A JUVENTUDE DE NOSSA SENHORA

(Lc 1, 26-27)

 

“No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem...”

 

 

 

I. O lugar do nascimento

 

Onde nasceu Maria Santíssima? Não o sabemos. A Sagrada Escritura cala-se a este respeito. Uma tradição tardia apresenta quatro localidades como sendo o lugar onde nasceu Nossa Senhora: Séforis (que foi durante certo tempo capital da Galiléia, situada a cerca de 5 quilômetros de Nazaré), Belém, Jerusalém e a própria Nazaré; o que prova que a antiguidade cristã tinha sobre esse ponto apenas suposições e nenhuma certeza.

Entre as quatro cidades que disputam a honra de ter sido o berço da Virgem Maria, Jerusalém merece a preferência. De fato, tal opinião é sustentada pelo pseudo-evangelho de Matias, uma recomposição do proto-evangelho de Tiago, e também pelo peregrino Teodósio (em 530) e por Antonino de Placência (em 570), Sofrônio, patriarca de Jerusalém de 634 a 638 e São João Damasceno, os quais adotaram também esta opinião, seguidos por inumeráveis autores até os dias de hoje.

No pequeno escrito apócrifo “De nativitate Sanctae Mariae” 1, 1, atribuído a São Jerônimo e que surgiu no princípio do século VIII e nada mais é do que uma compilação do proto-evangelho de Tiago, Nazaré vem indicada como o lugar do nascimento da Virgem Maria. Nenhuma informação suficientemente fidedigna possuímos para poder afirmar isso, sendo seguro somente o fato que Nossa Senhora vivia em Nazaré quando recebeu o anúncio do Anjo.

Uma outra indicação nos é dada pelo seguinte fato: o neto de Simão Macabeu, rei Aristóbulo I (105-104), conquistou aos Itureus, que eram pagãos, a parte meridional do seu território, a Galiléia, e propôs aos habitantes a alternativa de emigrar ou então aceitar as leis hebraicas e com isso se deixarem circuncidar. Alguns desses preferiram abandonar o país, e em seguida a esse movimento, alguns Judeus do Sul emigraram para esse território mais rico e fértil. Entre os novos colonos estava certamente a família de que descendiam Maria e José, talvez os seus avós ou bisavós. Se de fato os primeiros que imigraram neste território, vindos de Belém a Nazaré, fossem apenas os pais de Maria e José, ao chegarem a Belém teriam por certo encontrado ainda parentes e amigos, junto dos quais teriam recebido boa acolhida, dada a proverbial hospitalidade dos orientais. Ao contrário disso, no entanto, nem José nem Maria puderam bater à porta de algum parente belemita. Ambos eram estrangeiros naquela cidadezinha.

Olhemos mais de perto a pequena região onde transcorreram os dias da juventude da mais excelsa e da mais amável de todas as criaturas. A Galiléia constitui a região mais setentrional da Terra Santa, que se estende para o sul até o monte Carmelo; a leste, até o rio Jordão; ao norte, até o passo do Leontes (hoje Nahr el-Kâsimijje); e a oeste, quase até o mar. A estreita faixa de terra que corre ao longo da costa não é considerada como pertencente à Galiléia. Uma linha reta tirada de Akko até a extremidade norte do lago de Genezaré, corta a região em duas partes desiguais: a alta e a baixa Galiléia.

Da confusa massa dos montes da alta Galiléia se eleva acima de todos o Gebel Gennak (1198 m) com o Gebel el-’Arûs (1073 m) ao sul e o Gebel’ Adâtir (1006 m) ao norte. Desse grupo central se irradiam em todas as direções, cadeias mais baixas de montes e vales. Trilhos íngremes sobem pelas encostas por entre desmoronamentos e por vezes com degraus escavados na rocha pela ladeira acima. Ali perto se atravessa uma pequena floresta; mais além, avistam-se terrenos recobertos de vinhedos. Velhos terraços obstando a erosão testemunham o diligente esforço dos primitivos habitantes da região. No meio das ameixeiras e na bastidão dos carvalhos sempre verdes, ainda hoje o visitante encontra ruínas de muros, de torres, de casebres que antigamente existiam sobre aquelas escarpadas alturas, como ninhos de águia, e bem assim restos de templos, de sinagogas e de igrejas. A rocha está toda perfurada de cisternas, adegas, lagares e sepulcros. Destacam-se ruínas de todas as civilizações, desde os tempos dos cananeus ao domínio dos Cruzados.

Os montes da baixa Galiléia são menos elevados. O mais notável dentre eles é o Tabor (562 m) cujo cimo maciço domina toda a região. Inumeráveis valados se ramificam para leste e oeste. As aldeias se enraízam pelas encostas, se ostentam sobre as alturas ou se escondem no fundo dos vales. Oliveiras de cor cinzento prateado se alinham sobre a lombada dos montes; as figueiras oferecem sombras agradáveis sob suas amplas ramadas de um tom verde claro; mangueiras e carvalhos, pistácias e azevinhos se agrupam juntas: “A terra tem qualquer coisa de repousante, de plácido e distensivo, uma terna vibração das coisas. Aqui não se encontram abruptas encostas, nem desertos incultos e áridos, mas um desenrolar de férteis e ricas campinas, que quase convidam a serem cultivadas” (Schwalm).

A Galiléia recebe chuva em maior quantidade do que a Samaria e a Judéia, e dispõe por isso de mais ricos cursos de água. O clima é ameno na vizinhança da costa, mais frio na parte setentrional, quente na depressão do lago de Genezaré (208 m abaixo do nível do mar), os ares são saudáveis. No tempo de Cristo a região era muito povoada e bem cultivada, rica de campos, de bosques e pastagens; as suas planícies produziam trigo e cevada, e seus pomares, saborosos frutos e uvas deliciosas.

O clima da Terra Santa é deveras singular. Propriamente só há duas estações: verão e inverno, ou também estação seca e estação chuvosa. As chuvas começam pelos fins de outubro ou começo de novembro e as últimas caem pelos meados de abril ou mais tarde, contando-se nesta estação cerca de cinquenta dias de chuva. O verão é quente, seco e quase inteiramente privado de chuva, pelo que toda a vegetação murcha e a região parece um deserto. A agricultura deve por isso adaptar-se a estas condições climáticas; depois das primeiras chuvas de novembro começa-se a trabalhar a terra, porque ela se acha então toda molhada e amolecida; depois da última chuva de abril, entre Páscoa e Pentecostes, a ceifa do trigo constitui a parte mais importante da colheita. No calor do verão amadurecem os figos, as olivas e a uva cuja colheita realiza-se depois, em setembro e outubro.

