ESTEVE NO DESERTO QUARENTA DIAS

(Mc 1, 12-15)

 

12 E logo o Espírito o impeliu para o deserto. 13 E ele esteve no deserto quarenta dias, sendo tentado por Satanás; e vivia entre as feras, e os anjos o serviam. 14 Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galiléia proclamando o Evangelho de Deus: 15 ‘Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho”.

 

 

 

Em Mc 1, 12-13 diz: “E logo o Espírito o impeliu para o deserto. E ele esteve no deserto quarenta dias, sendo tentado por Satanás; e vivia entre as feras, e os anjos o serviam”.

 

São João Crisóstomo escreve: “Ali lutou contra o diabo para que cada um dos batizados resistisse pacientemente as maiores tentações depois do batismo, e para que permanecesse vencedor...” (Hom. 13 sobre São Mateus), e: “Para que ninguém duvidasse que foi o Espírito que o levou ao deserto, São Lucas (4, 1), pôs em primeiro lugar, que Jesus voltou do Jordão cheio do Espírito Santo, para logo concluir: ‘E era levado ao deserto pelo Espírito’. Com isto ninguém deve julgar que o espírito imundo prevaleceria contra Ele, o qual cheio do Espírito Santo  ia onde queria e fazia o que queria” (São Beda), e também: “O Espírito O levou ao deserto para oferecer ocasião ao diabo para que O tentasse não só pela fome, mas pelo lugar, já que o diabo se aproxima com preferência dos que permanecem solitários” (São João Crisóstomo, Ut Sup), e ainda: “Se retira ao deserto para nos ensinar a abandonar a adulação do mundo e as más amizades, e a guardar em tudo os preceitos divinos. Foi tentado pelo diabo para indicar-nos que todos os que querem viver piedosamente em Cristo sofrem perseguições. E continua: ‘E esteve no deserto quarenta dias e quarenta noites, e era tentado por Satanás’. Foi tentado quarenta dias e quarenta noites, para nos mostrar que em todo o tempo que servirmos ao Senhor nesta vida... seremos atacados pelo adversário, que com a tentação não cessa de por obstáculos no nosso caminho” (São Beda), e: “Disse isso para mostrar que tipo de deserto era. Não havia nele caminho para      os homens, e estava cheio de animais ferozes. E acrescenta: ‘E os anjos o serviam’. Porque depois da tentação e da vitória contra o diabo, realizou a salvação dos homens. E como disse a Escritura (Hb 1, 14): ‘Os Anjos são enviados para servir àqueles que tomam a herança da salvação’. É de notar que os anjos servidores assistem aos que vencem as tentações” (São João Crisóstomo), e também: “Devemos considerar também que Cristo mora entre as feras como homem, e que é servido pelos anjos como Deus. Do mesmo modo nós, quando toleramos os bárbaros costumes dos homens sem manchar nossa alma, merecemos o serviço dos anjos, com os quais, livres do corpo, nos levam à eterna felicidade” (São Beda), e ainda: “É quando a carne não deseja contra o espírito, quando estão pacíficas conosco as feras; como na arca de Noé, os animais puros com os impuros. Depois disto nos são enviados os anjos para consolar nossos corações vigilantes” (São Jerônimo).

 

Edições Theologica comenta Mc 1, 13.

São Mateus (4, 1-11) e São Lucas 4, 1-13 narram com mais pormenores as tentações de Jesus. Jesus quis ensinar-nos, submetendo-Se às tentações, que estas não são de temer, mas, pelo contrário, podem ser a ocasião de um progresso na vida interior. “Deus permite as tentações em primeiro lugar, para que com elas reconheçamos melhor a nossa debilidade e a necessidade que temos da ajuda de Deus para não cair (...); em segundo lugar, Deus permite-as para que cada um aprenda a viver desprendido das coisas materiais e deseje mais fervorosamente chegar à contemplação de Deus no Céu (...); e, em terceiro lugar, para nos enriquecer de méritos (...). Com efeito, quando a alma começa a ser agitada por tentações e se vê em perigo de cair no pecado, recorre então a Deus, recorre à Mãe divina, renova o propósito de morrer antes que pecar, humilha-se e abandona nos braços da misericórdia divina, e assim consegue alcançar mais fortaleza e une-se a Deus mais estreitamente, como atesta a experiência” (Santo Afonso Maria de Ligório, A Prática do amor a Jesus Cristo, cap. 17).

