras palavras em Isaías; seu sentido, entretanto, se acha em outros muitos lugares, e mais claramente nele que se acrescenta: ‘Voz que clama no deserto’. Pois o que disse Malaquias, que se há de enviar o anjo diante do Senhor, o qual há de preparar seu caminho, é o mesmo que disse Isaías com as palavras: ‘Voz que há de ouvir clamando no deserto’, a qual deve dizer: ‘Preparai o caminho do Senhor” (São Beda), e: “João, pois, é chamado Anjo, não por participação da natureza... mas pela dignidade do ofício, posto que em grego se diz anjo e em latim mensageiro, com cujo nome pode chamar-se muito acertadamente o homem que foi enviado por Deus para que desse testemunho certo da luz (Jo 1), e anunciasse que o Senhor havia de vir em carne mortal ao mundo; sendo firme que todos os que exercem o sacerdócio podem ser chamados anjos pelo cargo de evangelizar, segundo disse o profeta Malaquias (cap. 2) ‘Os lábios do sacerdote guardam a ciência, e se pedirá de sua boca a lei, porque ele é o anjo do Senhor dos exércitos” (Idem.), e também: “Assim, o precursor de Cristo se chama anjo por causa de sua vida angélica e de sua excelsa honra” (Teofilacto), e ainda: “O caminho pelo qual o Senhor vem até os homens é a penitência, pela qual Deus desceu a nós e nós subimos a Ele. Aqui o princípio da pregação de São João: ‘Fazei penitência” (São Jerônimo), e: “Assim como São João pode ser chamado ‘anjo’, porque precedeu ao Senhor evangelizando, assim também pode ser chamado ‘voz’, porque ia diante fazendo ouvir a Palavra de Deus, por isso disse: ‘Voz que clama’. Consta, também, que o Filho unigênito se chama Verbo do Pai. Assim, pelo nosso falar, conhecemos que a voz soa antes e que não pode ouvir-se a palavra senão depois” (São Beda), e também: “Se diz voz que clama, porque o clamor chega até aos surdos e aos que estão longe. Voz que certamente chegou ao povo judeu, ainda que a salvação não foi recebida pelos pecadores (Sl 118)” (São Jerônimo), e ainda: “Por isso disse ‘no deserto’. Manifestamente significa na profecia, que a doutrina divina não há de ser pregada em Jerusalém, mas no deserto. João Batista cumpria à letra anunciando no deserto do Jordão a saudável aparição do Verbo de Deus. Ensina também a passagem profética que, além do deserto que mostrou Moisés, donde abria seus caminhos, havia outro deserto, no qual se acha a salvação de Cristo” (São João Crisóstomo), e: “Ou soa a voz e o clamor no deserto, porque estavam desamparados do Espírito de Deus, como casa desocupada e varrida; desamparados também do profeta, rei e sacerdote” (São Jerônimo), e também: “Que clamaria, pois, se anuncia quando disse: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai os seus caminhos’. Pois todo o que prega a reta fé e as boas obras, que outra coisa prepara senão o caminho do Senhor, que vai aos corações de seus ouvintes, para penetrá-los verdadeiramente com a força de sua graça e ilustrá-los com a luz da verdade? Faz retos os caminhos, formando pela palavra da pregação, pensamentos puros na alma” (São Beda), e ainda: “Ou de outro modo: ‘Preparai o caminho do Senhor’, isto é, fazei penitência e pregai. ‘Endireitai seus caminhos’, para que, andando solenemente o caminho verdadeiro, amemos a nossos irmãos como a nós mesmos, e a nós mesmos como a nossos irmãos” (São Jerônimo), e: “Ou o caminho é o Novo Testamento, estando já como aplainados os do Antigo. Era, pois, necessário preparar-se para o caminho, para o Novo Testamento, porque convinha que se fizessem retos os atalhos do Antigo Testamento” (Teofilacto).
O Pe. João Colombo comenta essa passagem: “... preparai o caminho do Senhor, tornai retas suas veredas”.
1. Aplanai os montes.
Os cumes a derrubar são os cumes eriçados e gélidos do ódio e rancor. No Evangelho é dito: “Por isto vos reconhecerei como meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 35). Eis que Jesus vem no santo Natal, e olha os corações que são seus, para entrar neles. Mas onde há rancor, desejo de vingança, ódio, Ele não os reconhece como seus, e aí não entra. No Evangelho é dito: “Se estiveres para te apresentar ao altar e te lembrares de que há uma rusga entre ti e teu irmão, volta para trás, e vai primeiro reconciliar-te com ele” (Mt 5, 23-24). Se este mandamento vale para toda ocasião, vale tanto mais para a festa do santo Natal. “Já perdoei uma vez e duas — acusar-se-á alguém — porém ele depois me fez pior”. Também este caso é contemplado no Evangelho: “Se teu irmão prevaricou contra ti, perdoa-lhe. E, mesmo quando prevaricasse sete vezes ao dia, se sete vezes ao dia ele viesse pedir-te desculpa, sempre deverias perdoar-lhe” (Lc 17, 3-4).