O lago de Genezaré, com as suas risonhas margens é o orgulho da Galiléia. Flávio Josefo assim descreve a pequena planície de Genezaré, vizinha à praia ocidental: “A aldeia de Genezaré, vizinha do lago do mesmo nome, oferece maravilhosas belezas naturais. Seu fértil solo permite a cultura de toda a espécie de plantas e os camponeses têm ali plantado tudo quanto é possível. O clima temperado é próprio para a mais variada vegetação. Vivem ali de fato muitas nogueiras que exigem o clima frio, tamareiras que, ao contrário, requerem o calor e figueiras e oliveiras que melhor se adaptam a um clima mais doce. Poderia falar-se da magnificência da natureza, que se esmerou em aproximar e reunir coisas que se hostilizam entre si, e do feliz comportamento das estações, como se cada uma se arrogasse a posse do lugarejo. A terra não somente produz os mais dispa­ratados frutos, mas os conserva ainda por muito tempo. Ela fornece os dadivosos cachos de uva e figos durante cerca de dez meses e os outros frutos  remanescentes amadurecem durante todo o ano”.

Os Galileus constituíam uma raça de homens que se destacavam sobre os mais fortes e industriosos, e por isso mesmo pugnaz: “Aos homens não faltava coragem e à terra não faltavam homens” (Flávio Josefo). Os Galileus não eram, portanto, mesquinhos como os habitantes da Judéia, porque estavam em contínuo contato com o grande mundo por meio das caravanas que percorriam sua terra natal em toda a sua extensão e ligava o Egito às terras do Eufrates. Eram tidos como mais práticos e não se detinham em prolongados debates, como os habitantes de Jerusalém, pelo que se dizia: “Quer ficar rico? Vá para o norte. Procura a sabedoria? Vem para o sul” (Schwalm).

A Galiléia tinha no tempo de Cristo 240 cidades e aldeias. Exagerando de modo hiperbólico, Flávio Josefo asseverava que a menor de todas contava 15.000 habitantes, resultando de tal estimativa uma cifra absolutamente impossível para aquela pequena região, que passaria então a ter muito mais de 3 milhões.

Quase no centro da baixa Galiléia está a cidadezinha de Nazaré, que se pode gloriar de ser a pátria de Jesus Cristo e de sua Mãe. Acha-se colocada em uma bela posição, vizinha à encosta meridional do monte Nebi Saîn, também chamado Gebel es-Scêh (488 m), na cova onde nasce o Wâdi el-Emîr, que corre de nordeste a sudoeste e depois volta-se para o sul, para se precipitar na planície de Esdrelon. O Gebel el-Kafsê fecha o panorama neste vale. Colinas de pedra calcária circundam a pequena cidade com a grinalda de seus suaves e ondulados cimos. Para quem vem de Jerusalém, Nazaré oferece um panorama verdadeiramente encantador: O pequeno vale e as colinas ao redor, cobertas de luxuriante vegetação, – pela sua maior parte moitas e árvores – oferecem, vistas das colinas meridionais, a imagem de um grande cesto, entrelaçado pelas mãos de Deus, no qual as casinhas brancas brilham como flores.

Mas se este aspecto, de longe, se apresenta sedutor, a Nazaré hodierna é bem pouco interessante por dentro. As ruas são estreitas, íngremes e sujas, com o seu calçamento de seixos muito escorregadios e desiguais, sobre os quais pode-se cair facilmente, de modo especial em tempo chuvoso. As grandes igrejas européias, os conventos e os edifícios escolares contrastam estranhamente com as pequenas e pobres casinhas, de forma cúbica, dos naturais do país. Os arredores, no entanto, são muito belos, especialmente na primavera, quando miríades de flores e ervas perfumadas desabrocham entre sebes e moitas; toda a planície se assemelha então a um continuado tapete de flores. As anêmonas rubras e brancas se confundem com as tulipas; íris azuladas como o céu, com ranúnculos cor de púrpura, asfódelos de um tom ligeiramente violáceo e branco com a “scabiosa arvensis” azulada, salpicada de vermelho. Não faltam espinhos e cardos (Cardo, planta que pertence à família das Asteraceae e cresce em locais rochosos). O cardo de Maria, com suas folhas branco-marmóreas, é verdadeiramente magnífico.

Certamente a jovem Maria, se alguma vez subiu ao alto dessas colinas, pode contemplar com seus olhos brilhantes a estupenda criação de Deus, alegrando-se em seu coração por ver tão variegada natureza.

O panorama descortinado de Gebel es-Scêh é o que era demais sugestivo; das bandas do nascente se mostra o repousante Tabor, a sudoeste o Nebi Dahî, que abrigava nas suas encostas as pequenas aldeias de Endor, Naim e Sunem; muito mais além se destaca o monte de Gelboé, de tão tristes recordações. Para o sul se estende o vale de Esdrelon, o fértil celeiro da Galiléia. Lá ao longe, no horizonte esfumaçado, perdem-se os numerosos cimos da montanhosa Samaria e o alongado dorso do Carmelo avança até o mar. A oeste ondulam suavemente as colinas da baixa Galiléia. Ao norte, a poucos quilômetros de distância, ficam a capital Séforis e a aldeia de Caná. As imponentes massas das montanhas da baixa Galiléia dominam majestosamente o resto da paisagem. Bem ao alto, na encosta do sul, via-se “a cidade sobre o monte, que não podia permanecer oculta”, Safed. Para além das fronteiras do nordeste, o elevado Hermon (2.759 m) nos saúda com os seus profundos despenhadeiros e deslumbra com os picos cobertos de neve. A alma transfigurada de Maria Santíssima, aberta assim a toda a espécie de belezas, rejubilava-se em ver um panorama tão belo, assim como se alegra toda criatura de Deus no admirar as obras grandiosas do Pai celeste.

Nazaré, sendo uma cidadezinha de pouca importância, não vem jamais citada no Antigo Testamento. O galileu Natanael mostra de fato o pejorativo conceito que dela fazia, ao perguntar em tom de compassiva ironia: “Pode sair alguma coisa boa de Nazaré?” (Jo l, 46). As construções eram provavelmente mais do que modestas; havia grutas e cavernas cravadas na mole pedra calcária, que bastava simplesmente alargar, adaptar e prover de um pórtico de ingresso, para se ter uma habitação qualquer, como ainda se encontram até hoje nestas condições, no povoado. O piso destas moradias era aplainado com argila socada e coberto, algumas vezes, com esteiras de palha. Tais grutas recebiam ar e luz por meio de um orifício aberto no teto, ou então diretamente da porta de entrada. Para nós, ocidentais, nem podemos imaginar a vida dentro das modestas habitações dos orientais de mísera condição. Em todo o caso, não podemos dizer que a casa da Virgem Maria fosse semelhante a estas, porque não sabemos com segurança em que parte da Nazaré atual estivesse a antiga Nazaré.