Por outro lado, como no caso do Senhor, nunca faltará nas tentações a ajuda divina: “Jesus suportou a prova, uma prova verdadeira (...). O Demônio, com retorcida intenção, citou o Antigo Testamento: ‘Deus enviará os seus Anjos para que protejam o Justo em todos os seus caminhos’ (Sl 91, 11). Mas Jesus, recusando-Se a tentar o Pai, devolve a esse passo bíblico o seu verdadeiro sentido. E, como prêmio da Sua fidelidade, chegado o tempo, apresentam-se os mensageiros de Deus Pai para O servirem (...). Devemos encher-nos de ânimo, visto que a graça do Senhor não nos faltará, pois Deus estará a nosso lado e enviar-nos-á os Seus Anjos, para que sejam nossos companheiros de viagem, nossos prudentes conselheiros ao longo do caminho, nossos colaboradores em todos os empreendimentos” (São Josemaría Escrivá, Cristo que passa, n.°63).

 

Esse trecho de São Marcos é comentado pelo Pe. Gabriel de Santa Maria Madalena.

Ao contrário dos outros sinóticos, Marcos não se detém a descrever as várias tentações, mas sintetiza muito brevemente: “E logo o Espírito impeliu Jesus para o deserto. Aí esteve quarenta dias e foi tentado pelo demônio”. Isto acontece imediatamente após o batismo no Jordão; assim como no Jordão quis Jesus juntar-se aos pecadores, como se fosse um deles, necessitado de purificação, assim também no deserto quer fazer-se semelhante a eles até na tentação, extremo limite consentido por sua santidade. Mas, aceitando a luta com Satanás, da qual sai absolutamente vitorioso, mostra Jesus que veio libertar o mundo do domínio do Maligno e, ao mesmo tempo, merece para todo homem forças necessárias para vencer as insígnias diabólicas. Embora batizado, não está o cristão isento delas; pelo contrário, muitas vezes quanto mais se esforça para servir a Deus com fervor, tanto mais tenta o demônio impedir-lhe o caminho, como quis impedir a Cristo de cumprir sua missão redentora. É mister então recorrer às armas usadas pelo próprio Jesus: penitência, oração e perfeita conformidade à vontade do Pai: “Está escrito: não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4, 4). Quem é fiel à Palavra de Deus, quem dela se alimenta constantemente, não poderá ser vencido pelo Maligno.

Católico, não se desespere diante das tentações; lembre-se de que Nosso Senhor está ao seu lado para te fortalecer: “O Senhor está sempre ao nosso lado, em cada tentação, e nos diz afetuosamente: Confiai: Eu venci o mundo. E nós nos apoiamos n’Ele porque, se não o fizéssemos, pouco conseguiríamos sozinhos. Tudo posso n’Aquele que me conforta... O Senhor é a minha luz e salvação; a quem temerei? Podemos prevenir as tentações mediante a mortificação constante, mediante a prática da caridade e a guarda dos sentidos internos e externos. Devemos também fugir das ocasiões de pecar, por pequenas que sejam, pois aquele que ama o perigo nele perecerá. E juntamente com a mortificação, a oração: Vigiai e orai para que não entreis em tentação. É necessário repetir muitas vezes e com confiança a oração do Pai Nosso: Não nos deixeis cair em tentação. Já que o próprio Senhor põe nos lábios humanos esse pedido, é bom repeti-lo incessantemente. E também combatemos a tentação manifestando-a abertamente ao diretor espiritual, pois expô-la é vencê-la. Quem revela as suas tentações ao diretor espiritual pode estar certo de que Deus lhe concede a graça necessária para ser bem orientado. Contamos sempre com a graça de Deus para vencer qualquer tentação”, e:  “Não te esqueças, meu amigo, de que precisas de armas para vencer nesta batalha espiritual. As tuas armas serão: a oração contínua, a sinceridade e franqueza com o teu diretor espiritual, a Santíssima Eucaristia e o Sacramento da Penitência, um generoso espírito de mortificação cristã – que te levará a fugir das ocasiões e a evitar a ociosidade -, a humildade de coração e uma devoção terna e filial à Santíssima Virgem – Consoladora dos aflitos e Refúgio dos pecadores. Dirige-te sempre a Ela com confiança e diz-lhe: ‘Minha Mãe, confiança minha!” (S. Canals).