2. Enchei os vales.
Os vales a encher, pantanosos e maláricos, de onde se exala um ar gerador de febres, são os dos prazeres sensuais, dos afetos mórbidos, dos desejos impuros. Para nascer, o Filho de Deus não se importou nem com riquezas, nem com casa, nem com berço. De uma só coisa não pôde prescindir, sendo Deus: da pureza. Nasceu de uma Virgem. Felizes aqueles que nestes dias forem achados com o coração puro: a graça do santo Natal inunda-los-á, eles sentirão a beleza e o fascínio desta virtude que nos torna capazes de ver a Deus, gozarão a paz prometida pelos Anjos aos homens de boa vontade. Boa vontade de mortificar os sentidos e o coração, porque Deus não pode nascer “onde os demônios dançam e as sereias fazem ninho” (São Jerônimo, P. L., XXII, 398).
3. Retificar as sendas tortuosas.
As sendas tortuosas são todas aquelas trilhas cobertas de fraudes, de furtos mais ou menos pequenos, de logros, de mentiras, de subterfúgios, dos quais sobejas vezes se deixa manchar até mesmo o homem honesto. “Isso são ninharias, é um dano que ninguém percebe!” “Aquele que é fiel nas pequenas coisas também é fiel nas grandes, e aquele que é infiel nas pequenas também é infiel nas grandes" (Lc 16, 10). “Todos fazem assim”. Contudo, desagradar-vos-ia se soubesse que também vós fazeis como todos; que se soubesse aquela vossa astúcia, ou a proveniência daquela coisa, ou o modo como conseguistes aquele dinheiro. E do Senhor, que o sabe, não fazeis caso? Não temeis a sua justiça? São João clama ainda no deserto: “Ah! Gente tortuosa como as víboras, quem vos ensinará a fugir da ira vindoura? Vem o Senhor com a peneira, e separará nitidamente o grão da palha”. Endireitai as sendas do vosso trabalho e do vosso comércio.
4. Voz no deserto.
Santo Tomás de Vilanova diz que a alma do pecador é um deserto. Realmente tem ela todo o aspecto de um deserto: é árida e inculta, não produz nenhum fruto de vida, é atulhada dos cardos dos maus pensamentos, dos espinhos dos maus desejos, das glandes das paixões impuras. E também não lhe faltam as serpentes, que são os demônios. E, depois, quanta solidão onde Deus falta! Quanta sequidão onde a graça não chove! Pois bem, neste deserto Deus cessa de falar para nos chamar ao batismo da penitência e à remissão dos pecados. E chama-nos com a voz da pregação e com a voz da inspiração: com a voz do benefício e com a voz do castigo.
5. Voz da pregação.
Assim como, naqueles tempos, o Senhor fez preparar os corações pelas prédicas do Batista, assim também através dos séculos, Ele tem-se sempre servido da palavra dos sacerdotes. A pregação é como a água fecundante; onde ela não desce, aí há terra dura e estéril. A pregação é como o maná alimentício: quem não o recolher morrerá de fome espiritual. A pregação é como o azeite que alimenta a lâmpada: quem não se provir dele ficará no escuro. Santo Hilário de Arles viu, uma vez, algumas pessoas que, mal ele começou a pregação do Evangelho, saíram da igreja a fim de se subtraírem ao aborrecimento de uma prédica. Então o santo gritou para eles: “Saí, sim; agora podeis fugir da igreja, mas tempo virá em que não podereis sair do inferno”.
6. Voz da inspiração.
Mas às vezes o pecador está tão endurecido, que nenhuma voz exterior pode penetrá-lo, nenhum grito pode despertar o seu deserto. E então Deus, bom e misericordioso, fala diretamente a esse coração, fala a sua palavra viva, mais aguda do que a ponta da espada de dois gumes, que penetra gélida e candente até os mais íntimos refolhos da alma (Hb 4, 12). “Deus! Deus! Deus! Se eu o visse! Se o ouvisse! Onde está esse Deus?”, dizia, em “Os Noivos”, de Manzoni, o Inominado, aquele homem que enchera de pavor e de crime uma região inteira. E o cardeal Frederico Borromeu respondia-lhe: “Vós mo perguntais? Vós? E quem mais do que vós o tem perto? Não o sentir no vosso coração, a Ele que vos oprime, que vos não deixa sossegar, e que ao mesmo tempo vos atrai, vos faz pressentir uma esperança de calma, de consolação, de uma consolação que será plena, imensa, logo que o reconhecerdes, o confessardes e o implorardes?