 

II. Os genitores

 

Era Maria Santíssima descendente do mais importante tronco genealógico do seu povo, da casa de Davi. Expressamente o afirma São Paulo, ao falar que o Filho de Deus era “segundo a carne, da estirpe de Davi” (Rm 1, 3). Mas Jesus não poderia descender da estirpe de Davi, segundo a carne, e as promessas não seriam cumpridas, se sua Mãe não fosse uma descendente da casa de Davi, porque Jesus, segundo a carne, está unido a família de Davi, não por meio de José, mas unicamente por meio de Maria. As palavras do Anjo Gabriel: “O Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai” (Lc l, 32) devem ser tomadas em sentido restrito. Em Lucas, as palavras “da casa de Davi” (1, 27) no texto grego se referem muito bem tanto a José quanto a Nossa Senhora. Para José, a viagem a Belém por causa do recenseamento estava justificada, “porque ele era da casa e da família de Davi” (Lc 2, 4). Maria Santíssima fez juntamente com ele a penosa viagem, ainda que o seu estado particular requeresse cuidado, porque também ela, evidentemente, pertencia à casa de Davi, e por isso devia então se apresentar em Belém para o recenseamento.

A história da casa de Davi está entrelaçada estreitamente por longos anos com a história do povo de Israel. Davi, após haver fundido em um só bloco as diversas estirpes que viviam continuamente em luta entre si, subjugou os inimigos até os confins do país, alargou seu território ao norte, a leste e ao sul, e criou um ponto central para o reino com a nova capital Jerusalém. Além disso, reorganizou o culto e preparou os materiais para a construção do templo nacional. Entre os seus sucessores houve reis bons e maus, santos e pecadores, pios e ímpios, crentes, como crianças, e céticos. Uma mulher famosa, Rute, está no início desta descendência, e outra ainda maior, Nossa Senhora, está no fim. Membros incapazes e viciosos dessa série de reis arruinaram o povo e o estado. Houve no início uma formidável e estupenda ascensão, seguida de alternativas de decadência e recuperação de fortuna e desventura, de glória e de ignomínia, por último, uma desastrosa derrocada selou o fim da casa real de Davi com o aviltante cativeiro de Babilônia (586). Depois de quase seiscentos anos, daquela estirpe já então profundamente empobrecida e sem nenhuma influência, uma virgem deu à luz um filho, “que devia reerguer de novo a estirpe decaída de Davi” (Am 9, 11).

Ele tornar-se-á “a luz que ilumina as gentes e a glória do povo de Israel” (Lc 2, 32), “e o seu reino não terá fim” (Lc l, 33).

Nada sabemos com segurança a respeito dos pais da Virgem Maria, dos quais nem sequer os nomes são referidos. Mas os apócrifos, e depois deles, alguns Padres da Igreja citam os nomes de Joaquim e Ana, mas não temos meio algum para constatar se tal notícia do autor do proto-evangelho de Tiago se apóia em uma tradição boa e segura, ou seja, simplesmente uma verdadeira invenção. Santo Agostinho que não depositava muita confiança nas informações dos apócrifos, escreve de fato contra o herético Fausto: “Aquilo que Fausto afirma acerca da descendência de Maria, de um sacerdote de nome Joaquim, da casa, de Levi, não tem para mim nenhum valor, pois não existe um documento ou um escrito que o aprove. Ainda que o acreditasse também diria então que Joaquim pertencia de qualquer modo à linhagem de Davi e fosse talvez ligado à de Levi por intermédio de Judá”. São Jerônimo, além disso, afirma que Cléofas (Jo 19, 25) é o pai da outra Maria, a mãe de Tiago e de José (Mt 27, 56), sendo esta última irmã da Mãe de Jesus, por tal modo que Cléofas seria também o pai da Santa Virgem. Esta opinião é de fato insustentável; disso deduzimos que também este doutíssimo Padre da Igreja, que conhecia como ninguém a antiga literatura eclesiástica, nada conhecesse de seguro sobre os pais de Maria Santíssima.

Se dermos razão aos que julgam se achar em Lucas 3, 23-38 a árvore genealógica de Maria, o seu pai seria então Eli. Este nome foi interpretado como observação de Eliaquim, o que nos deu Joaquim. Podemos poupar-nos oportunamente de indicar as outras respostas a esta pergunta, porque as fontes não são suficientes para esclarecer a questão. Os nomes de Joaquim e Ana estão solidamente radicados hoje no ânimo do povo cristão e é praticamente indiferente conhecer os nomes que possuíam em vida os pais de Maria Santíssima. Eles poderiam ter sido chamados de um modo ou de outro; a Santa Igreja, a única que pode elevar à honra dos altares determinadas pessoas, nos assegura que ambos eram santos. Eles pertenciam àquele grupo de pessoas justas e piedosas, que “esperavam a redenção de Israel” como o velho Simeão (Lc 2, 27-32) e que “serviam a Deus noite e dia com jejuns e orações”, como a profetisa Ana (Lc 2, 37). Valia também para eles o elogio que o Evangelista dispensou aos pais do Batista: “Eram ambos justos diante de Deus; observavam de modo irrepreensível todos os mandamentos e todas as disposições do Senhor” (Lc 1, 6). Ambos são venerados pela Igreja de um modo particular no dia 26 de julho.

 

III. O ano do nascimento

 

O ano do nascimento de Maria Santíssima pode ser calculado apenas aproximadamente, tomando-se em geral, como ponto de partida o nascimento de Jesus Cristo, não obstante este não estar ainda definitivamente ligado de modo seguro à história geral. É certo que contamos nossos anos da data do nascimento de Cristo, mas o monge Dionísio, o Pequeno, que introduziu esta contagem no ano 525 d. C., enganou-se de diversos anos no cálculo.

Está provado que Jesus nasceu algum tempo antes da morte de Herodes, o Grande. No verão do ano 5 a. C., cerca de l ano e meio antes de sua morte, Herodes se transportou aos banhos de Caliroé em busca de cura para uma grave moléstia que o afligia. Ele não voltou mais a Jerusalém, mas faleceu em Jericó no ano 4 a. C., pouco tempo antes da Páscoa. Os Magos, porém, encontraram ainda o rei em Jerusalém e de lá foram a Belém. Herodes espera em vão o regresso deles e dá então a sanguinária ordem de matar todos os meninos de menos de dois anos de idade. Esta determinação da idade ele a computou de conformidade com o tempo sobre o qual se tinha diligentemente informado com os Magos (Mt 2, 16). Este tempo é o período em que apareceu a estrela (Mt 2, 7).

Se pusermos a vinda dos Magos na primeira metade do ano 5 a. C., e supusermos que a estrela miraculosa lhe tivesse aparecido contemporaneamente ao nascimento de Jesus, cerca de um ano e meio antes da chegada deles, alcançaremos a segunda metade do ano 7 a. C. O espaço de tempo que corre entre a chegada dos Magos e a morte de Herodes pode ainda ser alongado. Hoje, depois de acurados estudos e cálculos, coloca-se o nascimento de Jesus Cristo entre os anos 9 e 7 a. C. (“antes de Cristo” pelo cálculo errado de Dionísio, o Pequeno).