 

O Pe. Juan Leal comenta Mc 1, 12-13.

A introdução de Marcos tem por fim apresentar a inauguração da era escatológica. O ponto culminante é o batismo e a tentação. No batismo aparece o Espírito descendo sobre Jesus, e na tentação levando-O ao encontro com Satanás. Porém, esse espírito já é profetizado no v. 8.

Agora bem, a ideia de espírito está associada com a ideia de poder (cf. Mq 3, 8; Lc 1, 17; 4, 14; At 10, 38, etc.).

Pelo que toca à narração, chama a atenção a brevidade de Marcos em comparação com Mateus e Lucas. Este ponto é interessante para a questão crítica, referente à composição dos evangelhos, se Marcos conheceu ou não a fonte comum utilizada por Mateus e Lucas. Pode havê-la conhecido e haver omitido suas referências mais detalhadas; seu relato seria assim o resíduo de uma tradição mais desenrolada que se há conservada melhor em Mateus e Lucas; porém, o mais  provável é que não a conheceu, pois se a tivesse conhecido, a teria usado de muito bom grado. 

V. 12. O verbo é usado por São Marcos dezessete vezes e onze vezes para indicar a expulsão dos demônios. O verbo parece significar aqui uma forte propulsão.

V. 13. é usado de uma prova com intenção hostil. A decisão do drama escatológico se ventila longe do mundo dos homens. No mundo dos homens terá depois a repercussão.  O mesmo sucede no Apocalipse de São João (cf. 12). O deserto tem na Escritura frequentemente um significado teológico. É o lugar da prova.

Algum intérprete observa que a narração tem valor catequético: “O cristão que acaba de ser batizado deve esta disposto, como seu Senhor, a fazer frente imediatamente aos ataques do tentador”. É verdade, porém, a intenção primordial se move no sentido da literatura apocalíptica.

O Espírito O leva ao encontro do príncipe deste mundo. É básica na apocalíptica a certeza de que, quando a consumação está próxima, a vitória só  virá depois de uma luta intensificada.

Em 3, 29, o Espírito está identificado com o poder operante de Jesus que expulsa os demônios (3, 22). Há um manifesto paralelo entre a passagem, a tentação e o debate sobre os exorcismos em 3, 21-30.

Na tentação, a luta está inaugurada, porém não concluída. Seguirá nos exorcismos. Neste encontro inicial, o reino de Deus está se aproximando. Este acontecimento assinala o começo da última hora.

É de notar que o termo “diabo”, que pertence a um extrato mais tardio  da tradição evangélica, nunca se encontra em Marcos. Marcos usa “Satanás”, enquanto os outros dois sinópticos usam “o diabo”; o mesmo na passagem das tentações da parábola do semeador.

 

Esse trecho da Palavra de Deus (Mc 1, 12-13) é comentado pelo Pe. Manuel de Tuya.

O relato da “tentação” está reduzido ao mínimo por Marcos. Quase é uma alusão à mesma, já que Mt-Lc a relatam com  amplitude. Portanto, Mt põe as tentações depois do jejum de quarenta dias, Mc e Lc as põem literalmente distribuídas através dos quarenta dias. Dois são os pontos que interessam ante essa brevidade do relato de Mc e sua descrição tão especial.

Que significa este morar entre as feras e que os anjos o serviam? Para alguns seria uma simples expressão colorida de Mc, com o qual se descrevia assim o lugar agreste onde Cristo morava e sua solidão, ou simplesmente uma expressão pitoresca do gosto de Mc.