7. Vozes dos benefícios.
Há certos períodos da vida em que Deus nos envia todas as fortunas: saúde, dinheiro, honras; e então Ele como que espera que o homem diga: “Minha alma, sirvamos um Senhor tão bom e tão generoso: não vês que nós merecemos penas, e Ele nos dá alegrias?” Mas, ao invés disso, o homem não reconhece através das criaturas a voz do seu Senhor. O céu clama: “Ó homem, eu giro para tua comodidade e utilidade”. O sol clama: “Ó homem, eu te aqueço e te fortifico; e, a primavera, renovo a terra e adorno-a como um paraíso; faço crescer os frutos sobre as plantas e as plantas sobre o solo”. A terra clama: “Ó homem, eu te levo, te refresco, e fecundo todas as coisas”. E juntas, dizem todas as criaturas: “Reconhece, pois, e agradece ao teu generoso Senhor”. O homem não ouve. E Deus se lamenta: “Até o boi é grato ao homem que o sustenta, até o burro reconhece que o estábulo é de seu senhor: só Israel não me tem conhecido, só o meu povo deixa cair no deserto a minha voz” (Is 1, 3).
8. Voz dos castigos.
Assim como um pai que ama seu filho recorre aos castigos quando não é obedecido, assim também o Pai Eterno faz o mesmo conosco. Os seus próprios castigos são um sinal do seu grande e eterno amor. Se a doença não o houvesse forçado ao leito, talvez Inácio de Loiola nunca tivesse vindo a ser santo. Se uma chaga obstinada não houvesse trabalhado Camilo de Lellis, ele talvez nunca tivesse vindo a ser o grande amigo dos doentes. Se a morte não houvesse arrebatado cruelmente o marido a Margarida de Cortona, nós agora não a veneraríamos. E, se a miséria e a tribulação não houvesse feridos os irmãos de José, eles jamais se teriam arrependido do seu horrível pecado. Os verdadeiros cristãos que não são surdos à voz de Deus assim devem dizer nas suas dores: “Sofro justamente, porque pequei contra Jesus Cristo”.
9. Preparar o caminho do Senhor.
O caminho pelo qual o Senhor deve vir ao nosso coração, no próximo Natal, talvez esteja agora impedido pelas colinas do pecado, pelos vales que simbolizam a ausência das boas obras, pelas sendas tortuosas que, em vez de visarem direito ao fim, perdem-se nos prazeres e nas lisonjas do mundo. a. Abatamos as colinas do pecado com uma sincera confissão. Cruel ironia seria para um cristão festejar a vinda do Salvador enquanto o seu coração já está ocupado pelo demônio. Uma boa confissão, pois! Não como a de Saul, que disse a Samuel: “Pequei!” E ouviu responder: “O Senhor te rejeitou”, porque ele não estava arrependido; mas uma confissão sincera e dolorosa como a de Davi, que disse a Natan: “Pequei!” E ouviu responder: “O Senhor já destruiu o teu pecado”. b. Não basta a confissão, se depois, com as boas obras, não se continua a caminhar pelo caminho empreendido. As boas obras que melhor nos preparam para o Santo Natal são a oração e a esmola: a oração, porque sem ela nós somos como uma cidade sem defesa; a esmola, porque no céu ela é preferida a qualquer penitência corporal. c. E, finalmente, vivamos um pouco retirados; amemos também um pouco o deserto, como São João Batista. Afastados dos divertimentos perigosos, afastados das reuniões rumorosas, afastados das companhias corruptoras, viveremos docemente, cristamente, entre a nossa casa e a nossa igreja. Sem esta vontade de isolamento, os antigos maus hábitos retornarão facilmente. Quando Santo Antão passou por Alexandria, o governador do Egito queria retê-lo por alguns dias. O Santo respondeu-lhe: “Dá-se com o monge o que se dá com o peixe: um morre se deixa a água, o outro morre se deixa a sua solidão”. Ao cristão também sucede o que sucede ao peixe: um morre se deixa a água, o outro morre para a graça se deixa a solidão da sua casa e da sua igreja, e se expõe aos perigos e às seduções do mundo.