Poder-se-ia basear tal cálculo também sobre o recenseamento popular que foi feito sob Quirino, governador da Síria, uma vez que tal recenseamento motivara a vinda do casal a Belém, onde nasceu Jesus. Mas as fontes que falam de tal recenseamento não são ainda suficientes para permitir um cálculo mais exato.

Maria Santíssima devia ter então quinze anos de idade. A mocinha hebraica era considerada menor até que completasse 12 anos de idade. A época normal do noivado ia do duodécimo até o duodécimo e meio ano de idade. Acontecia, além disso, que o tempo de noivado fosse, na maioria das vezes, um pouco mais longo do que doze meses e assim a jovem contraía o matrimônio dos 13 anos e meio aos 14 anos de idade. Quando a jovem atingia a idade núbil – 12 anos e meio – era considerado obrigatório arranjar-lhe, o mais depressa possível, um marido, conforme ensinavam os rabinos posteriores. Com referência a este ponto, é de se notar que o desenvolvimento físico se operava precocemente, muito tempo antes do que nas nossas regiões. Naturalmente podia ainda dar-se o caso de serem retardadas, seja o noivado como a cerimônia nupcial propriamente dita. Podemos então admitir que Nossa Senhora tivesse nascido entre o 25.° e o 23.° ano a. C., segundo o nosso cômputo, não havendo possibilidade de se fixar com maior precisão esta data.

Quanto ao dia do nascimento, falta-nos qualquer referência. A Igreja o festeja desde muito tempo a 8 de setembro.

Deus age em silêncio, ao passo que os homens amam o barulho e desejam desvendar qualquer segredo.

Enquanto Herodes parecia estar no ápice do seu poderio e da sua fortuna, Deus lançava as bases de um segundo reino muito maior e que se estenderia por todo o mundo. Ele escolheu para mãe do Rei deste novo reino aquela que, preparada no coração e na alma pelo Espírito Santo, se tornaria em habitação digna do Seu único Filho... foi preservada da triste herança dos filhos de Adão, do pecado original. O pecado jamais pode atingi-la, a frígida geada da culpa não tostou esta esplêndida flor divina, nenhuma sombra jamais ofuscou a sua alma, nenhuma mancha conspurcou-lhe a esplêndida pureza. Nela se encontra realizada perfeitamente a idéia do homem, como existia na mente divina. Nenhuma culpa impediu a liberalidade do Criador de usar a plenitude de sua graça. O Artista divino encontrou em si próprio o material mais adaptado e precioso para criar uma obra-prima, que não teve nem terá jamais igual entre os milhões de homens, exceto o Homem Deus, Jesus Cristo.

 

VI. O nome de Maria

 

Aquela que pela primeira vez recebeu o nome de “Maria” foi a irmã do grande Moisés (Ex l5, 20 ss.). No texto hebraico, com a pronúncia do VI século d. C. soa Mirjám, mas na tradução em língua grega do III século a. C. “Mariám”, que é indubitavelmente a forma mais antiga. No Novo Testamento é atribuído a 6 mulheres diversas por 53 vezes; 25 vezes na forma “Mariám”, 28 vezes na forma “Maria”, adaptada à pronúncia grega, que no final das palavras admite somente três consoantes: n, r e s. No Novo Testamento o nome da Mãe de Jesus aparece 19 vezes; a forma “Mariám” é usada 12 vezes, a forma “Maria” 7 vezes, e precisamente 5 vezes no genitivo, que não teria sido possível formar do hebraico “Mariám”, 1 vez no acusativo grego e uma só vez no nominativo “Maria” (Lc 2, 19). Também a irmã de Lázaro vem chamada nove vezes “Mariám” (no genitivo).

Os habitantes de Nazaré chamavam a Mãe de Jesus de “Mariám”: “Sua mãe não se chama Mariám?” (Mt 13, 55), e Jesus também usa esta forma. Quando Ele apareceu a Maria Madalena que não O tinha ainda reconhecido, chamou-a pelo nome: “Mariám”. Esse chamado tocou profundamente Madalena, que compreendeu então que era Jesus Cristo quem a chamava e com indizível alegria, respondeu: “Raboni”meu grande Mestre.

É pena que usemos somente a forma grega apocopada do nome de Maria, e não a forma primitiva da sua língua materna: “Mariám”, assim como ela mesma se chamava, como a chamavam Jesus Cristo, José e todos os seus parentes e compatriotas.

“Mariám”, no tempo de Jesus, era um nome muito usado. Naqueles tempos usava-se dar às crianças o nome de mulheres e homens famosos. Além das 6 Marias do Novo Testamento, conhecemos outras 6 nomeadas na obra de Flávio Josefo (de 37 até cerca de 105 d. C.) que usava a forma “Mariamme”, acrescentando um e à forma hebraica e duplicando o m final.

Muito se tem indagado e muitíssimo se tem escrito sobre o significado do nome de “Maria”, mas nenhuma explicação tem satisfeito os peritos da linguística. Foram postos: “Luz do mar”, “Gota do mar”, em latim Stilla Maris, que pode ter-se tornado, por um erro de pronúncia ou de tradução, “Stella maris”, “Mirra do mar”, “senhora” (do siríaco mâr: Senhor), “a soberba”, “a corpulenta” (no Oriente significava “Bella”). Lagrange opina por “aquela que mostra, a profetisa”. Zorel quer fazer derivar o nome do egipciano “meri”, feminino “merit”, que significa “amada” ou “favorita”. A pronúncia do t da forma feminina desaparece muito depressa na língua do Egito. A segunda parte que constitui o nome: “jam”, poderia ser uma forma secundária de Jahu (por exemplo: Abijjam - Abijjahu; Aijjam-Aijjahu). Na língua do Egito como também na hebraica, são muitas vezes conexados  o nome de uma divindade e a forma “meri(t)”. De fato, assim se encontram: Meri(t)-Ra, Meri(t)-Aton, como nomes masculinos. Assim, o nome de “Maria” poderia  significar “amada de Jahvé”, “a favorita de Jahvé”, “a predileta de Deus”, “a amada de Deus”. No Egito, o nome “Mariám” é famoso porque era o da irmã de Moisés e de Aarão. Uma princesa egípcia, filha de um Faraó, Bitja, tornou-se mulher de um hebreu de nome Mered; uma de suas filhas se chama “Mariám” (l Cr 4, 17 ss.). Essa explicação é possível e aceitável do ponto de vista linguístico.

“Favorita de Deus”: este nome convém perfeitamente a Maria; nenhuma criatura foi mais amada por Deus e tornada por Ele cheia de graça. Deus não amou nenhuma mulher mais do que a ela. O pensamento de Deus deixou-a exultante de júbilo celestial: “A minha alma exulta em Deus, meu Salvador” (Magnificat).