Nesta região do deserto do Jordão se encontravam ainda animais selvagens: víboras, cabras selvagens, gazelas, águias, e à noite se ouvem os uivos dos chacais e hienas. No tempo de Eliseu havia nos bosques entre Jericó e Betel ursos (2 Rs 2, 24). O mosaico de Madaba (s. VI. d. C.) põe nesta região leões. E Abel observa que a fauna selvagem atual está muito empobrecida em relação à da época bíblica (Smith, The historical Geography and the Holy Land (1931) p. 316; Abel, Geógraphie de la Pal. (1938 p I.ª p. 224).

Outros o apresentam numa relação mais lógica com as velhas experiências dos quarenta anos do deserto. A finalidade destas tentações é manifestamente messiânica. Era crença em Israel que o deserto seria lugar de ação messiânica, e que de alguma maneira se repetiriam nos dias messiânicos as experiências - tentações - do êxodo.  Por isso se relaciona este morar entre animais selvagens com as serpentes de fogo do deserto (Dt 8, 15; 32, 10) e com a alimentação prodigiosa do maná (Dt 8, 3; 29, 5), chamado nos LXX e na Sabedoria “pão dos anjos” (Sl 78, 24-25; Sb 16, 20-21).

Além disso, se fez ver que, na tradição judaica, a fuga do diabo e o domínio das feras selvagens são coisas unidas, como se demonstra no “Testamento dos doze Patriarcas”. Assim, estas expressões se aludiriam às tentações messiânicas de Cristo, relatadas com amplitude por Mt-Lc: a vitória sobre Satanás e o “serviço” que os anjos fazem a Cristo ao terminar as tentações (Mt).

Pensa-se também que, sendo Cristo o Messias profetizado por Isaías, n’Ele que se anuncia uma criação nova que implica a pacificação do reino animal, pudera também estar esta expressão de Mc evocando esta vitória messiânica de Cristo e a vantagem de sua restauração. Tanto mais, que “na Escritura  se une e se evoca o anúncio da nova criação e a do novo êxodo. É lícito, pois, crer que, ao mesmo tempo, que na morada dos hebreus no deserto, o segundo evangelista pensa na restauração da paz paradisíaca, quando mostra a Jesus Messias vivendo na companhia das feras; não há  lugar a temê-las, porque é uma afirmação bíblica constante, ilustrada especialmente pelo salmo 91, e que se aplica mais ainda ao Messias, que o homem domina facilmente ao mundo inferior quando se mantêm em amizade perfeita com Deus e triunfa do mal moral... Situado como está num contexto escatológico, a fórmula evangélica “com as feras” (= metà ton theríon) evoca especialmente o pacto com as feras selvagens (metà ton theríon) que em Oséias (2, 18) acompanha a restauração da aliança” (Feuillet, L’ épisode de la tentation d’après Saint Marc: Est. Bib. (1960) 68-69; cf. Mc 16, 17-18; Lc 10, 17-19).

O relato de Mc, é primitivo? Assim o sustenta muitos. Seria um resumo da tentação, que havia dado origem a uma elaboração em Mt-Lc, ou que estas são produto de uma mistura de fontes.

Porém, isso não é evidente. Batismo e tentação estão intimamente ligados, como o estão a passagem do mar Vermelho e a morada no deserto. Isto é primitivo. Porém esta vinculação está muito melhor marcada por Mt-Lc. A mesma vitória sobre o diabo, essencial na tentação, em Mc está mais citada que apresentada em forma explícita que tem em Mt-Lc. “Tudo sucede como se o autor do segundo evangelho, conhecendo um relato da tentação muito mais  desenvolvido, do gênero do qual nos hão conservado os outros dois sinóticos, o houvesse voluntariamente abreviado, sem dúvida, porque é considerada que a discussão entre Jesus e Satanás, com ajuda dos textos da Escritura, como também as duas últimas tentações com suas circunstâncias estranhas, podiam desorientar a seus leitores de origem pagã e debilitar a proclamação qual ele pretendia fazer da transcendência de Cristo. Também se pode estimar, mas simplesmente, que o ambiente cristão especial, cujas tradições ele refletia, tinha o costume de passar rapidamente sobre este episódio, que se contentava em resumir” (Feuillet, a. c: Est. Bib. (1960) 73; Dupont, L’arrière-fond biblique du récit des tentations de Jésus: New Test. Studies (1957) 287 ss).