Em Mc 1, 4-8 diz: “João Batista esteve no deserto proclamando um batismo de arrependimento para a remissão dos pecados. E iam até ele toda a região da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém, e eram batizados por ele no rio Jordão, confessando seus pecados. João se vestia de pêlos de camelo e se alimentava de gafanhotos e mel silvestre. E proclamava: ‘Depois de mim, vem o mais forte do que eu, de quem não sou digno de, abaixando-me, desatar a correia das sandálias. Eu vos tenho batizado com água. Ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo”.
São Jerônimo escreve: “Segundo a anterior profecia de Isaías, São João prepara o caminho do Senhor pela fé, batismo e penitência. Os caminhos retos se fazem pelos austeros sinais da veste de cilício e da correia de couro, e da comida de gafanhotos e do mel silvestre, e da voz humilde. Por isso disse: ‘João esteve no deserto’. João e Jesus buscam, pois, o que se perdeu no deserto. Onde venceu o diabo, ali se vence; onde caiu o homem, ali se levanta. João se interpreta graça de Deus. Assim, pois, a narração começa pela graça. Segue logo batizando. Pelo batismo se dá a graça, porque os pecados se perdoam pela graça. Assim os catecúmenos começam a ser instruídos pelo sacerdote e são ungidos pelo Bispo. Para assinalar isso acrescenta: ‘E pregando o batismo de penitência” (São Jerônimo), e: “Sabe-se que São João não só pregou o batismo de penitência, mas que também batizou a alguns. Entretanto, não pode aplicar-lhes o batismo em remissão dos pecados, porque a remissão dos pecados só nos é dada pelo batismo de Jesus Cristo. Assim, pois, se disse: ‘Pregando o batismo da penitência em remissão dos pecados’, posto que pregava, porque não podia dar aquele batismo que perdoa os pecados” (São Beda), e também: “Ou bem, ainda que o batismo de São João não levara em si a remissão dos pecados, incita os homens à penitência” (Teofilacto), e ainda: “Para os que desejam o batismo se toma exemplo de confessar os pecados e prometer uma melhor vida. Daí as seguintes palavras: Os que confessam seus pecados” (São Beda), e: “Porque São João pregava penitência, dava exemplo dela na veste e na comida. Assim disse: ‘E trazia João uma veste de pêlos de camelo” (São João Crisóstomo, In Matth., 10), e também: “Veste, disse, de pêlo, não de lã, pois o primeiro é indício de vestido austero, e o último é de moleza. A correia de couro com que se cingia, como Elias (2 Rs 1), é indício de mortificação. O que segue depois: ‘E sua comida eram gafanhotos e mel silvestre’, como convém ao habitante do deserto, que não atende ao gosto dos manjares, mas à necessidade da natureza humana” (São Beda), e ainda: “A veste de São João, a comida e todas suas obras, significam a vida austera dos que hão de pregar. Porque os ricos entre os homens estão representados pelos pêlos de camelo; os pobres, mortos ao mundo, pelo cinturão de couro; e os sábios do século, pelos gafanhotos errantes, os quais, deixando as palhas secas aos judeus, se arrastam para os carros de trigo místico e no calor da fé se elevam dando saltos” (São Jerônimo), e: “Ou de outro modo, a veste de pêlos de camelos era um sinal de dor, que por indicação de São João, convinha que sentisse o penitente; pois o saco de pano significa dor, porém o cinturão de couro significa a mortificação do povo judeu” (Teofilacto), e também: “A veste e o alimento de São João podem também expressar a natureza de suas inclinações. Usava vestes austeras, porque não fomentava a vida dos pecadores com adulações, mas os repreendiam com o vigor. Cingia a cintura com uma correia de couro, porque crucificava sua carne com seus vícios e concupiscências. Comia gafanhotos e mel silvestre, porque sua pregação tinha para o povo certo sabor doce; julgavam as pessoas que ele era o Cristo. Mas, entenderam seus ouvintes que não era ele o Cristo, mas seu precursor e profeta, porque a doçura, na verdade, é própria da do mel” (São Beda), e ainda: “Dizia isso para fazer mudar de opinião à multidão que acreditava que ele era o Cristo. Anunciava que Cristo era mais forte. Este havia de perdoar os pecados, coisa que ele não podia fazer” (Glosa), e: “Que diferença há entre a água e o Espírito Santo, que era conduzido sobre as águas? A água é mistério do homem, porém o Espírito é mistério de Deus” (São Jerônimo), e também: “Somos batizados pelo Senhor no Espírito Santo, não só quando no dia do batismo fomos levados na fonte da vida para remissão dos pecados, mas também cada dia quando a graça do mesmo Espírito nos inflama para fazer o que agrada a Deus” (São Beda).