 

V. A educação

 

No citado proto-evangelho de Tiago narra-se (c. 7) que Maria foi levada para o Templo de Jerusalém com a idade de 3 anos, tendo subido sozinha os degraus do altar. Confirmando a história, acrescenta que a Virgem permaneceu no Templo até aos 14 anos recebendo ali uma educação especial ao passo que os Anjos lhe traziam diariamente o alimento de que se nutria. Tudo isso pertence ao domínio da poesia e já demonstramos, citando Santo Agostinho, a absoluta falta de valor dos tais escritos apócrifos. No Templo de Jerusalém não havia escola para meninas; os livros do Antigo Testamento nada dizem a respeito desse problema. Tal instituição teria sido uma novidade da máxima importância na antiguidade e teria certamente deixado traços de sua existência nos livros sacros ou pelo menos no Talmude. Ao contrário disso, não se encontra a menor indicação de haver alguma parte das acomodações do edifício reservada como alojamento para as virgens do Templo, nem na representação ideal do Templo feita por Ezequiel (40-48) ou na descrição do Templo de Salomão no 1° Livro dos Reis (6-8) ou na descrição da planta do Templo de Herodes, feita por Flávio Josefo (Guerra judaica, V, 5).

As três passagens do Antigo Testamento geralmente citadas para aprovar a existência de uma escola de virgens no Templo são na verdade completamente estranhas ao assunto. A primeira diz que Moisés (Ex 38, 8) fez uma bacia de bronze e a sua base com os espelhos oferecidos pelas mulheres que “velavam” diante da porta do tabernáculo. A expressão “velavam” foi transladada na antiga tradução grega por nesteísasai (mulheres jejuadoras). No Targum de Onkelos a expressão vem explicada como sendo “mulheres que vinham orar diante da porta do tabernáculo”. No Targum Jerusalmi consta que havia “senhoras bem educadas, que vinham orar diante da porta do tabernáculo. Elas se detinham para o sacrifício da sua purificação, louvando e agradecendo a Deus”. Foram precisos muitos milhares dos referidos espelhos de bronze para a fundição da imensa bacia. Como teriam podido fornecer tal massa de metal uma ou duas dúzias de virgens? A mesma coisa pode-se dizer com referência a uma outra passagem Bíblica onde são novamente mencionadas as mulheres (nâshîm) “que velavam diante da porta do tabernáculo”, mas a palavra nâshîm não significa “virgens”, mas sim, mulheres casadas. Trata-se certamente de esposas de sacerdotes ou levitas que se ocupavam no átrio externo com diversas tarefas do serviço divino.

Uma passagem do segundo livro dos Macabeus 3, 18-21 é considerada de capital importância para os patrocinadores da tese que combatemos. Nesta passagem se fala de certo Heliodoro que desejava saquear, por ordem do rei da Síria, o tesouro do Templo, onde tinham depositado suas economias muitas pessoas que julgavam mais seguro o lugar sagrado. Ao ter notícia da iminente rapina a cidade inteira se agitou, “até a gente se revezava em massa, fora das casas, para fazer orações públicas, porque o local sacro estava para sofrer um ultraje. E as mulheres se apinhavam pelas ruas, com a faixa da penitência trançada no peito, ao passo que as crianças, fechadas em casa, corriam a olhar dos portões, e dos muros, outras através das grades das janelas, e todas estendiam as mãos aos céus, suplicando”. As meninas da cidade já em idade núbil eram trancadas em casa e severamente proibidas, segundo o costume tradicional, de sair sem licença; assim, aquelas que habitavam nas casas situadas nas ruas que davam acesso à praça do Templo,  tomavam parte na agitação geral mesmo ficando em casa. A tradução latina acrescentou além da expressão “elas corriam a olhar dos portões”, a frase “corriam para Onias” (o sumo sacerdote). A variante é errônea, mas ainda assim não se fala na presença de virgens no templo.

A data do nascimento de Maria cai entre o 25.° e o 22.° ano antes de Cristo. No ano 20-19 Herodes começou a reconstrução do novo Templo, depois de haver tudo preparado com minucioso cuidado; fez encomenda de 1.000 carros para o transporte da pedra, alistou 10.000 trabalhadores e reuniu tudo o que fosse preciso para a obra. Mandou ainda instruir nos ofícios de trabalhador (pedreiro) e carpinteiro a 1.000 sacerdotes, que deviam, porém, permanecer vestidos com os hábitos sacerdotais, porque somente aos sacerdotes era permitido entrar no Santo dos Santos, para demoli-lo e reconstruí-lo. O Templo foi construído com pedras brancas quadradas e de grandes dimensões, que mediam, como escreve Flávio Josefo, exagerando sem dúvida, 22 pés de comprimento, 8 de altura e 12 de largura. O Santuário ou Templo foi concluído em um ano e meio. Para a terminação do pórtico e dos edifícios que circundavam o pátio interno ocorreram 8 anos. A inteira construção se arrastou ainda por decênios. “Quarenta e seis anos foram empregados na construção desse Templo”, diziam mais tarde os Judeus a Jesus, “e tu o farás ressurgir em três dias?” (Jo 2, 20).

A infância de Nossa Senhora coincide propriamente com os 8 anos da construção do Templo. Pode-se acaso, imaginar que no meio de um tumulto de tal gênero, enquanto eram demolidas as antigas e modestas construções do templo dos Macabeus, para se erguerem esplendidos e majestosos edifícios, houvesse ali uma espécie de escola para a educação das meninas? Não naquela enorme confusão causada por mais de 10.000 operários, mas sim, na calma de Nazaré tinha Deus “preparado por meio do Espírito Santo, a maravilhosa habitação do seu Filho”.

Com isso não iremos despojar de todo o seu conteúdo a festa da Apresentação de Maria no Templo? Não, porque tal festa é solidamente baseada nas palavras da própria Virgem Maria: “Como poderá acontecer isso, se eu não conheço homem?” (Lc 1, 34); Maria tinha-se de fato consagrado a Deus, propondo-se a permanecer virgem.

Nossa Senhora passou, portanto, a sua juventude na casa paterna; o pai e a mãe nos desígnios de Deus são os educadores dos filhos: “Escuta, meu filho, as advertências do teu pai e não desprezes os ensinamentos de tua mãe” (Pr 1, 8). A educação da filha era a principal obrigação da mãe; por ela, a filha aprendia tudo quanto lhe era necessário na vida: cozinhar, moer nos pequenos moinhos de mão que as mulheres hebréias usavam, assar o pão, fiar, tecer, coser, lenhar, buscar água, cuidar da casa, criar os animais domésticos, cultivar o jardim e trabalhar nos campos. A população da aldeia mantinha um padrão de vida muito modesto. Maria acostumou-se muito cedo ao trabalho e certamente não foi poupada pelos pais. O fatigante trabalho em casa e nos campos, a alimentação frugal e as roupas ásperas a tornaram forte e capaz de suportar mais tarde estafantes viagens.