 

PIB  comenta Mc 1, 12.

Logo: fórmula de  transição preferida por Marcos, e tem o mais das vezes o sentido atenuado de: “e depois”, sem sequência imediata estrita. – A fórmula de transição usada por Mateus é “e então”, ao passo que Lucas emprega: “e aconteceu”.

 

Em Mc 1, 14-15 diz: “Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galiléia proclamando o Evangelho de Deus: ‘Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho”.

 

São João Crisóstomo escreve: “São Marcos evangelista segue na ordem a São Mateus. É assim que, depois que disse que os anjos o serviam, acrescentou: ‘Depois que foi entregue João chegou Jesus’. Depois das tentações e de ser servido pelos anjos, partiu para a Galiléia”, e: “E assim como nos mostra que das perseguições convêm fugir e não esperar” (Teofilacto), e também: “Ele se retirou também com o fim de conservar-se para os ensinamentos e curas antes de sua Paixão e, uma vez cumpridas todas estas coisas, fazer-se obediente até a morte” (São João Crisóstomo), e ainda: “Preso São João, começou o Senhor a pregar oportunamente, pelo que continua: ‘Pregando o Evangelho’, porque onde tem fim a lei é consequente que tenha origem o Evangelho” (São Beda), e: “Desaparecendo a sombra, aparece a verdade. São João no cárcere, a lei na Judéia; Jesus na Galiléia, São Paulo pregando às gentes o Evangelho do reino. A pobreza sucede o reino terreno, o reino sempiterno se dá à pobreza dos cristãos. A honra terrena se compara à espuma, à água congelada, ao fumo ou ao sonho” (São Jerônimo), e também: “Cumprido já o tempo, ou seja, quando verdadeiramente chegou a plenitude dos tempos e enviou Deus a seu Filho (Gl 4), foi conveniente que o gênero humano obtivesse a última graça de Deus. Por isso disse que o reino de Deus se havia aproximado. Porém, o reino de Deus é, enquanto à substância, o mesmo que o reino dos Céus... Se entende por reino de Deus aquele em que Deus reina; isto é, nas regiões dos vivos, quando se vive nas boas promessas de ver a Deus face a face. Aquela região se pode entender, seja pelo amor, seja por alguma outra prova daqueles que levam a imagem divina. Isto se entende por céus. É bem claro que o reino de Deus não se encerra em nenhum lugar e tempo” (São João Crisóstomo), e ainda: “Disse o Senhor que o tempo da lei foi cumprido. É como se dissesse. Até o tempo presente tem imperado a lei; para frente será renovado o reino de Deus que, segundo o Evangelho, à vida.      Esta se identifica convenientemente com o reino dos céus. Quando vemos que algum mortal vive segundo o Evangelho, não dizemos que tem o reino dos céus? Este não é alimento, nem bebida, mas justiça, paz e gozo no Espírito Santo. E continua: ‘Fazei penitência” (Teofilacto), e: “Faça penitência quem quiser unir-se ao eterno Bem, isto é, ao reino de Deus” (São Jerônimo).

 

Edições Theologica cometa Mc 1, 14-15.