Edições Theologica comenta Mc 1, 4-8. São João Batista apresenta-se diante do povo depois de vários anos passados no deserto. Convida os israelitas a prepararem-se com a penitência para a vinda do Messias. A figura de João assinala a continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento: é o último dos Profetas e a primeira das testemunhas de Jesus. A sua dignidade particular consiste em que, enquanto os outros Profetas tinham anunciado Cristo desde longe, João Batista indica-O já com o dedo (cfr Jo 1, 29; Mt 11, 9-11). O batismo do Precursor não era ainda o Batismo cristão, mas um rito de penitência; prefigurava, porém, as disposições para receber o Batismo cristão: fé em Cristo, o Messias, fonte de toda a graça, e afastamento voluntário do pecado. “Confessando os seus pecados”: O fato de aproximar-se do batismo de João supunha reconhecer a própria condição de pecador, visto que tal rito significava precisamente isso: anunciava, pois, o perdão dos pecados pela conversão do coração, e facilitava a remoção dos obstáculos de cada um diante do advento do Reino (Lc 3, 10-14). Esta Confissão dos pecados é diferente do sacramento cristão da Penitência. Não obstante, era agradável a Deus como sinal do arrependimento interior, acompanhado de frutos dignos de penitência (Mt 3, 7-10; Lc 3, 7-9). No sacramento da Penitência, a confissão oral dos pecados será um requisito essencial para receber o perdão de Deus. Neste sentido se pronunciava há pouco João Paulo II: “Tende presente que ainda está vigente e está-lo-á sempre na Igreja a doutrina do Concílio de Trento acerca da necessidade da confissão íntegra dos pecados mortais (sess. XIV, cap. 5 e can. 7); está vigente e está-lo-á sempre na Igreja a norma inculcada por São Paulo e pelo mesmo Concílio de Trento, em virtude da qual, para a recepção digna da Eucaristia deve preceder a confissão dos pecados, quando alguém está consciente de pecado mortal (sess. XIII, cap. 7 e can. 11)” (Discurso à Sagrada Penitenciaria Apostólica, 30-1-1981). “Batizar no Espírito Santo” refere-se ao Batismo que Cristo vai instituir, e marca a sua diferença com o de João. No batismo de João só era significada a graça, como nos outros ritos do Antigo Testamento. “Pelo Batismo da Nova Lei os homens são batizados interiormente pelo Espírito Santo, coisa que só Deus faz. Pelo contrário, pelo batismo de João só era lavado com água o corpo” (Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, III, q. 38, a. 2 ad l). No Batismo cristão, instituído por Nosso Senhor, o rito batismal não só significa a graça, mas causa-a eficazmente, isto é, confere-a. “O sacramento do Batismo confere a primeira graça santificante, pela qual é perdoado o pecado original e também os atuais se os há; remite toda a pena por eles devida; imprime o caráter de cristãos; faz-nos filhos de Deus, membros da Igreja e herdeiros da glória, e habilita-nos para receber os outros sacramentos” (Catecismo Maior, n.° 553). Como todas as realidades pertencentes à santificação das almas, os efeitos do Batismo cristão são atribuídos ao Espírito Santo, o “Santificador”. Deve advertir-se que, como todas as obras ad extra de Deus (isto é, que são exteriores à vida íntima da Santíssima Trindade), a santificação das almas é obra comum das três Pessoas Divinas.
O Pe. Gabriel de Santa Maria Madalena comenta esse trecho. No Evangelho é repetido o grito de Isaías e transmitido por João Batista, definido como a “voz do que clama no deserto: traçai o caminho do Senhor, aplainai sua veredas” (Mc 1, 3). Assim apresenta o evangelista Marcos o precursor que batiza “no deserto, pregando um batismo de penitência para a remissão dos pecados” (Mc 1, 4). A figura austera do batista confirma sua pregação: convida os homens a prepararem o caminho do Senhor, mas, em primeiro lugar, preparou-o ele em si mesmo, retirando-o ao deserto, onde vive desapegado de tudo o que não é Deus! “Vestia-se de pele de camelo... alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre” (Mc 1, 6). O barulho de festas, a vida fácil não são ambiente propício para anunciar, nem para ouvir o convite à penitência. Quem prega, deve fazê-lo mais com a vida do que com as palavras, e quem escuta, deve estar em clima de silêncio, de oração, de mortificação. Assim de preparar-se o cristão fiel para comemorar a vinda do Senhor na carne, para acolher mais plenamente a graça do Natal.
Pe. Divino Antônio Lopes FP. Anápolis, 04 de dezembro de 2008
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