Mais importante ainda era o ensinamento religioso. Rabi Eleazar dizia sem razão: “Quem inicia a própria filha na lei, é como o homem que lhe ensina coisas inconvenientes”; mas esta não era certamente a opinião dos pais sensatos. Da casta Susana foi dito: “Os seus pais eram justos e adestravam sua filha na lei de Moisés” (Dn 13, 3).

A Torá (por vezes o termo “Torá” é usado dentro do judaísmo rabínico para designar todo o conjunto da tradição judaica) ordenava em Dt 31, 9-13 que a todos; homens, mulheres e crianças acima de sete anos, fosse explicada a lei. O serviço divino regular que se realizava semanalmente na sinagoga e no qual tomavam parte também as mulheres (Lc 13, 10 ss.), era já por si uma boa escola de religião. Todos os sábados era lido um capítulo dos livros de Moisés e um outro dos Profetas. A Torá era compulsada toda no curso de três anos; mais tarde foi o seu estudo reduzido a um só ano. Escritos especiais e pouco massudos eram lidos todos os anos em dias especiais: o Cântico dos Cânticos, pela Páscoa; a história de Rute no Pentecostes, as comoventes lamentações de Jeremias eram lidas no grande dia de luto nacional, que recordava a destruição de Jerusalém pelos caldeus; o Eclesiastes, na festa dos Tabernáculos, o livrinho de Ester, na festa do Purim. A explicação ou a prédica vinham em seguida e encerravam a leitura, tirando-lhe conclusões, sendo geralmente encarregados desta parte homens bastante eloquentes. Jesus Cristo aproveitou-se mais tarde dessas ocasiões para expor a própria doutrina (Mt 4, 23; Mc l, 39; Lc 4, 16; 13, 10) e assim fez também São Paulo (At 13, 15; 14, 1; 17, 17; 19, 8 etc.). Depois recitavam uma oração em comum e cantavam os antigos hinos sacros, os salmos, que assim se tornaram conhecidos do povo. Maria Santíssima estava familiarizada com esses cânticos, tanto assim que no “Magnificat” se encontram muitas referências a eles e reminiscências de trechos dos Salmos.

O maior mérito das sinagogas é o de ter feito conhecer aos Hebreus a religião dos seus pais e de haver reavivado e alimentado no povo um profundo sentimento religioso. Ali se ensinava a apreciar e a dar real valor à beleza e a sabedoria dos livros sacros, imunizando por este modo o povo também dos engodos das idolatrias dos países vizinhos. Não se podia infligir a um israelita castigo mais duro do que expulsá-lo da sinagoga (Jo 9, 22; 12, 42; 16, 2). Também Nazaré tinha a sua sinagoga e certamente os pais de Maria eram assíduos frequentadores dela. Juntamente com eles, Maria teria tido ocasião de participar do serviço divino aos sábados, teria escutado muitas vezes a grande promessa do futuro Salvador... figura de mulheres famosas seriam com frequência evocadas à sua imaginação; mulheres como Rute, Ana, Judite e Ester teriam suscitado o seu espanto e a sua admiração. O límpido cristal da sua alma, imune do pecado, acolheu em toda a sua plenitude a luz espiritual da Sagrada Escritura: “A sua sabedoria não entra em uma alma maligna, nem habitará num corpo entregue ao pecado” (Sb 1, 4), e: “Brilha sem jamais se enfraquecer (a sabedoria) e facilmente é vista de quantos a estimam e deixa-se encontrar por aqueles que a procuram” (Idem. 6, 13).

Até a vida familiar era espiritualizada e elevada pela oração: rezavam de fato em diversos momentos durante o dia, tomavam parte nas grandes peregrinações ao Templo de Jerusalém e festejavam em casa as ocorrentes festividades do ano, recitando também em casa, o Shemae (Escuta) e a “oração das 18 bênçãos”. Ambas eram ainda geralmente usadas até os tempos de Cristo.

Todo Israelita adulto do sexo masculino devia rezar diariamente, pela manhã e à tarde o Shemae, que era rezado em comum nas boas famílias e era constituído de três passagens da Sagrada Escritura, isto é, Dt 6, 4-9; 11, 13-21 e Nm  15, 37-41:

“Escuta, Israel: O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma e com todas as tuas forças. Estas palavras que eu hoje te recomendo estejam gravadas no teu coração; e tu as ensinarás  aos teus filhos e as meditarás, sentado em tua casa e andando pelo caminho, e estando no leito e ao levantar-se. E as atarás à tua mão como um sinal e elas estarão como um frontal diante de teus olhos e as escreverás sobre os umbrais e sobre as portas de tua casa”, e: “Se vós, portanto, obedecerdes aos meus mandamentos que eu hoje vos prescrevo, de amar o Senhor vosso Deus, de O servir de todo o vosso coração e de toda a vossa alma, darei à vossa terra as chuvas de que ela tem necessidade, as têmporas e as serôdias, para que recolhais trigo, vinho e azeite, e farei ainda brotar feno no campo para o vosso gado e tereis assim do que comer à saciedade. Tende cuidado que o vosso coração não seja seduzido, e que vos aparteis do Senhor e sirvais a deuses estranhos e os adoreis, e que o Senhor irado feche o céu e não caiam as chuvas, nem a terra dê os seus frutos e vós dentro de pouco tempo sejais exterminados da excelente terra que o Senhor está para vos dar. Ponde nos vossos corações e nas vossas almas estas minhas palavras e trazei-as suspensas nas vossas mãos como um sinal e colocai-as diante de vossos olhos. Ensinai vossos filhos a meditá-las, quando estiverdes sentados em vossas casas ou caminhardes e quando vos deitardes e levantardes. Escrevê-la-eis sobre os portais e as portas da vossa casa, para que vossos dias e os vossos filhos se multipliquem na terra que o Senhor jurou a vossos pais de lhes dar, enquanto o céu estiver sobre a terra”. O Senhor disse a Moisés: “Fala aos filhos de Israel e dize-lhes que, no futuro, coloquem borlas nas extremidades de seus mantos e preguem a borla de cada ponta com um cordão azul. Este será o seu ornamento, para que, vendo-o, recordem-se de todos os mandamentos do Senhor e não errem, seguindo apenas seus corações e seus olhos aos quais estão acostumados a se prostituírem, mas pondo-os em prática, serão santos diante de Deus. Eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos tirei do Egito, para ser o vosso Deus”.