“Evangelho de Deus”: Esta expressão encontramo-la em São Paulo (Rm 1, 1; 2 Cor 11,7; etc.) como equivalente à de “Evangelho de Jesus Cristo” (Fl 1, 1; 2 Ts 1, 8; etc.), insinuando-se deste modo a divindade de Jesus Cristo. A chegada iminente do Reino exige uma conversão autêntica do homem a Deus (Mt 4,17; 10, 7; Mc 6, 12; etc.). Já os Profetas tinham falado da necessidade de converter-se e de abandonar os maus caminhos que seguia Israel, longe de Deus (Jr 3, 22; Is 30,15; Os 14, 2; etc.). Tanto João Batista como Cristo e os Seus Apóstolos insistem em que é preciso converter-se, mudar de atitude e de vida como condição prévia para receber o Reino de Deus. O Papa João Paulo II realça a importância da conversão perante o Reino de Deus, expressão clara da Sua misericórdia: “Portanto, a Igreja professa e proclama a conversão. A conversão a Deus consiste sempre em descobrir a Sua misericórdia, isto é, esse amor que é paciente e benigno (cfr 1 Cor 13, 4) à medida do Criador e Pai: o amor, a que ‘Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo’ (2 Cor 1, 3) é fiel até às últimas consequências na história da aliança com o homem: até à cruz, até à morte e à ressurreição de Seu Filho. A conversão a Deus é sempre fruto do ‘reencontro’ deste Pai, rico em misericórdia. O autêntico conhecimento de Deus, Deus da misericórdia e do amor benigno, é uma fonte constante e inexaurível de conversão, não somente como momentâneo ato interior, mas também como disposição permanente, como estado de espírito. Aqueles que assim chegam ao conhecimento de Deus, aqueles que assim O ‘veem’, não podem viver de outro modo que não seja convertendo-se a Ele continuamente. Passam a viver em estado de conversão; e é este estado que constitui a característica mais profunda da peregrinação de todo o homem sobre a terra, em estado de peregrino” (Dives in misericórdia, n° 13).

 

O Pe. Juan Leal comenta Mc 1, 14-15.

V. 14. Depois de ter sido entregue...: Se entende a prisão.

O Evangelho de Deus: Deus, mais provavelmente, é um genitivo subjetivo. A boa nova procedente de Deus.

V. 15. Se cumpriu o tempo é uma frase escatológica. Antes esta frase que proclama o tempo já como cumprido, os fatos precedentes devem considerar-se como o cumprimento, cujo efeito dura.

O tempo é determinado nos conselhos de Deus. Quando Jesus anunciava o reino de Deus, esta expressão despertava, sem dúvida, nas mentes judias, ações à leitura dos livros sagrados e da literatura extrabíblica, uma realidade bem concreta. O reino de Deus tinha já um sentido preciso pela Escritura.

Que Deus era o Rei de Israel foi uma ideia muito antiga no povo escolhido (Nm 23, 21; Js 8, 23; 1 Sm 8, 12, etc.).

Porém, a expressão reino de Deus (Dn 2, 44; Sl 145, 11-12), ou as expressões equivalentes Deus reina (Is 52, 7; Sl 93, 1; 96, 10; 97, 1; 99, 1) ou Deus rei (Sl 98, 6), através da história e a consequência de  múltiplos acontecimentos, vindo a concretizar-se num significado muito particular; vindo a ter um significado claramente escatológico, designando os tempos vindouros, em que, por uma intervenção maravilhosa de Deus, se haviam de cumprir todas as profecias e o povo escolhido havia de entrar a participar dos bens prometidos. Esta esperança palpita em toda a literatura da última época.

Dois aspectos compreendiam a noção do reino de Deus. Esse reino seria precedido de um juízo divino que abateria a todos os malvados, todas as potências hostis, o reino do mal em uma palavra. E então começaria a era ditosa do reino de Deus, reino de justiça e de paz.

Jesus falou do reino como futuro (Mc 14, 25; Lc 11, 2, etc), porém, também como presente em si mesmo e seu ministério (Lc 7, 18-23; 10, 23 ss; 11, 20. 31 ss).

Se discute se significa tem chegado ou se está próximo. No sentido de tem chegado o entende Dodd, autor da teoria da escatologia realizada. Porém, parece mais provável se está próximo. Jesus proclama a nova situação, que consiste em levar adiante a luta contra Satanás no poder do Espírito.

Entretanto, João em sua profecia anuncia um futuro; Jesus anuncia já o que tem sucedido: Se cumpriu... O tempo perfeito para anunciar a aproximação de uma consumação escatológica futura.

Se confirma este significado se temos também em conta o uso que fazem do verbo... os LXX, precisamente na seção do Deutero-Isaías.

A proximidade da salvação que anuncia o Deutero-Isaías se refere à volta do desterro. A volta, todavia, não teve lugar, porém, já se encontra atuante nas vitórias preliminares de Ciro (Is 41, 25, etc.), que são sinais da restauração iminente.