O Shemae é uma afirmação de fé no único e verdadeiro Deus. Se bem que somente os homens tivessem a obrigação de recitá-lo pela manhã e à noite, Maria Santíssima não se teria por certo dispensada de fazê-lo. Desta oração foi extraído o shemone esreh, ou oração das 18 bênçãos, dita simplesmente Tefila, “a oração”, usada ainda no tempo de Jesus Cristo. Raban Gamaliel II a reorganizou pelo ano 90 d. C. e aumentou a 12.ª sentença dirigida contra os cristãos e os hereges. As duas seguintes foram reduzidas por este motivo a uma só que passamos a transcrever em parte, para dar alguns exemplos da longa oração que Maria devia rezar três vezes ao dia:

1. “Sejas tu exaltado, ó Senhor nosso Deus e Deus dos nossos pais Abraão, Isaac e Jacó, Deus grande, forte e terrível; Deus altíssimo, criador do céu e da terra, nosso escudo e escudo dos nossos pais, nossa esperança por todas as gerações. Sejas tu exaltado, ó Senhor, escudo de Abraão.

2. Tu és um Herói, humilde e poderoso; tu és Forte, aquele que julga os violentos, o Eterno, que faz ressuscitar os mortos, aquele que ordena aos ventos de soprarem e a geada de cair, aquele que mantém os vivos e vivifica os mortos, que faz suscitar as ocorrências necessárias para todos os acontecimentos. Sejas tu exaltado, ó Senhor dos vivos e dos mortos!

3. Tu és santo, terrível é o teu nome e nenhum Deus é mais poderoso do que tu; sejas tu exaltado, ó Senhor Santo Deus.

4. Dá-nos o teu conhecimento e a compreensão da tua lei (Torá). Sejas exaltado, ó Senhor, que dás a sabedoria.

7. Olha a nossa miséria e guia nossas ações e salva-nos por amor do teu nome. Sejas tu exaltado, ó Senhor, Salvador de Israel!

10. Faze soar a trombeta para a nossa liberdade e iça a bandeira para recolher os dispersos. Sejas tu exaltado, ó Senhor, que recolhes os dispersos de Israel.

11. Restabelece nossos juizes como outrora e os nossos conselheiros como de início, e sejas tu só o único a reinar sobre nós, somente tu! Sejas exaltado, ó Senhor, que amas a justiça!

18. Põe a tua paz entre o povo de Israel, na tua cidade, no teu domínio e abençoa-nos a todos. Sejas tu exaltado, ó Senhor, que dás a paz!”

As meninas hebréias, nos primeiros anos da vida, tinham quase a mesma liberdade que os meninos. O profeta Zacarias diz da Jerusalém libertada: “Assim fala o Senhor dos exércitos: haverá ainda velhos e velhas pelas praças de Jerusalém, cada um com o bastão na mão pelo grande número de anos. E as praças da cidade reconstruída serão cheias de meninos e meninas que se divertirão” (Zc 8, 4 ss.).

As meninas de idade mais avançada eram, pelo contrário, vigiadas de perto: “Tens filhos? Ensina-os bem e acostuma-os à sujeição desde a infância. Tens filhas? Conserva a pureza dos seus corpos e não lhes mostre o teu rosto muito risonho. Casa tu filha e terás feito um grande negócio, dando-a a homem sensato” (Eclo 7, 26 ss.). As filhas dos ricos e dos notáveis eram obrigadas a ficar em casa e como não tinham nenhum trabalho a fazer, ocupavam-se quase somente com os seus vestidos e por causa do ócio e da preguiça, caíam no vício; raramente lhes era concedida permissão de se apresentarem em público e as de família nobre ainda menos do que as outras.

Narra Fílon que o governador Flaco mandou soldados à procura de armas no quarteirão judeu de Alexandria, e aconteceu ali que as mulheres reclusas que nunca tinham saído do pátio interno e as meninas mantidas nos seus quartos, e que evitavam o simples olhar dos homens e dos servos de suas próprias casas, foram obrigadas a se mostrar não só diante de estranhos mas também perante os soldados, que lhes incutiam grande pavor.

 

VI. A beleza

 

Não temos nenhuma notícia exata sobre as feições físicas de Nossa Senhora; é de supor, no entanto, que fosse bela e que a sua beleza correspondesse ao tipo ideal da beleza do seu povo. No Cântico dos Cânticos temos uma descrição desse ideal: o poeta louva os predicados da amada com imagens que encantam extraordinariamente a nós ocidentais: “Como és bela, amada minha, como é formosa! Os teus olhos são como os das pombas, por detrás do teu véu. Os teus cabelos são como um rebanho de cabras, suspensas das vertentes do monte Galaad. Os teus dentes são como um rebanho de ovelhas tosquiadas, ao sair do lavadouro; cada uma leva dois cordeirinhos gêmeos, e nenhuma há estéril entre elas. Os teus lábios são como um fio de púrpura, o teu falar é doce; como metade de romãs partidas, assim são as tuas faces, por detrás do teu véu. O teu pescoço é direito como a torre de Davi, que foi edificado com seus baluartes; dela estão pendentes mil escudo, todos os escudos dos heróis” (Ct 4, 1-4).

Olhos meigos, escuros, luminosos, cabelos negríssimos, dentes brancos, lábios purpurinos, uma boca graciosa, ainda em flor, faces ligeiramente rosadas, um colo delicadamente modelado: assim era imaginada uma bela jovem. Os cabelos loiros, avermelhados, os olhos castanhos e a graciosa figura de Davi, o fundador do tronco genealógico ao qual Maria pertencia, foram assaz louvados (1 Sm 16, 12). Os cabelos loiros entre os israelitas eram uma raridade e provinham talvez de uma mistura de sangue hitita, que corresse nas veias de Davi. Os hititas pertenceram à raça indo-germânica e grupos bastante numerosos deles ainda viviam na região. Urias era um hitita e talvez a sua mulher Betsabé também o fosse, a que se tornou mais tarde mulher de Davi, mãe de Salomão e antepassada de Maria Santíssima.

Jesus era alto e media, segundo o Santo Sudário que se acha em Turim, cerca de 1,81-1,82 m, o que já é uma estatura imponente. O rosto é singularmente nobre e majestoso e como o recebeu somente de Maria o seu corpo, certamente devia se assemelhar muito a ela. Os contornos exteriores, a cor e a forma e a figura de uma pessoa não constituem só por si a beleza, mas uma bela alma faz res­plandecer a beleza do corpo. O pecado, o terrível destrui­dor não tinha estragado Nossa Senhora, que fora preservada do pe­cado original e que jamais havia cometido uma culpa pes­soal. Assim, a sua mente manteve sempre a primitiva agudeza, a vontade conservou a resolução das almas fortes, a sua índole a mais bela delicadeza e a mais rica profundidade de ânimo. O contínuo recolhimento em Deus, o sábio discernimento dos desígnios de Deus na natureza e na revelação, o recato e a serenidade do seu estado virginal, deveriam conferir-lhe um encanto todo especial. A retidão da sua alma, a plenitude dos dons da graça e da natureza concentrados nela, irradiavam através de seu corpo, com uma brilhante luminosidade, envolvendo-a de uma fascinação e de uma majestade que não tinham igual.

 

VII. A entrega de si própria a Deus

 

De todo o período da juventude da Virgem Maria antes da Anunciação, são conhecidos somente dois fatos, os quais parecem, à primeira vista, contraditórios entre si: o seu propósito de se conservar virgem e o matrimônio com José.

Maria, piedosa e bem cuidada pelos seus santos pais, crescia como uma flor, aprendendo, trabalhando e rezando no calmo ambiente da casa paterna. Sua alma sempre aberta a tudo quanto era bom, belo e grande. Nenhuma desordem do coração turvava-lhe a singela felicidade, nenhuma culpa empanava-lhe o límpido espelho da alma unida a Deus e fiel ao cumprimento dos desígnios d’Ele; crescia e se fortalecia no amor do Pai celeste, ao passo que se tornava mais insistente nela o pensamento de dar-lhe uma satisfação especial e um sinal luminoso de amor. Nas suas meditações deteve-se sobre uma coisa que teria sido o seu particular patrimônio espiritual, de que não tinha nenhum modelo, nem mesmo nos livros sacros do seu povo, e que não podia lhe ter sido inspirado senão pelo Espírito Santo: oferecer-se a si própria em sacrifício a Deus, prometendo-lhe uma perfeita virgindade por toda a vida. Somente assim poderemos compreender as palavras com que manifestou ao Anjo a sua dúvida: “Como poderá ser isso, se eu não conheço homem?” Ela renunciara às alegrias maternas, à realização de um desejo natural que arde em toda a alma feminil.  Maria Santíssima pronuncia essas palavras sendo já desposada, pois que “o noivado confirmava já o matrimônio” (Fílon), não obstante o que pensou logo que, ao cumprimento da promessa do Anjo, se opusesse um obstáculo insuperável: seu coração se sentia ligado a uma promessa igualmente solene, livremente feita como uma espécie de voto. Apenas, porém, o Anjo lhe explicou o modo miraculoso pelo qual se tornaria mãe, permanecendo, todavia, virgem, deu o seu consentimento com viva alegria interior.

Nossa Senhora considerava válido e plenamente obrigatório o seu propósito de permanecer virgem, mas só o seria efetivamente se o pai o tivesse aprovado. Ela conhecia as disposições da lei em Nm 30, 4-6: “Se uma mulher fizer algum voto ao Senhor e se obrigar a alguma privação enquanto se conserva ainda núbil na casa paterna, e o seu pai, tendo tido conhecimento do seu voto e do compromisso que assumiu não lhe disser nada, são válidos todos os votos dela, e as obrigações a que estava adstrita ficam em vigor. Mas se o pai a desaprova, tão logo teve conhecimento dos seus votos e de seus compromissos, esses não terão nenhum valor e o Senhor o dispensará porque o seu pai a desaprova”.

O pai de Maria teria, portanto, compreendido o ideal de sua filha e não a contrariou. Maria, pelo seu lado, teria apresentado suas razões ao bondoso ancião de uma maneira tão convincente que ele se teria deixado comover e vencer, o que muito o honrava. Não menos cheio de compreensão e de nobreza de coração foi José, o noivo da Virgem Maria. Tal decisão devia ter-lhe sido comunicada antes do matrimônio, mas não obstante, ele apresentou o seu pedido de casamento e se declarou disposto a viver com Nossa Senhora naquelas condições. A personalidade integral de Maria devia agir sobre ele, nobilitando-o e elevando-o de tal modo que qualquer mesquinho desejo terreal desaparecia diante de tamanha nobreza de alma.

Alguns escritores quiseram ver em José um membro da seita dos Essênios; mas ele não o era, “pois se o fosse não poderia ter entrado no Templo e muito menos levado uma oferta” (Flávio Josefo). Os Essênios “desprezavam o matrimônio e exaltavam a continência e o domínio das paixões” (Idem.).

Fílon, no livro “Quod omnis probus líber”, § 84, diz: “... eles mostravam seu amor a Deus com uma continência perpétua e recíproca”. Segundo ele, havia na Palestina cerca de 4.000 Essênios, (cap. I § 75). Na sua doutrina “entravam, porém, elementos pagãos” (Felten). Não era, portanto, considerada, de per si, como uma coisa inaudita, passar a vida em continência; “sendo que também a seita dos Terapeutas estimava e praticava a virgindade” (Fílon).

É completamente inverossímil que José tivesse de qualquer modo contato com os Essênios, tomando-se em consideração o que narram dele os Evangelhos, como inteiramente submisso às disposições da lei de Moisés. E quanto a Maria, esta impossibilidade decorre do fato de aceitarem os Essênios somente homens em sua comunidade.

 

Pe. Divino Antônio Lopes FP.

Anápolis, 26 de setembro de 2010

 

 

Vide também:

- Os últimos tempos da Virgem Maria

- Retrato de Maria Santíssima

 

 

Bibliografia

 

Sagrada Escritura

Santo Afonso Maria de Ligório, Glórias de Maria

José Patsch, A Mãe do Senhor

Vitti, Ubinam BVM nata sit “Verbum Domini” 10 (1930) 257-264

Geyer, Itinera Hieros. P. 142

Sofrônio, Anacreôntica, 20, 81-90 (PG 87, 3821 ss)

São João Damasceno, Homilia in nativ. BVM, 6 (PG 96, 660, e De fide ortodoxa IV 14 (PG 94, 1157 ss)

Schwalm, La vie privpee du peuple juif à l’époque de Jésus Christ. Paris 1910 p. 122 Sagrado e também no Dictionaire de la Bible III 87-95 “Galiléia”

Flávio Josefo, Gerra jud. III 10, 8; III 3, 2

Sembrowski, em “Verbum Domini”, 6 (1926) p. 89

Killermann, Die Blumen dês Heligen Landes, Leipzig 1917, p. 25

Santo Agostinho, Contra Faustum Manich. XXIII 9 (PL 42, 471)

São Jerônimo, Adversus Helvid. c. 7

Hentzenauer, De genealogia Jesu Christi Roma 1922 “Laterazum”

Holzmeister, Chronologia vitae Christi, Roma 1933 p. 3 ss

Lagrange, Évangile selon s.  Luc, p. 27

Zorell, Novi Testamenti Lexicon graecum, “Maria”

Fílon, In Flaccum II

Kellner, Heortologie p. 155 ss

Rabi Eleazar, Sota III, 4; Jewish Encyclopedia V, 43 b

Felten, Neutestamentl. Zeitgeschichte I, 426-440

 

 

 

 

 

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Pe. Divino Antônio Lopes FP. “A juventude de Nossa Senhora”
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