É a mesma situação que reflete Marcos 1, 15 a respeito do reino: o reino não chegou, todavia, porém é tal sua proximidade, que já se sente atuante na pessoa de Jesus. O ato decisivo chegará quando Jesus cumprir, com sua morte redentora, a missão do Servo “isaiano” , para a qual foi solenemente investido pela voz celeste na cena do batismo.

 

Esse trecho da Palavra de Deus (Mc 1, 14-15) é comentado pelo Pe. Manuel de Tuya.

Mc e Mt advertem que este relato tem lugar “depois” da prisão de João, que é muito posterior (Jo 3, 2 ss; 4, 1-3), e que supõe já a vida pública de Cristo. O que pretende aqui Mc é apresentar um esboço do que vai ser a missão de Cristo; Cristo vem para a Galiléia. Mt faz ver que se estabelece em Cafarnaum (Mt 4, 12-13), abandonado já Nazaré. Porém esta viagem de Cristo,  em sua vida pública, a Galiléia é o segundo. No primeiro, o Batista ainda não havia sido encarcerado (Jo 3, 24; 4, 3). Os evangelistas contam essa viagem conforme o plano geral de seu evangelho e destacando episódios distintos. Porém, os três sinóticos apresentam este modo geral da pregação e viagem apostólica de Cristo por toda Galiléia. O tema que Mc recolhe é esquemático, porém nele sintetiza o fundo de sua pregação. Mc o apresenta em forma rítmica:

 

“Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no Evangelho”.

 

A “plenitude dos tempos” (Gl 4, 4) para o estabelecimento do pleno reinado de Deus, anunciado nas profecias, já chegava. Era a missão de Cristo “semeá-lo” por toda a Galiléia.

A expressão “o tempo é cumprido”, o mesmo que “o reino de Deus” eram frases escatológicas. No ambiente judeu recordavam o messianismo e as maravilhas a ele ligadas.

É discutido o sentido exato  da palavra éggiken, pelo mesmo pode significar que o reino de Deus “se aproxima” que “chegou”. Se se tem em conta o uso desta palavra em Isaías, na versão dos LXX, e a dependência que daquela passagem tem esta palavra nos sinóticos (Is 50, 8; 51, 1; 56, 1), o sentido aqui é de uma iminente proximidade. Nos evangelhos, Cristo fala umas vezes do reino como já chegado (o identifica com sua pessoa e seus atos) e outras o deixa ver como num futuro próximo.

Diante desta expectativa e iminência , se pedem duas coisas: “arrepender-se” (metanoeîte), no sentido de mudar de modo de pensar, deixando a má conduta moral e o que pudesse ser prejuízos de interpretação “tradicional” sobre o Messias; e “crede no Evangelho”, na boa nova que Cristo vai ensinar. Será a fé que salva (Mc 16, 16). Esta última frase não excluiria uma formulação literária muito marcada de Mc, ou na boca de um catequista. Em sua redação atual, uma destas duas conclusões pareceria mais natural. “Evangelho”, afinal, é termo eclesiástico.

 

PIB  comenta Mc 1, 14-15.

V. 14. Pela narração de São Marcos seríamos levados a crer que Jesus começou a pregar a boa nova somente depois que João Batista foi preso por Herodes Antipas (cf. 6, 17); mas cf. Jo 3, 22-24, onde se diz expressamente que, quando João foi preso, havia vários meses que Jesus pregava.

V. 15. O reino de Deus, de que Jesus fala, é o reino que Ele mesmo fundou e inaugurou sobre a terra e que terá a sua consumação não só na sociedade exterior, mas também e, sobretudo, no coração dos que lhe pertencem. Arrependimento e fé são as disposições necessárias para se pertencer a Ele.

 

 

Pe. Divino Antônio Lopes FP.

Anápolis, 24 de fevereiro de 2009

Vide também:

Tentado por Satanás

Tentado pelo diabo

Os anjos o serviam

 

 

 

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Pe. Divino Antônio Lopes FP. “Esteve no deserto quarenta dias”.

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